Wednesday, April 30, 2008

Louis XIV

Desconfio que o afamado Rei-Sol andou por aqui pelo Rio ontem e disse sua famosa frase: "Depois de mim, o dilúvio." Ontem tivemos sol, um dia dourado, lindo. Hoje o dilúvio chegou, e levou nossa paisagem carioca. Não se vê o mar, não se vêem as montanhas, as ruas estão alagadas, a chuva se despeja com força. Lembro do livro do Hatoum, que acabei de ler: Órfãos do Eldorado. Na palestra que ele fez aqui na Travessa, ele disse que se inspirou num ensaio de Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem, e penso que esta inconstância pode ser devida ao clima. Imaginem esses índios, que vão dormir numa tarde de verão e acordam num dia de inverno. Claro que eles têm que ter uma alma inconstante, protéica, capaz de se adaptar e de sobreviver no inesperado. Na verdade, acho que alma é uma coisa inconstante por definição. Como é a representação que fazem dela? Uma névoa, uma fumacinha -- portanto, uma coisa fugaz, que se desfaz com a brisa, e se reconstitui mais adiante sob outra forma, com um novo desenho, como um novo sonho. Mas não era disso que eu queria falar. Queria comentar os comentários que recebi dos amigos -- do Dante, da Eugênia e da Bela. Eugênia e Bela, solidárias, me oferecem conforto. E me fazem pensar que passamos nossa vida correndo atrás de prazos e de tarefas mas que no fundo, a gente gosta mesmo disso. No dia que os prazos se dilatam, que as tarefas acabam, vem uma sensação de vazio horrível. Uma opressão. Comparável apenas ao que se pode sentir se, como no comentário do Dante, se desconectar o tubo de ar embaixo d'água. Digo isso porque minha primeira reação, ao iniciar o mergulho, foi de pavor. Mal enfiei a cabeça dentro d'água, comecei a sufocar e achei que não iria realizar o mergulho que tinha tanta vontade de fazer. Fora d'água, os aparelhos eram uma fantasia. Dentro, eram meus pulmões. O instinto falou mais alto do que o sonho, do que o desejo e eu percebi como a gente reage frente à possibilidade da morte: com um grande desconforto. Não é medo, é um desconforto que nos impediria, uma vez o tubo desconectado, de nos deixarmos levar pela corrente sem nos debatermos angustiados. Há de haver algum meio de morrer que seja assim, suave, apenas a perda da consciência e a dissolução na paisagem. Mas afogado não é. Ânimo! Esta é a única vida que temos, vamos vivê-la da melhor maneira que conseguirmos.

Sunday, April 27, 2008

Heróica!

Não, não se trata aqui da famosa sinfonia de Beethoven. Heróica sou eu, que resisto ao sol deste domingo e fico em casa, sozinha, tentando colocar um pouco de ordem na casa e fazer um pouco de trabalho atrasado...
Descubro que um dos inconvenientes de viver sozinha é que a gente não precisa arrumar a casa quando não tem vontade e que depois, quando tem, a desarrumação é maior que qualquer vontade...
Descubro que a gente se acostuma com a solidão e não se importa mais quando o telefone não toca...
Resisto, porém.
Volto aos livros espalhados por toda a parte, procuro realizar um pouco de trabalho e estruturar meu tempo.

Friday, April 25, 2008

Aprendiz de sereia

Imaginem uma ilha de lindos contornos, a quatro graus sul do Equador, habitada por pássaros e peixes, rodeada de águas tépidas e transparentes... Foi lá onde fui fazer meu treinamento para sereia. Noites de lua cheia e de muitas estrelas pareciam anunciar os céus azuis e o sol equatorial, intenso e inclemente. Netuno, porém, tinha outros planos. Chamou seu filho Éolo, guardião dos ventos, e cobriu a ilha com um manto de nuvens, lavou-a com chuvas fortes e impediu que minha dermatologista ficasse rica. Salvei minha pele, e me diverti na mesma. O clima não atrapalhou as belezas que estavam, em sua maioria, no fundo do mar. Nem tão ao fundo, ali mesmo na beira da praia, as tartarugas e arraias, os peixes coloridos e curiosos nadavam e nos convidavam para entrar nas águas morninhas, salgadas e incrivelmente transparentes. Passeamos de barco, de buggy, nadamos no raso, nadamos no fundo, nadamos embaixo d'água, e nadamos em terra, lavados pela chuva e pela lama. Encontramos lagartos enormes e pequenas lagartixas, admiramos pássaros que voavam para deleitar nossos olhos com seu balé, e outros que se escondiam nas ramagens para cantar a sinfonia da ilha. Os pontos altos foram tantos que mais parecem um planalto: tudo que fizemos nos pareceu especial. O passeio de barco pelo mar de dentro, acompanhado por golfinhos brincalhões e exibidos; o incrível rugido de leão numa caverna invadida pelas ondas; boiar de acquaplana, as pranchinhas de acrílico transparente, puxadas atrás do barco por um longo caminho -- atividade que não só diverte os olhos mas que ainda propicia uma excelente hidromassagem. A lista não termina aqui. Os mergulhos com snorkel nas praias, cada uma revelando um atrativo diferente; a fila para mergulhar na Atalaia, um aquário de pouca profundidade e de infinitos peixes; a peregrinação a todos os mirantes da ilha, cada qual revelando uma paisagem mais bela; a onipresença do morro do Pico, visível de todos os pontos da ilha, mas desenhando-se de forma diferente a cada ponto de observação. Guardei para o final nossa tarde de scuba-diving, que nos exigiu coragem mas nos premiou com êxtase. Fomos a treze metros de profundidade, nadamos no meio dos cardumes dos peixes encantadores, olhamos a moreia entocada, que parecia nos ameaçar abrindo e fechando a boca, sua maneira de respirar. Vimos polvos, tartarugas, arraias de dois tipos diferentes, peixes diminutos, peixes enormes, um deles chegou até a beijar minha boca, talvez pensando que eu fosse uma sereia encantada... Para minha tristeza, não sou. Tive que subir de volta ao barco, e no dia seguinte só meu lábio inchado provava que o beijo não tinha sido um sonho. Um último passeio, nas esculturas ao ar livre em frente ao museu dos tubarões, me permitiu tirar um retrato com cauda de sereia. Fiquei com esse consolo.

Friday, April 18, 2008

véspera de viagem

Estou de partida, em menos de seis horas saio rumo a Fernando de Noronha. Há muito não ficava tão animada com uma viagem. Bem, confesso que também me animei para ir a Passo Fundo, em agosto do ano passado. E que este ano também estou entusiasmada com a Flip. Gosto destas viagens com destinos "literários", pois sei que vou encontrar a "minha turma", gente que ama as mesmas coisas que eu. Fernando de Noronha é diferente: é encantamento, uma promessa de um mundo de belezas quase intocadas, de encontros com peixes fantásticos, com um mar ainda límpido, placentário. Acho que vou adorar tudo.
Deixo vocês aguardando notícias, pois não vou levar computador nem celular. Cinco dias desligada de tudo, com alguns livros para ler, e um conto para terminar. É um bom programa, não acham?
Então, até a volta. Vou fazer minha mala, pois até agora só separei os livros e o chapéu. Borbulhas para todos!

Wednesday, April 16, 2008

Conversa de táxi

Não há uma vez que se entre num táxi que o motorista não tente começar uma conversa. Eu sempre converso, pois imagino como não deve ser passar o dia todo calado, principalmente quando se tem todas aquelas horas no trânsito dedicadas à reflexão. Assim sendo, já escutei excelentes idéias para diminuir os engarrafamentos, recebi numerosas receitas de repelentes naturais, já escutei grandes discursos contra o governo, alguns poucos em defesa do governo, e, por minha vez, já contei algumas histórias, invariavelmente ligadas a ruas cujos nomes são de escritores. Uma delas começou quando o motorista me perguntou se podia entrar na Paula Barreto e eu o corrigi:
--Paulo.
Ele logo quis saber se eu tinha certeza, pois já que era ele quem passava sempre por ali, tinha uma espécie de "superioridade", direitos de uso-capião quanto ao nome. E me explicava:
--É Mena Barreto e Paula Barreto.
Geralmente não insisto, afinal, as placas de rua têm uma espécie de vida própria, independente de seus homenageados. Mas, desta vez, decidi lutar pelo meu querido João do Rio, e afirmei minha certeza, e ainda o brindei com o pseudônimo e mais algumas informações adicionais. Vencido, ele capitulou:
--É...pode ser...
Chegamos. Na esquina, a placa não me desmentia, e eu, educadamente, não tripudei. Apenas sorri e separei o dinheiro. Paguei, dispensei o troco, e já fechava a porta quando ele disse:
-- Sã e salva, na Paula Barreto.
Dei de ombros, pensando que o Paulo talvez ficasse mais contente sendo Paula, e imaginando o que o João não escreveria sobre isso.

Saturday, April 12, 2008

Conversa de bar

Sexta-feira à noite, depois de uma semana carregada, muitos afazeres, muita dor de cabeça, corpo e mente cansados --- salvei-me com um convite para papear num bar. Até chopp tomei, acreditem se puderem. Tomei um chopp pequenininho, escurinho, cheio de espuma, parecendo um capucino: não foi mal. Tanto não foi que repeti. Meu projeto de "menina má" vai se consolidando. Já os outros projetos mais sérios vão se atropelando, se embolando, enquanto os livros se multiplicam à minha volta. Mas adorei o papo, escutei boas histórias, relembrei coisas, ri bastante, falei dos livros que estou lendo, soube de coisas boas que estão acontecendo pela cidade, comentamos o delicioso Carnaval do Recife... Foi uma noite adorável e queria agradecer aqui aos amigos que a compartilharam comigo. Mil idéias surgiram, para projetos e histórias, que talvez um dia se concretizem. Como faz bem uma pausa assim. E como é bom ter amigos. Obrigada, gente.

Wednesday, April 09, 2008

Que atraso!

Hoje percebi que não tinha visto ainda os comentários das últimas postagens. Parabéns, Vera Helena! Desculpe o atraso. Não tinha lido os comentários de Eugênia e de Guido, nem agradecido minha nova leitora, a Bela. Ultimamente (ou seria sempre?) parece que o tempo me escapa, estou sempre atrasada, sempre com a sensação de que deixei de fazer alguma coisa. Olho à minha volta e vejo os livros que se multiplicaram e já invadiram minha mesa de jantar, lembro-me de Cortázar, com a Casa tomada. Lógico que os livros não são essa ameaça autoritária, pelo contrário, são amigos, mas amigos exigentes, que reclamam: Leia-nos ou te devoramos, venha para nosso mundo de fantasia, esqueça as tuas dores e chore as nossas, abdique dos teus prazeres e viva os nossos...E eu cedo, entrego a eles os meus dias, meus devaneios. Carrego-os em meus braços, acomodando sempre mais um. Mesmo quando me fazem sofrer, como os livros de Coetzee, eu os acolho, e eles vivem em meus pensamentos. Não admira que não encontre tempo para ir ao médico, para ir ao dentista, para ir ao cinema, para sair com amigos. Nem minhas lições de piano tenho feito direito, e logo agora, quando já estou tocando alguma notinhas de Beethoven e outras de Brahms. Ah, queria tanto fazê-las soar lindamente, mas me atrapalho, me confundo, tenho medo de desanimar meu professor. Tenho que praticar todos os acordes (aliás, quem foi que outro dia disse no jornal que estava gostando mais de acordes que de mulher? Foi um músico desses conhecidos.) mas na hora de combiná-los com a melodia, não consigo. Mas continuarei. No fim do ano convido a todos para uma audição, nem que seja no You Tube.
Ah, esqueci de avisar que Histórias Possíveis está de volta. Não deixem de conferir as nossas historinhas!

Sunday, April 06, 2008

Prêmio SESC

Meu querido editor, o renomado Sr. Pereira, acaba de me avisar que, este mês, saio como "garota propaganda do prêmio SESC" no jornal Racunho que vai para as bancas amanhã. Espero não afugentar os candidatos.
Quando o SESC nos pediu para fazer fotos para essa chamada, o meu "irmão em SESC", o André de Leones, fez uma contra-proposta: um calendário de nus, com o Cremasco na capa. Achei que os ares de Paranaguá e as saudades de casa haviam avariado para sempre os miolos do rapaz, mas, depois, no decorrer da semana, fui assistir a um filme, Irina Palm, que me fez perceber que há gosto para tudo. E, se os homens podem fazer fila para transar com um buraquinho na parede, é porque somos muito mais complexos do que penso.
Aliás, estou lendo muitas coisas ao mesmo tempo que estão me fazendo pensar e refletir muito sobre solidão e sexo, e leitura. Hoje li As avós, de Doris Lessing e Desonra, do Coetzee. Duas amigas que dormem com os filhos uma da outra (essa triangulação aponta para outra coisa, eu sei), mas uma das passagens que me tocou foi quando um dos filhos, na cama com essa mulher mais velha, se recusa a aceitar a pele flácida de seus braços e lhe diz que ela não pode envelhecer com ele. Em Desonra, o professor universitário, pai de uma lésbica, ao falar da amante com a filha sente a luxúria percorrendo seu corpo --- o problema é que ele está sentado na cama da filha, que acabou de ser estuprada por três homens violentos e bárbaros. --- Na verdade, não é só isso que provoca o leitor: é o fato de que ele compara o corpo da amante com o da filha, e que inúmeras vezes ele fala da carne jovem, do corpo de carnes duras, da sensação corporal que o levou a apreciar tanto seu interlúdio amoroso com a jovem estudante.
Vou ter que ruminar muito essas histórias, para entender o que é que as tornaram tão desagradáveis para mim. Acho Coetzee um autor totalmente desagradável -- uma pessoa inconveniente, que insiste em temas que a sociedade prefere silenciar. Até aí tudo bem, isso é instigante, chamar-nos a refletir sobre as facetas escondidas, colocar o holofote sobre as coisas reprimidas de nossas vidas. O problema é que ele não sugere soluções nem caminhos. Na verdade, ele bloqueia as estradas e as soluções que possamos encontrar, e zomba de nós. Nos desmascara e segue indiferente e amoral, iconoclasta.
Barrocamente eu diria que Coetzee é um autor que amo detestar...
Voltando à Doris Lessing, ela é uma chata, que escreve bem. Lá nos EUA ela tem um grande fã clube, mas aposto que os leitores dela nunca aceitarão os livros de Coetzee, e vice-versa. Porque ela não quer fazer ninguém pensar, ou melhor, ela quer que pensem que é muito liberal, mas ela só conta situações, não há nenhuma reflexão. Seus personagens são tão verdadeiros quanto "as garotas-propaganda" de cerveja, de sorrisos, de remédios para emagrecer. New age. A vida dos semi-deuses.
Fiquemos com o Quixote, amigos: ele zomba dos leitores, mas é ele quem chama a atenção de que a aventura da literatura está na leitura, mais do que na escrita.

Tuesday, April 01, 2008

mentiras e verdades

Hoje é o dia da mentira, e vou inventar algumas, viver outras, escutar, reproduzir, emendar...como faço todos os dias do ano. Nossas vidas estão permeadas pelas mentiras, umas mentirinhas suaves, que alcolchoam nossas palavras mais rudes, nossos sentimentos mais mesquinhos. No entanto, me considero uma pessoa sincera. Sou sincera na minha paixão por literatura, sincera nas minhas amizades, sincera nos meus desencantos. Sou medrosa, tenho muito receio de me ferir, não fisicamente, receio ferir sentimentos e ter os meus dilacerados. Fico, então, me protegendo atrás de silêncios, de ausências, de palavras caladas. Muitas vezes estou desesperada, sangrando por dentro, mas faço uma carinha risonha, um sorrisinho simpático e vou à luta, pois sei que nada cansa mais aos outros do que a infelicidade estampada nos rostos dos outros. Deixo esse meu eu ferido emboladinho debaixo da cama, numa trouxinha, num lugar bem escuro e seguro. Para a rua vai a mulher capaz de rir de si mesma, que não reclama das desatenções, que é divertida e não exige nada de ninguém. Só me assusto quando vou olhar aquele embrulhinho debaixo da cama e percebo que está crescendo...
Outro dia disse a um amigo que ele não devia confiar em ninguém com mais de trinta anos (alguém lembra da música?) principalmente se for, como eu, ficcionista. Acho que ele me levou a sério, mesmo eu tendo dito que não confiasse ... ah, essa minha literatura!
Deixo vocês aqui com a dúvida: o que há de verdade no que digo? O que há de verdade no que escutamos? Em quem confiar num mundo sem certezas?
Estamos começando o Quixote, em meu grupo das segundas -- um grande prazer. Este livro que tem dado de beber a tantos leitores, que espanta ainda hoje pela inteligência de sua ambigüidade. Adoro essa armação para a narrativa, a desautoria, e o igualar leitura com loucura. Todo leitor é um Quixote, pois o cavaleiro da Triste Figura é, antes de mais nada, um leitor.
Termino com uma frase de Dostoievski:
"Em Dom Quixote a verdade é salva por uma mentira."
Faz pensar, né?