Monday, October 20, 2014

Doutor tempo

Márcio Fonseca, pontual, a cada semana me regala com suas "imagens semanais" e nem peço licença, vou logo me apropriando de algumas. Esta daí de cima é de autoria de Eleanor Fortescue (1872-1945) e chama-se "Time the Physician".
Há coisa de quatro dias atrás, postei no Facebook uma frase: O tempo passa, mas não cura nada. Meu amigo é médico e tem fé na sua profissão. Para sermos médicos suponho que seja preciso acreditar na cura. Não sei se ele viu meu post, não sei se discorda de mim, não conversamos sobre o assunto. Acontece que, nas imagens desta semana – especialmente interessantes, diga-se de passagem – encontrei essa, mostrando o tempo como médico (physician), enfaixando a cabeça de um jovem melancólico e belo. Pode-se pensar que ele está curando o rapaz, salvando-o de seu desespero e de um possível suicídio (Quem falou em suicídio? Ninguém, eu é que interpretei o punhal na mão direita do rapaz como de fosse um indício de sua vontade). Qual seria o mal do rapaz? Talvez o de amor, vírus que costuma nos atacar na juventude. Talvez ele tenha sido preterido por outro, talvez sua amada tenha morrido ao suspeitá-lo morto numa batalha. Ou talvez seus versos não tenham dado certo, e ele, após cortar a coroa de louros com que pretendia ser coroado, e sofrendo ainda com os poemas que não chegaram a nascer e lhe provocam um "mal de tête" tenha pensado, como Santa Ágata, em extirpar a origem do mal (aprendi no mesmo blog que a Santa cortou seu próprio peito e que hoje é a padroeira dos pacientes de câncer de mama).  Creio que o tempo pode curar, sim, aqueles que são jovens em corpo ou, pelo menos, em espírito.
A mim ele não cura. Carrego feridas ainda dos tempos infantis, cicatrizes que doem conforme o tempo muda, e que se reabrem sem aviso, com uma palavra ou uma imagem evocada.  A ferida mais recente me transformou. Tudo me atinge com mais força embora me sinta, estranhamente, indiferente aos golpes. No sábado, porém, meu amiguinho A. sofreu um acidente, machucou sua cabeça e seus olhos verdes mostraram dor e medo. Depois de socorrido pelo pai, de passar pelo precário posto de saúde de uma cidade pequena, ele até voltou a sorrir, ostentando a cabeça enfaixada como um herói de volta da guerra. E lembrei-me de um filme antigo, de Visconti: O Leopardo. O belíssimo, mais que belíssimo Alain Delon, no papel de Tancredi, surgindo na tela com a cabeça ferida e mesmo assim conquistando a linda, mais que linda Claudia Cardinale. Bons tempos aqueles em que o cinema e o tempo curavam os doentes menos obstinados do que eu!
Espero que meu amiguinho A. esteja bem, pois lindo como Tancredi ele está!

Monday, October 13, 2014

Névoas do passado

Ontem o domingo amanheceu enevoado, as pessoas comentando que tinham acordado em Londres.  Não pensei em nada, meus olhos estavam ocupados olhando as ruas cheias de abrigos improvisados, onde dormiam crianças, adolescentes, adultos, velhos. Era como se tivesse voltado no tempo: 1992, 93. Voltei ao Brasil para encontrar as ruas de Copacabana assim, ocupadas por famílias inteiras. As vias muito sujas, cheirando mal, e as pessoas se dividindo entre aqueles que davam esmolas e os que responsabilizavam os generosos pela proliferação de miseráveis. Agora que estou aqui escrevendo, lembro de minha juventude, quando meus amigos apaixonadamente politizados abominavam a prática, então comum, da caridade. Só assim levaríamos os miseráveis a tomar consciência e os levaríamos à revolução. Comecei, nesta época, a viver em dois tempos, pensando em termos racionais e esquerdistas e sentindo com um coração cristão de direita. Direita?! Mas...
Desisti de entender, afinal, era um tempo de descobertas e eu mudava como o tempo mudava. Naquela época, um dia que amanhecia ensolarado podia terminar em tempestade, e dar origem a uma noite de estrelas lavadas, brilhando muito, despreocupadas com as nossas ações. Assim era eu, descobrindo ora a literatura, ora a arte de amar, e, muito em breve as responsabilidades da vida de casada.
Hoje, a reportagem volta a mostrar o nevoeiro de ontem e volto a um passado ainda mais distante: tardes de névoa quando ouvíamos os apitos longos e angustiados de navios invisíveis... Meu coração se apertava, o som me entristecia e me deixava melancólica, sem nem conhecer a palavra. Sentada num banco da praia com meu avô, ou na varanda de casa, com vovó, perguntava sempre a razão daqueles longos e graves lamentos e me preocupava com a segurança daquelas pessoas embarcadas, vivendo num mundo sem contornos, apagado.
Talvez essa angústia tivesse origem numa viagem de carro, voltando de Caxambu, quando o nevoeiro desceu na serra e, com medo de que algo nos acontecesse, meu avô desceu a pé, ao lado do automóvel, para ter certeza de que estávamos na estrada e não tomaríamos um desvio que nos fizesse despencar pela ribanceira...
Hoje já não tenho quem tente me proteger. Estou sozinha na névoa, mas não tenho medo, nem mesmo angústia. Olho as nuvens baixas e me lembro da manhã, mágica, quando, saindo de casa, vi os cervos pulando da névoa para o meio da rua, o líder com uma grande galhada enfeitada por uma guirlanda de trepadeiras. São três as cenas de contos de fada que entesouro: essa dos cervos, a da floresta de cristal, numa estrada no interior de Vermont, e a revoada dos pássaros sobre a I-95, que cobriu o céu e me deu a impressão de estar no fundo do mar. As névoas do passado me encantam. As de hoje, me revelam um mundo muito mais dilapidado.

Sunday, October 12, 2014

Ponto final

Dia das crianças, todo mundo com suas fotos de bebê ou de colegial, e eu sempre escondida atrás dos livros, me agarrando neles como uma náufraga.
Uma das razões para esta imobilidade é que não tenho fotos. Perdidas em alguma caixa num guarda-móveis que deixou de ser uma solução provisória e perdura, inacessível. Outra é o fato de que não gosto de viagens no tempo.  Muitas vezes, conversando comigo naquelas conversas que me fazem tanta falta, Guilherme me perguntou para que idade eu voltaria se pudesse voltar atrás no tempo. Sempre lhe disse que não queria voltar, queria o instante presente, que era sempre perfeito ao lado dele. Agora, o que desejo é acelerar, chegar logo ao ponto final de minhas histórias.

Monday, October 06, 2014

Voto zero

O jornal  de hoje veio com a lista dos deputados eleitos. Quantos concorrentes! Mais de uma página de aspirantes a deputado estadual, uma página inteira de candidatos a deputado federal... Só que minha surpresa não foi com o número de eleitores que votaram num ou noutro. Minha enorme surpresa foi ver quantos candidatos terminaram o pleito sem votos. Como tiveram a coragem de se candidatar se nem mereceram o próprio voto? Nem o de suas mães, nem o do amante (e, na língua petista, o da amanta). Como não acompanhei a empulhação eleitoral gratuita, acho que não percebi que criaram um novo programa social, o do VOTO ZERO. Um programa visando fortalecer o amor próprio e a perseverança, um teste para o caráter dos futuros selecionados para a câmara. Como, uma vez eleitos, os candidatos passam todos a serem desprezados, e o povo passa a se referir a eles como "corja", "safados", "corruptos" e "desocupados", com esse exercício de humildade, que consta em se candidatar e não merecer o voto nem do irmão, a pessoa se prepara para uma vida política significativa, que vai ensiná-los a não dar a mínima para a opinião pública. Deve ser difícil se candidatar e não votar em si. Uma renúncia e tanto! Deve doer mais do que não fazer nenhum ponto na mega-sena. Portanto, estou aqui dando os parabéns a todos os que apoiaram o Voto Zero, mas, apesar de toda minha admiração, na próxima eleição já lhes aviso que não contem com o meu voto. Nem com a minha simpatia.

Friday, October 03, 2014

Prêmios

Voltando a falar de sobrevivência, que, na verdade, devia se chamar subvivência, fui desenvolvendo pequenas estratégias para tornar o que chamo de vida um pouco mais suportável. Hoje, conversando com um amigo distante, fiquei lembrando da sensação que me invade quando dou uma boa aula, ou palestra. Saboreio aquilo mas me entristeço quando acaba e tenho que voltar para a casa, ou o quarto de hotel, onde ninguém me espera.  Só o espelho como testemunha do meu brilho nos olhos, do sorriso que aflora junto da lembrança de algum detalhe mais agradável. Compartilhar sempre esteve no meu vocabulário, mas não esse compartilhamento estéril por vias eletrônicas, e sim feito de gestos, de olhares trocados, de dancinhas, de palavras doces de escutar e de dizer, cheias de orgulho.
Como não tenho nada disso, resolvi que, a cada coisa profissionalmente boa e gratificante, me dou um presente. Em Londres, depois de minha palestra no Kings College, me dei de presente a exposição de Matisse. Ficarei para sempre com uma emoção associada à outra, com isso conto não esquecer nem uma coisa nem outra. Porque um dos piores efeitos desta subvivência é o esquecimento: como ninguém mais está a par do que se faz, caso esqueçamos, perdemos aquilo para sempre.
Então tenho esse método: para cada palestra ou aula que dou, quando fico satisfeita com o resultado, faço também algum programa bacana: vou a uma exposição, ou concerto, ou teatro ou ballet. Quando é uma atividade remunerada, então me compro um presente com o dinheiro. Nada de mirabolante, mas uma lembrança, alguma coisa que, ao olhá-la, me faça lembrar do local onde trabalhei e recebi por este trabalho. A primeira vez que fiz isso foi na Espanha. Estive na Galícia e na Catalunha. Na Galícia, recebi pelas palestras que dei e  me dei um lindo presente. Na Catalunha, o querido Pere, sem querer, iniciou o meu ritual de compensações, me levando para visitar as obras de Gaudí.
Vez por outra a gente tem uma surpresa legal, mas são meio raras. Encontra, por exemplo, um ex-aluno que lhe diz que foi estudar literatura por sua causa. Ou sabe que uma ex-professora diz que você foi uma das melhores alunas que teve. Nosso peito infla, ficamos felizes, e percebemos que, ao fim e ao cabo, nossas marolinhas nos mares literários talvez tenham sido ondas boas de surfar, no final das contas.