Thursday, November 22, 2007

Cartas de amor

Quando fico assim sem sono, trabalho no meu projeto -- Cartas de amor. Cartas e mais cartas, que vão ficando sem resposta, mas que continuam sendo escritas. Penso que para escrever melhor devia reler as de Mariana Alcoforado. Será mesmo? Mariana achava que com suas palavras poderia fazer o amado voltar para ela, mesmo que fosse por piedade (pelo menos é assim que me lembro do livro turbilhonante que li há tanto tempo) A autora de minhas cartas sabe que seu amado não vem. Ela gostaria que ele lhe respondesse, mas está conformada com sua mudez. Ela delira, vê cartas que se desfazem no ar, interpreta os silêncios. O bonito é que ela escreve, mesmo sabendo que vai ficar sem resposta. Escreve cartas, cartas antigas, à mão, coloca em envelopes, envia por via terrestre, para que sua carta chegue com calma ao destinatário -- o dono de seu destino...
Mas não dá para escrever mais de uma carta de cada vez, senão fica artificial. Cartas necessitam de maturação, eu acho. Daí que já escrevi e, como continuo sem sono, resolvi continuar e postar o próximo capítulo da novela.
Bom capítulo para todos nós:

Capítulo XI


Ué? Você me ligando? Que milagre é esse?

Milagre nenhum. Saudades. Queria saber com é que você está?

Como dizia a Mira, “mérdia”.

Mira era gente fina.

Finíssima. Ela me faz muita falta.

E eu?

Você está aí. Vivíssimo!

Mas estamos longe. Acho que já não sei mais como é o teu rosto.

Mas eu sei como é o teu. Já decorei. Teu cabelo sempre curtinho, teus óculos, o sinal que você tem na sobrancelha direita...

Decorou mesmo.

Pois, é. E aí não acho graça quando você diz que já não sabe como é meu rosto.

É um rosto sorridente.

Isso é muito vago.

E muito branco.

E está mais branco ainda. Aí no Rio a gente ainda toma um solzinho, mas aqui...

E os cabelos são bem pretos.

Tingidos, infelizmente.

Com sobrancelhas retas. O nariz um tantinho comprido.

Me chamando de nariguda?

Não. Você tem o nariz de Cleópatra. E os lábios bem desenhados, parecem uma escultura.

Você não me esqueceu nada!

Acho que não.


E daqui a mais dez dias estou voltando.

É mesmo.

Não está contente?

É que estou com vontade de viajar, também.

Logo agora que estou voltando? Está fugindo de mim?

Não. Pelo contrário. Pensei que podia ir aí, me encontrar com você.

Ah...

Não gosta da idéia?

Não sei. Já estou de saco cheio de estar aqui. Tudo úmido, tudo frio, tudo caro! Por outro lado, com você aqui talvez o tempo passe mais rápido... Mas também complica, porque ainda não consegui escrever o final da minha história. Você vai chegar com sua alma de turista e vai querer que eu saia com você... E eu vou ter que escrever... Vai ser complicado.

Tá, já entendi. Pode deixar, não vou.

Pôxa, não quis te desencorajar...É que não estou conseguindo montar minha cena.

A da cama?

É.

Mas a da gôndola ficou boa. Só achei que começa meio depressiva, com os barcos que lembram caixões...

Mas eles lembram mesmo. São pretos. E tem umas lanchinhas todas de madeira que também parecem caixões. Aliás, o nome delas em português é mesmo esquife, sinônimo de caixão.

Pois eu acho o formato das gôndolas lindo!

Também acho, mas elas são tristes. Uma coisa não exclui a outra. Você sabia que as gôndolas não são simétricas?

Como assim?

Elas são mais largas do lado esquerdo, para contrabalançar a força do remo. Só assim é que elas conseguem andar para frente. Se os dois lados fossem iguais, elas iam ficar rodando no mesmo lugar, e não iam a canto nenhum.

Vê como as diferenças são importantes? Acho que você ainda não escreveu a cena da cama porque seu poeta...

Francesco...

Seu poeta está muito igual você. Ele é apenas uma projeção sua.

Não entendo o que você quer dizer com isso. Está me acusando de não saber construir um personagem? Era só o que faltava! E eu nem estou no texto. A Paula não é eu. O Francesco não é eu.

Claro que são você! É você quem dá vida a eles...

Dou vida, mas não a minha vida. Que leitura banalizante, a sua.

Não acho, não. Reconheço tantas coisas suas, tantos pensamentos seus...

Você reconhece o meu estilo, é isso.

Não é isso.

É o que, então?

É a sua voz, sua maneira inesperada de ver a vida, essas analogias loucas que você faz para explicar as coisas...

Isso é estilo.

Tá. Não vou discutir. E quanto à minha ida...

Você vai vir mesmo? E as aulas?

A Faculdade entrou em greve.

E a grana?

A editora vai pagar, contanto que eu te filme perambulando por aí.

Ah, essa não! Você com uma câmera é um perigo. Você sempre me pega numas situações....

Se eu não te filmo nem fotografo, você não teria nenhuma lembrança!

Tenho os meus textos. É por eles que desejo ser lembrada.

Mas é bom olhar para as suas fotos.

Eu nunca olho.

E, no entanto, sua casa é cheia de porta-retratos...

Com fotos dos amigos. E dos meus escritores prediletos.

Viu? Como você pode negar esse prazer aos seus fãs?

Então você vai vir mesmo?

Vou.

Quando?

Depois de amanhã.

Vai ficar onde?

No mesmo hotel que você está.

Neste pardieiro? Traz remédio para alergia, que tudo aqui cheira a mofo!

É muito ruim? Porque você não mudou?

Porque a gente se acostuma com tudo, até com hotel chinfrim. E ele é bem localizado. E gosto da plaquinha...

Que plaquinha?

Com o Arlequim e a Colombina. Quando escrevo, penso nos dois. Paula tem o mesmo sorriso da Colombina. E o Francesco tem o olhar sombrio do Arlequim.

Arlequim não tem olhar sombrio. O Pierrô é que tem. Ele é que se corrói de ciúmes, enquanto a Colombina se diverte com o outro.

Sabe o que eu penso? Não é uma questão do que a Colombina faz ou deixa de fazer com o outro. É uma questão de temperamento. O Pierrô é um ciumento, e um ciumento sempre terá ciúmes, não importa o que a Colombina faça ou deixe de fazer.

Você está re-escrevendo essa história.

Eu não. Estou interpretando da minha maneira. Nossa profissão é essa: interpretar textos. Lembra de nossos tempos de Faculdade? Nossos trabalhos de grupo? Nós éramos tão criativos.

Éramos não. Somos. Nossa turma fez história na faculdade.

É mesmo. Até porque os dois rapazes da turma não eram gays.

Mas nas outras turmas também tinha homem com H.

Tinha não. Só vocês dois. Gilson, Miguel, Cadu, Roberval, eram todos gay.

Roberval era gay? Mas ele namorou a Cleide! E a Gisele também.

Namorar, namorou, mas ficou só no namoro. Você nunca mais encontrou com ele? Pois eu dei de cara com ele quando fui naquela convenção em Porto Alegre . Ele estava lá, todo com cara de yuppie, completamente diferente do rapaz feioso, tímido e hesitante do passado.

Estava bonito?

Um bom trato faz milagres. Bonito ele não ficou, mas ficou charmoso. Elegante, acho que é o melhor termo. Ele fez rios de dinheiro, trabalhando para aquele deputado ligado às “comunidades”, sabia? Não é fofoca, porque foi ele mesmo quem me contou. Você também devia ter aceitado o emprego que teu tio te ofereceu... Hoje você estaria rico.

E de que me adiantaria estar rico? Eu gosto do que faço. Gosto da minha vidinha.

Mas vai me dizer que você não sonha com viagens, carros, restaurantes bacanas...

Viagens , sim. Mas carros? Prefiro andar a pé, caminhar pela beira da praia, sem me estressar. O carro que tenho me serve muito bem, para os programas de vez em quando. Restaurante só serve para engordar. A gente come demais, bebe demais. Uma vez ou outra, pra comemorar aniversário, me basta. E para isso eu tenho bala na agulha.

Ah, sei lá! Eu gostaria de ser rica... Entrar numa loja e comprar um sapato de 1500 reais só porque eu achei bonito, seria o máximo!

Acho melhor você forrar o pé com notas de cem. Do jeito que seu pé é pequenininho, você economizaria uns setecentos paus! Mulher tem cada coisa! Que mania de sapato. Prá que um desperdício desse? E sua consciência social?

Eu nunca comprei um sapato de 1500! Era só uma hipótese... Você também já falou em comprar um Z-3 ou sei lá que número. Já reparou que carro é cheio de número? A-8, XC 90; CLK 350; Gol 1000

Só mesmo você para misturar Gol 1000 com carrão!

Vê as diferenças? Eu falo de número, você fala de potência! Por que é que homem tem essa mania de potência?

Prá ganhar as mulheres, claro.

Você acha, sinceramente, que as mulheres ligam para isso?

Não engrena. Tenho que preparar a mala e não posso ficar de bate-papo.

Você sempre arruma uma evasiva, prá não me responder sobre essas coisas homem-mulher...

Sempre que eu caio na besteira de dizer alguma coisa, você se apropria do que eu digo e vai logo tacando em uma de suas histórias. E me crucifica com isso, depois.

Quer saber? Acho melhor a gente deixar para falar isso pessoalmente. Depois de amanhã você chega...

Depois de amanhã eu embarco.

E a gente vai ter muito tempo prá falar.

E eu posso te fotografar, com Veneza ao fundo...

Mas eu ainda tenho muito o que escrever!

Então eu te filmo, escrevendo. Filmo a tua plaquinha... O teu sorriso quando está gostando da cena... Teus dedos catando milho no teclado... Teu ar de boba, jogando paciência...

Eu nunca pensei que você reparasse em mim quando estou escrevendo...

Mas eu reparo em você o tempo todo. Sempre reparei. Você é que não presta atenção em mim.

1 comment:

Anonymous said...

Lúcia, já sei (como eu sou ansiosa, daquelas que lê o final do livro para depois continuar o enredo com calma): a escritora acabará com o editor com quem conversa por telefone. Tipo assim "perto de mim nunca te vi".
Estou adorando.
Com relação às cartas portuguesas, se conselho fosse bom... Não leia. São fortes demais, apaixonadas demais, tudo DEMAIS.
Fui cevada com as cartas de Heloísa para Abelardo (minha edição era como um missal), diários de Adele Hugo e hoje evito até ouvir o dueto e morte de amor de Tristão e Isolda. Fico com taquicardia, empipocada e perco o sono.
Beijos, Eugenia.