Sunday, December 31, 2006

Comendo castanhas

Quase seis horas do dia 31 de dezembro de 2006. Na Austrália já comemoraram o Ano Novo e, com certeza, muitas pessoas já foram até dormir. Aqui no Rio a gente espera. Espera que chegue a hora da festa, espera que a chuva passe, espera que os bandidos não ataquem, espera que o ano de 2007 só traga coisas boas.
Alguns, impacientes, se foram. Morreram antes de ver o ano acabar, ou para não ver o ano acabar. A data não parece combinar com velórios, pois os olhos estão todos voltados para o início, não para o término.
Desejamos a ceia, a mesa posta, os brindes e a alegria, estamos famintos, e passamos estas últimas horas comendo castanhas, laboriosamente nos livrando das cascas e enganando a fome com pequeninos pedaços que levamos à boca como troféus arduamente conquistados que foram. De banho tomado, com as roupas escolhidas, cheios de boas intenções, nem percebemos quantas castanhas já comemos, nem como o que mastigamos displicentemente nos alimenta. Indiferentes, comemos castanhas. Alienadamente, comemos castanhas.
Quem se lembra do poema de Fernando Pessoa, atravessado pela menina que come chocolates?
Me equilibro nesta ponte entre passado e futuro comendo castanhas. Caminho agudamente consciente do fim. Alguém morreu esta manhã. Minha vida se acabou há precisamente um ano, dois meses e quinze dias. A Tabacaria de Pessoa, no entanto, continua aberta. E eu, a exemplo da menina, como castanhas. Penso estar morta, mas como castanhas. E sonho: uma casa, livros, uma conversa amena. Talvez haja uma ceia...

Thursday, December 28, 2006

Promessas de ano novo

Recebi alguns e-mails de amigos que prometem manter um contato mais assíduo em 2007. Mandei alguns e-mails prometendo a mesma coisa. Será que vamos cumprir?
Não acho que seja hora de dúvidas, todos devemos começar o ano cheios de boas intenções, nem que seja apenas para neutralizar as notícias terríveis que se tornam cada vez mais próximas. Mortes, ataques, guerras, aumento de AIDS, destruição do planeta, corrupção e impunidade: os jornais insistem, a TV alardeia, as pessoas comentam, mas nada muda para melhor. O banqueiro foi solto, o político teve o processo retirado, os bandidos atacaram com mais violência, o clima foi para o beleléu... Ainda dá tempo de mudar? George Bush admira o mundo, resolvendo proteger os ursos polares -- ninguém lembrou que a Coca-Cola usa o urso polar como garoto propaganda?
Vamos neutralizar tudo isso, fazendo uma lista de boas intenções: comecemos em casa, tipo -- este ano vou pintar a sala/arrumar a sala/trocar as cortinas/reformar o banheiro/cuidar das plantas. Depois podemos sair às ruas e prometer: não vou jogar papel no chão/guimbas de cigarro nas floreiras/não vou pisar nos canteiros/não enterrarei palitinhos de picolé ou de queijo coalho nas areias da praia/recolherei os presentes que meu cachorro deixar nas calçadas/dirigirei meu carro dentro do limite de velocidade. Vamos assim, ampliando para a cidade, o país, o continente, o mundo, o universo e então poderemos pensar na maior tarefa de todas: nós mesmos. Mudar-se, melhorar-se, prestar atenção em si mesmo. Vamos fazer uma lista?

Tuesday, December 26, 2006

Ganhe dinheiro agora!

Toda a vez que vou postar alguma coisa, há um anúncio insistindo: Ganhe dinheiro. Quase sempre que abro meu e-mail há uma mensagem da loteria, me avisando que é a minha chance de ganhar N milhões. Quando morava nos EUA, semanalmente recebia uma carta me avisando que eu tinha sido premiada com uma quantidade enorme de dólares... Onde está toda esta grana, meu Deus? Há sempre algum esperto que, este sim, está ganhando dinheiro à custa de sonhadores e de necessitados, empreendedores e endividados. De mim não ganham, porque, embora sonhadora, sou preguiçosa. Nunca leio as cartas, nunca faço os jogos, nem termino de ler as ofertas. Leio o título: Ganhe dinheiro agora e imediatamente traduzo: o que vou fazer com este dinheiro todo? Embarco, então, numa viagem exótica (Ilhas Fiji? Expresso do Oriente? Safári na África?) ou faço a reforma do apartamento que nunca comprei porque precisava de... reforma. Ou viajo imediatamente para a Argentina e vou para a loja onde experimentei o vestido mais lindo que já vi e finalmente compro-o, nem que seja só para usar em casa, desfilando entre a sala e a cozinha, ou sentando e levantando na frente do espelho do quarto. Ou compro o vestido e dou uma festa, para poder usá-lo. Ou me matriculo num curso de literatura na Sorbonne, e passo seis meses em Paris. Sonho tanto que me canso de sonhar e desisto de ganhar dinheiro agora! A diversão já foi usufruida, e economizei alguns trocados. Deixo, então, os milhões para outras pessoas, que construirão impérios a partir da moedinha da sorte, e tomarão banho numa piscina de moedas de euros. Ganhe dinheiro agora! Eu vou continuar sonhando.

Sunday, December 24, 2006

Feliz Natal?

Houve um tempo em que eu gostava do Natal. Era uma festa de reunião de família, e eu adorava reunir-me à família, minhas raízes. Era minha chance de estar com minha mãe, sempre tão distante, de ter alguém com quem brincar, de comer coisas gostosas que só apareciam na mesa em dias especiais.
Depois o Natal foi ficando cada vez mais difícil. A gente vai perdendo uns e outros até que chega um dia e se perde a si mesma. Vou para o Natal me sentindo vazia: uma casca incapaz de se alegrar, e tão frágil que qualquer coisa pode destruir esta falsa imagem de mim. Não digo me destruir, pois já estou destruída, oca. Estou há mais de um ano, juntando pedaços para recuperar algo que possa chamar de eu. Vou ligando esses pedaços com a argamassa do carinho dos amigos. Vocês, se porventura lerem este blog, saibam que têm um papel fundamental para a construção desta Lúcia que vocês olham admirados, dizendo: como você está bem; você está linda; você tem muita força e está reagindo muito bem... Se eu fosse crente, saberia remeter a todos para o capítulo e o versículo em que se fala de sepulcros caiados... Sou um túmulo, carrego em mim um amor morto. A Lúcia que vocês olham e admiram é a imagem que as lembranças que vocês têm de mim projetam sobre essa ausência.
Mas, em algum lugar, o Natal continua maravilhoso. Talvez nos beijos apaixonados de André e Camila, talvez nas praias baianas onde se divertem Guilherme, Rita, Beatriz e o próximo Guilherme, talvez nos sonhos e equívocos do Ivan, talvez em Dallas, no futuro de Barbara, Michael, Gabriela e quem mais vier, talvez na casa e no coração da Paula e do Leonardo, do Fernando e do Marcello, acolhendo a todos os que chegam, convidados ou não. Vejo o rosto dos amigos, sorridentes e iluminados, Helena, a estrela que vai iluminar a noite de Natal de sua irmã, o sorriso e o brilho do olhar de Renée, generosa em suas emoções, escuto a conversa bilíngue da Marta e do Dennis, leio as mensagens carinhosas dos amigos próximos e distantes, fiéis e nem tanto, e sei que há uma promessa de beleza nesta noite, em que tantos corações tentarão caprichar nas batidas, para criar uma harmonia universal.
Feliz Natal, para todos os felizes. Feliz Natal, para os que tentam, Feliz Natal, para os observadores, para os excluídos, para os alheios, para os que não estão nem aí, para quem nunca soube o que é felicidade, para os raivosos, para os indiferentes, para todos, enfim. Que a data seja comemorada em paz, em dignidade, em sossego, pelos crentes e os descrentes.

Saturday, December 23, 2006

Cigarras e predadora

Mandei um texto por e-mail para alguns amigos. Ia ser uma carta, mas percebi que estava meio estilo crônica, e resolvi enviar para um monte de amigos. Alguns me escreveram de volta, dizendo que eu devia colocar no blog. Como tenho sido descuidada com o nadanonada, e ando sem tempo para meus prazeres solitários (ler e escrever, gente maldosa) vou reciclar o texto aqui. Espero que todos gostem.
Antes, porém, uma notícia: saiu um conto meu na Revista Continente. É uma revista lá de Pernambuco, muito bem editada, excelente apresentação, que muito me honra ao publicar meu conto. Está na página 34, com uma ilustração, muito bem feita, mas cujo autor, ou autora, desconheço. Acho sempre muita graça ao ver a interpretação dos outros quanto ao que a gente escreve: quem ilustrou o conto colocou a predadora como uma raposa, e sua vítima um cordeiro, com jeito assustado. Nada disso! A raposa é furtiva, escolhe caças pequenas e age mais pela esperteza. Uma amiga imagina a predadora como uma loba, mas também discordo. Lobas caçam em grupo, e essa predadora é exclusivista. Uma onça, uma leoa, ou, vencendo as conotações de filmes e músicas, até mesmo uma pantera ou uma tigresa. E a vítima não tem nada de cordeiro medroso. É tão selvagem e disposto a matar quanto a predadora. Só que ela toma a iniciativa... Mas, como já constatei, o conto só é nosso enquanto ninguém mais o lê. Cada leitor assina a co-autoria, pois a decodificação é dele e suas sinapses serão, necessariamente, diferentes das de quem escreveu. Aceito a raposa e o cordeiro, portanto, porque são manifestações de uma interpretacão possível, quem sabe de um machismo destronado que se vê vitimizado e inocente?
Curiosos? Vocês podem ler o conto na Continente de dezembro, que está à venda na Livraria Letras e Expressões. Corram, antes que acabe!
Termino, então, com o canto das cigarras, que hoje estão caladas, dando a vez para os bentevis.

Estou escrevendo com um fundo musical de cigarras enlouquecidas de sol e azul. Um dia lindo, como há muito já não se via no Rio, mas que exige ar condicionado, vestidos de alcinha, sorvetes, chope e água de coco. Ah, o verão... Estação mais complicada, aqui no Brasil! Começa com a correria das compras de Natal, das festas de fim de ano, com comida demais, para nos cansar a todos e nos dar aquela vontade doida de largar tudo e ir para a praia, mergulhar no azul, almoçar só uma saladinha ainda vestindo a roupa de banho e sentindo na pele o gostinho do sal, que tempera amores efêmeros ou eternos. Gosto do verão, mas como observadora. Me posto em alguma janela e olho toda a efervescência, escuto os pregões, me embalo nas músicas. Mas nunca aprendi a dançá-las, nem comprei as ofertas, nem me embriaguei com o gás. E, no entanto, amo esses dias-balões, que se inflam com o canto das cigarras e vão minguando sem que nos apercebamos bem quando é que terminam.
Solto meu canto (como o dos insetos, intenso e breve), e mando meu bom-dia a todos, minhas saudades e meu carinho.

Friday, December 15, 2006

Descartes e A contramão da palavra

Descartes

Penso

logo não posso existir

como me querem

submissa

como as feras

Penso

e com isso surgem os problemas

O natural, a natureza

não correspondem

aos anseios

e receios

Penso

Ato tão pequeno

que ninguém explica

Deus e a Filosofia

debatendo entre si

minha agonia

Penso

E se o corpo é fêmea,

o que é a mente?

Talvez ilusão

mito da serpente

Pura sedução

Penso

Se isso é normal

outra é a falha

Ou talvez a culpa

seja de Descartes

por acrescentar

Existo

Penso

E não existo

Somente assim

Posso me explicar

Nesse momento

Não sou

Penso

Não existo

Penso

Logo, me crio

Prometi, e aqui estou eu cumprindo, cartesianamente, o prometido. Este meu poema é de um livro inédito, chamado A contramão da palavra. Antes de escrever contos, eu costumava escrever poesia. Mas escrevia, volta e meia, um ou outro conto. Agora minha produção se inverteu. Passei a escrever preferencialmente contos, e ocasionalmente poesia. O que é que nos leva a uma ou outra forma de expressão? Porque preferimos a concisão e a elipse numa determinada fase da vida? Por que é que certos assuntos parecem mais poderosos quando escrevemos de forma mais simbólica? Porque alguns autores elegem uma única forma de expressão e nunca se aventuram fora dela? Por exemplo, nunca ouvi falar num trecho em prosa escrito por João Cabral de Melo Neto. Mas, conhecendo os poemas perfeitos dele, enxutos, concisos, numa elegância de equilibrista, como não entender essa sua preferência?
Chega de perguntas sem resposta. No fim de semana continuo.

Thursday, December 14, 2006

Bloggando devagar

Doze dias sem postar nada! Os leitores que me desculpem, mas época de Natal, época de nascimento, época de amigos ocultos e escancarados, época de lançamento de livros de amigos, também é época de pouco tempo para escrever.
E é também época de falta de assunto, pois os acontecimentos são sempre os mesmos, só varia o menu: aqui, servem champagne, ali servem cerveja, aqui servem pão com brie e damasco, ali servem mini quiches de cogumelos selvagens... Num lançamento, a gente se acotovela com o povo das colunas sociais, noutro respira o mesmo ar das cabeças pensantes da literatura, na esperança de ficar um pouco mais inteligente, um pouco mais criativo. O resultado é sempre o mesmo: uns quilinhos a mais, talvez uma dorzinha de cabeça, muitos risos, comentários maldosos ou inteligentes, e a sensação de que precisamos nos ver mais, conviver mais, aproveitar mais esses amigos que passam o ano distante de nós para surgir no final do ano, tão interessantes, tão especiais que nem compreendemos como pudemos ficar tanto tempo afastados.
Mas chega de desregramento! Volto a bloggar, devagar, mas com promessas de constância. Hoje só escrevo isso. Amanhã prometo um poema que vou catar nos arquivos. E umas palavrinhas, no fim de semana, sobre os ótimos livros dos amigos: A musa diluída, do Henrique Rodrigues e Lápide e Versão, do Jorge Fernandes da Silveira.
Me aguardem.

Saturday, December 02, 2006

A teia de Ariadne

Há alguns milênios atrás, tinha pensado em desenvolver uma tese com este nome: a Teia de Ariadne. Ia falar sobre a mulher que servia sempre como eixo do discurso narrativo masculino em alguns autores brasileiros. Na verdade, estava mesmo pensando em Machado de Assis, cujos grandes personagens femininos são inesquecíveis: Capitu, Conceição, Dona Carmo, Fidélia, Sofia, e tantas outras. Era como se elas provessem o fio para que eles desenvolvessem a trama. Pois é, mas isso não tem nada com o que eu pretendia dizer agora, já que o que queria era uma metáfora para explicar a falta de atualização do nadanonada: enrolação, completa, total, irremediável.
Volto a escrever, não sei quando, mas prometo que com muitos livros para comentar: Estou carregada de novos romances. E com um disco novo/antigo dos Beatles, o comentado Love, criado pelo George Martin e seu filho para um espetáculo do Cirque du Soleil. Então, como despedida, all you need is love...