Thursday, December 12, 2013

Conto de Natal - 2013

Como vocês sabem, adoro escrever um conto de Natal a cada ano. Este ano não foi diferente. Comecei na semana passada, mas os compromissos de dezembro, o Facebook e o meu vício em paciência foram me atrasando, e só ontem coloquei o ponto final na história. Quando comecei a escrever, os dias eram de sol, no entanto. E espero que nosso Natal não seja chuvoso, nem triste. E que todos tenham, em seus corações, um pouco deste espírito natalino que cada vez é mais difícil de encontrar. Paz na Terra entre os seres de boa vontade!
Aqui vai ele, espero que gostem!


Wet Christmas - Natal 2013
Lúcia Bettencourt

A rua inquieta, tomada pelos carros impacientes, atrasados reluzia molhada. Vista da janela do apartamento, assemelhava-se a uma fileira de luzes natalinas, piscando: Vermelho, amarelo, verde, vermelho, vermelho…
Um ritmo se impunha. Os carros se movimentavam, depois paravam outra vez, quase no mesmo lugar. Buzinas diziam, em código, frases desaforadas. Vermelho, vermelho…
Olhos, luzes, corações, vida, tudo pulsava no mesmo ritmo. Os sinais mudavam suas cores, os carros não saíam do lugar. Outra vez as buzinas gritavam impropérios,: alguns longos, mais altos; outros roucos, cansados. Vermelho, vermelho…
As luzes de uma sirene giravam, esperançosas, mas ela reprimia seu canto. Apenas vez por outra, quando o sinal mudava de cor, ela ensaiava um gemido. Alguns carros tentaram abrir caminho, mas o espaço entre eles não permitiu manobras, e permaneceram todos nos mesmos lugares, apenas um pouco mais desalinhados. Vermelho, vermelho…
A chuva voltou a cair, violenta. Os pingos ressoavam nos tetos e davam urgência ao ritmo dos alertas e sinais. A água começou a subir, os corações aceleraram. Vermelho, vermelho…
Com a rua metamorfoseada em rio, as calçadas sumidas sob ondas sujas, a esperança de chegar em casa a tempo da ceia começou a falhar. Um relâmpago anunciou a queda de um raio e, logo em seguida, uma trovoada longa estremeceu o ar. Num estertor, as buzinas todas clamaram, mas foram engolidas pelo novo trovão, irado, acompanhando os raios que caíam próximos. Vermelho, vermelho…
Vista da janela, a rua se apagava debaixo da cortina d’água. Ali, dentro do apartamento, havia um perfume de coisas gostosas. A mesa estava posta com capricho e fartura. Os pés da dona da casa caminhavam no seco, e os saltos clicavam no ritmo da impaciência de quem percebe que os convidados irão se atrasar.Vermelho, vermelho…
A árvore de Natal piscava suas luzes. De repente, mais um clarão seguido por um formidável trovão que pareceu estilhaçar a abóboda celeste. Seguiu-se uma súbita escuridão e gritos, sustos. Vermelho, vermelho…
Na rua, os carros sustentavam a iluminação, suas luzes agora pareciam mais intensas por falta das lâmpadas dos postes e sinais. A dona de casa olhou pela janela enquanto, com dedos trêmulos, tentava acender as velas do arranjo natalino. Vermelho, vermelho…
Alguma coisa aquela luz insistente queria dizer. Era preciso fazer algo, diminuir a sensação de pânico, de tragédia. Afinal, era noite de Natal. A chuva melhorava, já era possível ver os carros, meio submersos pela rua/rio que impedia a passagem de todos. Alguns veículos tinham se apagado, mas a ambulância ainda ostentava as luzes da sirene, hipnóticas. Vermelho, vermelho…
A mulher tirou os sapatos elegantes, foi para a cozinha procurar alguma coisa que lhe pareceu essencial naquele momento. Ansiosa, abriu gavetas e armários, juntou coisas, cortou, encheu, separou. Na cozinha escura, iluminada por velas, o tempo parecia correr mais rápido, pulsando no ritmo das luzes fracas que vinham da rua. Vermelho, vermelho…
Com tudo arrumado, ela ainda lembrou de tatear embaixo da árvore de Natal, tirar as luzes da tomada, retirar as caixas dos presentes, juntar tudo num enorme saco de lixo. Lá fora a chuva já havia parado, mas as águas se agitavam em ondas. A mulher saiu do apartamento, carregada de sacolas e caixas. Começou a descer as escadas, ruidosamente. Alguns vizinhos escutaram os ruídos inusitados, abriram as portas, temerosos. Ao compreenderem o que se passava, foram se unindo a ela. Vermelho, vermelho…
As lâmpadas de emergência deixavam espectrais as faces de todos. Mas o número de pessoas descendo as escadas foi aumentando, e os sons tornaram-se risonhos, animados. Lá embaixo, os porteiros de plantão ajudavam homens, mulheres e crianças, calçando galochas e capas de chuva, equilibrando sombrinhas e embrulhos, portando lanternas, toalhas, e grandes caixas pesadas em cima de carrinhos de feira, carrinhos de supermercado, de bicicletas. Vermelho, vermelho…
As pessoas se espalharam entre os carros, e batiam nas janelas embaçadas oferecendo as coisas que traziam em  seus recipientes. As ceias de Natal repartiram-se com aquelas pessoas ilhadas, famintas, cansadas. Criancas chorosas saíam de dentro dos carros para braços solícitos que lhes davam o que beber, o que comer. Esquecida, a sirene continuava a girar: Vermelho, vermelho…
As águas se escoavam, já era possível abrir as portas dos automóveis. O movimento entre os carros se multiplicou. Pessoas de outros prédios se juntaram aos moradores do primeiro, todos os carros foram confortados com aquela celebração improvisada. Aqui e ali ouviu-se o espoucar de uma rolha, os ruídos alegres de brindes, e vozes desejando benesses. A mulher que havia iniciado o movimento chegou à ambulância, fechada e quieta, no meio da festa que se formara na rua. Lá dentro, inquietantes ruídos abafados escapavam. Vermelho, vermelho…
A mulher ficou olhando a luz da sirene, girando, inútil, como uma estrela ensanguentada. Em suas mãos, as ofertas que trazia começaram a pesar, e ela sentiu o coração aflito. O relógio marcava quase meia-noite. Outras pessoas notaram sua imobilidade frente à ambulância fechada, e agruparam-se ao redor do veículo, cuja luz pulsava revelando seus rostos preocupados. Vermelho, vermelho…
Ouviu-se um grito agoniado, quase um uivo. Depois o silêncio reinou por instantes que pareciam congelados. Finalmente, a porta se abriu, e um enfermeiro, cansado e sujo de sangue apareceu,  Vermelho, vermelho…
Nos braços ele segurava uma criança que emitia seus primeiros vagidos. Alguém começou a cantar uma velha canção, baixinho: “Noite feliz”… Logo, todos cantavam. Era meia noite.  Trocaram-se presentes, abraços foram dados, mãos apertadas, faces beijadas.  A sirene, exausta, girava cada vez mais lentamente. Vermelho, vermelho…

Ela também improvisava e se transformava numa estrela anunciando vida. Vermelha, quente, pulsando como a emoção que tomava a todos naquele auto de Natal inesperado…

Thursday, November 14, 2013

Feliz aniversário! No caminho de Swann completa 100 anos.

E eis que a Recherche chega aos 100 anos de publicação!
Parabéns, Proust, por ter realizado uma obra tão duradoura, que ainda emociona a leitores vivendo no século XXI.
Declaro meu amor aos quatro ventos – ao menos a dois ventos virtuais, o Facebook e este meu blog. Explico minhas razões: sinto-me retratada e amada na obra. E imagino mudar-me para dentro do romance, numa ida a Pasárgada. Depois, com bom senso, me questiono: seria eu amiga do Rei, na Recherche? Com qual personagem eu poderia me identificar?
Com nenhuma duquesa, pois sem dúvida não tenho este prestígio social. O brilho com que ele retrata suas duas principais divas (a duquesa e a princesa de Guermantes) não pertence a elas, no entanto. São dois astros fulgurantes, mas sem luz própria: o nascimento, a fortuna, o esnobismo próprio e de seus contemporâneos transformam-nas em jóias dos salões.  A duquesa ainda tem "esprit", uma inteligência vivaz e pronta, que a faz parecer uma mulher superior. Pouco a pouco descobrimos a precariedade de sua vida particular: a infelicidade no casamento, sua maldade e egoísmo, sua superficialidade. E o vazio de seus ditos mordazes. E o tempo não tem piedade com ela, vencendo-a.
Nem sequer a irmã de Legrandin,  enobrecida pelo casamento, mas depois se descobrindo uma nulidade no mundo que julgava ter conquistado. Ela sofre, casada com um homem medíocre cujo único valor é seu título de nobreza provinciana. Sua cultura musical, que ela acha profunda, não passa de um verniz, pois não se baseia no amor à música em si, como o de sua sogra antiquada, babona e deselegante, ex-aluna de Chopin. Mme. Cambremer-Legrandin definha e luta para obter um prestígio que está sempre além de seus esforços.
Proust não tem piedade com quem tem alguma sensibilidade e pendor artístico, mas se descaminha e se deixa levar pela vida social, embora os compreenda e, na maioria dos casos, lamente.
Mme. Verdurin, inteligente e riquíssima, faz da arte um instrumento de ascensão social, pecado que vai ser punido pela mordacidade com que o narrador a descreve. Ele revela todas as suas estratégias, desmascara suas intenções, mostra as garras que ela não hesita em usar contra quem a fere. No entanto, ela sabe se "fazer" no mundo social. E genuinamente apoia as artes, embora seu interesse seja pela criação e não pelos criadores de arte, a não ser que estes se "escravizem" e a "bajulem", e nunca desertem seus salões. Talvez por isso ela seja "premiada", ao final, no baile de máscaras, a que ela usa é a desejada, mas é ainda uma máscara.
As amadas do narrador não combinariam comigo: Gilberte, renegando o próprio pai e Albertine, ambígua demais, fantasiosa demais, sem uma família, sem uma classe definida, e um joguete nas mãos de um namorado neurótico e, sem dúvida, mais preocupado em impedi-la de amar a outrem do que em fazer amor com ela.
A mãe e a avó, e Celeste, a empregada de toda a vida são as figuras mais espiritualmente nobres da obra. A mãe e avó com seu altruísmo exacerbado estão muito além de minha capacidade. Já Celeste… talvez seja ela a figura mais bem construída de toda a obra. Adoro a Celeste. Detesto a Celeste. Seus lados bons e maus se equivalem, se alternam, convivem sem contradição e ela consegue se impor mesmo estando numa posição das mais subalternas e frequentando a obra quase que em todos as situações. Ela, tão verdadeira, é, ao mesmo tempo, quase que uma alegoria do "povo francês"
Odette? Grande personagem, seja como cocotte seja como grande dama, a gente se liga a ela e à sua beleza atemporal, e não sabe ficar sem ela, mesmo não sendo "nosso tipo".
Charlus? Swann? Saint Loup? Quando li o romance pela primeira vez, na minha juventude, fui me apaixonando por um e por outro, sucessivamente me decepcionando e fazendo, depois, as pazes numa amizade eterna e doce. O único a envelhecer é Charlus. Os outros dois morrem cedo e são, de certa maneira, poupados de sua inconsequência com relação às artes. Pois essa é a única falha que nunca é perdoada: trair o talento artístico.
Mesmo assim, Morel, que nunca trai seu talento como violinista, é mostrado como um canalha. Em todos os outros personagens suas imperfeições impedem que eles sejam resgatados pela arte. Em Morel, que triunfa pela arte, o autor despeja, sem piedade, seu desprezo por alguém mesquinho e, mais do que isso, mau. Como se nos alertasse de que a arte em si, sem o compromisso com algum tipo de ética, não salva ninguém.
Acho que eu gostaria de ser o narrador. Queria criar uma obra assim, ao meu redor, como um casulo, e deixar de ser esta lagarta que sou. Ao menos na minha "procura" eu teria as asas de borboleta que a vida me negou.

Monday, November 11, 2013

Uma carta de amor

Sim, meu querido ausente.
Escrevo uma carta de amor, nesta manhã de sol claro e brisa fresca, e imagino que talvez você tivesse prazer se a recebesse. Mas, talvez não. Seus interesses podem ser outros agora e, sem nem sequer lembrar que existo, se esta carta chegasse até você, sua reação seria de surpresa e de um certo enfado, palavra antiguinha que nós ainda conhecemos e talvez seja este nosso único elo em comum: palavras antigas, em desuso.
Entre nós existe apenas o não-dito. O silêncio. Não o silêncio do ponto final, mas o das reticências.
Não apago o que escrevo. Deixo aqui, na tela, esta carta que jamais será enviada, e me pergunto a razão para escrevê-la. É que anseio por companhia, por olhos que se iluminem ao me ver, por afagos. E me iludo ao pensar que sim, ainda é possível amar. Sei o contrário, mas me iludo, nesta manhã de sol claro, de céu pálido, de mar desbotado. Nesta minha solidão, nem mais o verão aquece, e aqui seria o local de colocar um sinal de reticências, mas nem é preciso.  Em todos os sentidos. No não-sentido.
Ausência, o meu único presente. E, assim, coloco o ponto final, fazendo mais curta esta carta de amor ridícula. E gosto desse diminutivo tão essencial que já nem mais parece um diminutivo.
Gostaria de que sua mão agora acariciasse meu rosto e que você me dissesse que não é motivo para desesperar, que amanhã é terça, e vou acordar diferente, mas talvez não acorde e que não tem importância. E por isso termino, assim, reticente e imprecisa, talvez …

Wednesday, November 06, 2013

Falas e observações

E la fui eu para San Diego, falar sobre dois filmes: um de Gláuber Rocha, "Terra em transe"; outro de Teresa Prata, baseado em romance do Mia Couto, "Terra sonâmbula".
À primeira vista, os dois têm pouco em comum, mas o que me chamou atenção foi o fato de a literatura ocupar um papel importante em ambos. Achei graça no filme que se apoia na escrita… E também tem o lance político. Teresa diz que não fez um filme político, mas ela mesma afirma que tenta fazer, com sua obra, que as pessoas vejam a guerra de um outro ponto de vista. Contemplar a guerra significa meditar sobre as forças políticas que levaram a essa guerra. Mas ainda tem mais um ponto de intersecção: o povo. Em Gláuber ele está presente, como coadjuvante, mas aparece como massa sendo manipulada. Em Teresa ele também se encontra presente, só que já manipulado, regenerando-se. O otimismo e um certo lirismo da jovem a distancia da perplexidade e urgência de Gláuber, que faz uma denúncia. Ela já vê as coisas terminadas, a catástrofe já ocorreu, e daí uma certa  lentidão…
Bem, afora minha palestra, estive presente em outras sessões e o que me chamou a atenção foi a quantidade de sessões dedicadas a "leituras" de obras literárias. Fiquei conhecendo autores novos, e gostei muito do que escutei. Outra coisa que me agradou foi o fato de que agora temos sessões em "food studies". Gente, quando comecei minha tese e explicava o que ia fazer, as pessoas me olhavam desconfiadas, pensando que eu queria escrever um livro de receitas, ou algo assim… Ninguém entendia, vejam só. E agora já fazem até sessões em separado sobre o assunto.
Mais um comentário sobre o PAMLA foi a confirmação de uma coisa que estava notando já há algum tempo: os personagens estão envelhecendo. E daí o interesse por essa "geriatria literária", e por exemplo, sessões sobre: as avós na literatura francesa. Claro que assisti à palestra sobre a "avó proustiana". Adorei.
Mas não foi só a conferência, a cidade de San Diego é encantadora. E o hotel onde ficamos hospedados e onde assistimos a palestra, é excelente, bem à beira do mar, com barquinhos, barcões, bicicletas e até  aquela motocicleta em pe, cujo nome sempre esqueço e parece com Sedgewick. Para mim, a temperatura estava muito fria, mas para os americanos radicados em lugares como Minnesota, era o paraíso e alguns foram nadar e aproveitar o bom tempo. Eu fui até a praia, fora da baía, ver o Pacífico, mas não tive coragem nem sequer de molhar os pés na água.
Agora estou de volta ao Texas, e já vejo os sinais do outono: vento, árvores mudando suas cores, chuva… A temperatura, para mim, está um gelo. Mas com um casaco ou dois, vou-me aguentando. Em breve volto ao Brasil, e ao calor. Ou ao ar condicionado, pois calor demais enjoa…

Thursday, October 10, 2013

Diário da depressão

E por que será que, num dia lindo assim, me descubro deprimida e sem ânimo? Por que estou zanzando, desde cedo, de uma poltrona a outra da casa, desejando alguma coisa que não sei o que é?
É bem verdade que outubro é o mês mais cruel. A cada dia de outubro o espinho se finca mais profundamente e me arranca lágrimas. Reajo. Resisto. O mar, lá fora, se agita, e eu me agito também.
Deprimida com o que vejo, deprimida com o que escuto. Desencantada com amigos e com o mundo, sinto dificuldade até para trabalhar…
Bem, desabafei.
O que eu queria mesmo era um milagre…

Wednesday, October 09, 2013

Lições que ainda não aprendi.

A vida nos ensina… O quê, mesmo?
Achava que uma das lições que deviam ser aprendidas era a de "não cuspir no próprio prato". Pelos vistos, estava errada. Vejo que as pessoas que são levadas para representar o país com o aval de uma instituição, assim que recebem o microfone, desqualificam a instituição e o país que estão ali representando e, com isso, são ovacionadas. Bem. É assim? Deve ser assim? Num raciocínio lógico, se você foi a pessoa escolhida por uma instituição e uma sociedade racista, homofóbica, incompetente, etc. das duas uma: ou você se iguala a essa instituição/sociedade ou você as denuncia antes de se beneficiar dos privilégios ofertados por essa instituição/sociedade. Usar os benefícios e denunciar quem lhe proporcionou os mesmos, não é uma postura ética e nos coloca a todos como ou otários ou aproveitadores. Creio que não aprendi a lição número 1 da nossa pós-modernidade: "ética é para os otários". Ou talvez a primeira e mais importante lição seja: "aparecer a qualquer custo".
Mudando de lição, vejo esse debate sobre as biografias: uns são contra, outros são a favor. Enquanto isso, fui assistir ao filme Salinger, uma biografia de J.D. Salinger, autor de O apanhador no campo de centeio. Gostei do filme. Mas o que ficou martelando em minha cabeça foi o "mea culpa" que o diretor fez na entrevista final. Como não existem identificadores, fiquei sem saber quem era esse último entrevistado, que confessa que nunca encontrou o escritor, mas "quase" que conseguiu uma entrevista. Numa de suas conversas com uma amiga de Salinger, ela lhe perguntou:"Se você o encontrasse pessoalmente, o que ia querer saber?" O homem respondeu que gostaria de saber se ele continuava escrevendo, e se ele estava bem e tinha planos para o futuro. A mulher respondeu afirmativamente a todas essas questões e lhe disse que, uma vez que ele já estava de posse de todas as informações que desejava, não havia motivo para encontrá-lo pessoalmente. E esta é a minha dúvida: O que é que eu quis saber ao ir ao cinema, ver a vida de Salinger? O que essas informações sobre a vida amorosa, o que esses acertos de conta entre familiares e fãs influiu na minha leitura de suas histórias? Nada. Agora tenho um rosto para colocar no autor (antes eu nunca tinha nem sequer visto uma foto sua). E agora que sei que ele foi um péssimo marido para suas mulheres e um mau pai para seus filhos, qual a importância disso na sua obra?  Mas saber que ele levou seus manuscritos para a guerra, que brigou com um amigo por causa do título de uma história, que era obsessivo com seu texto, isso sim vai me obrigar a ler o texto com uma maior atenção aos detalhes. Portanto, biografias – literárias – têm seu valor, não como reality shows nem acertos de conta, mas como reveladoras da relação do autor com sua obra. Mas duvido que isso alguém queira saber. Tenho amigas que estão lendo a vida de Catarina da Rússia, e seu maior encantamento é com a quantidade de amantes que a rainha teve. Até agora nenhuma me disse o que levou Catarina a obter o apelativo de "a grande". O que ela fez, além de ir para cama com apreciadores de vodka e generais? Alguma coisa ela realizou, mas deve ter passado desapercebida ao biógrafo. Ou aos leitores.

Gregor Samsa em Tóquio

Acabo de ter uma visão. Na verdade, foi mais uma "audição". Um escritor, no Japão, acha que é muito original fazer seu personagem se apaixonar por uma boneca. Se ele tivesse lido o genial Felisberto Hernández, veria que essa história rendeu uma obra maravilhosa, Las Hortensias. Isso muito antes de inventarem essas bonecas infláveis que estão enlouquecendo alguns homens e muitas baratas.
Baratas?! É que só assim entendo a frase do escritor, que ao invés de usar o verbo consumar para o ato amoroso, usa consumir. Entendo, então, já que silicone não é um alimento apreciado por humanos, que seu personagem será uma barata. Isso para evitar o chavão do sexo como produto, e blá, blá, blá. Pois suponho que escritores não apreciem o uso do chavão. Será?

Saturday, October 05, 2013

Festival de cinema

Estamos em pleno festival (ou seria maratona?) de cinema .Fui a três filmes por dia, visitei Botafogo com assiduidade, vi o que queria e o que não queria. Perdi alguns filmes que gostaria de ter visto. Agora vou perdendo o fôlego. Hoje, apesar de sábado, só tenho dois filmes. Um já assisti: e foi a prova de que as sinopses podem ser enganadoras. Vou a outro mais tarde, com a recomendação e o estímulo de uma amiga.
Vi muita bobagem, vi coisas muito sérias, algumas muito chatas. Vi, também, bobagens muito chatas. Do que vi, acho que pouco merece ficar registrado por escrito. A grande beleza; o último dos injustos. Alguns filmes me surpreenderam: Como não perder essa mulher foi muito melhor do que eu esperava, apesar de não ser "my cup of tea". Blue Jasmine me surpreendeu às avessas. Apareceu apregoado como "o melhor Woody Allen de todos os tempos" e eu achei uma versão envelhecida, desencantada e cínica de Annie Hall.
O que foi exatamente como eu esperava foi a loucura do Julio Bressane. Totalmente Julio Bressane. E apaludido no final, para desespero de minha amiga, que não se conformou com o filme, nem com o outro curta, que o antecedeu, e cujo nome não me lembro
Hoje assisti dois curtas no computador. Do inferno ao paraíso leva mais ou menos 15 min. e o Cine centímetro. Gostei de ambos. Queria ver a serpente que dança, mas não encontrei.
E agora, lá vou eu de novo, pelo mundo afora. Vou conhecer o Cinema São Luís. Que coisa!

Thursday, September 26, 2013

Pudor das palavras

Existem palavras que deviam andar por aí de burca, até porque não existem em estado dicionarizado, são uns seres híbridos e assustadores. Hoje topei com (perdão, perdão!) "convulsivante". Achei que a dita cuja deveria ser imediatamente "emburcada", antes que vire uso comum. Pois que coisa horrorosa que andam as nossas contemporâneas invenções vocabulares! Querem ver uma outra que poderia desfilar de burca, para ver se nos esquecíamos da distinta? "visualizar"! Já repararam que ninguém mais usa o bom e velho verbo ver? Todos querem visualizar o mapa, ou as fotos, os os novos modelos de carro. Os botões eletrônicos do telefone nos convidam a visualizar o número chamado, e por aí vai.
Não vou me estender, até porque não tenho tempo para isso, estou com muito trabalho pendente. Mas fica aqui meu protesto. Principalmente porque a palavra convulsivante que me arrepia até a raiz dos cabelos, veio inserida num poema de amor. Por favor, ouçam a voz da experiência, amores podem ser expressos em sussurros carinhosos, ou mesmo em palavras com arestas, ferinas. Amores podem ser celebrados com palavras banais, corriqueiras, mesmo. Evitem, no entanto, essas palavras hediondas, causadoras de soluços e engasgos. Principalmente no meio dos corpos convulsos, pois um deles pode sufocar e morrer. 

Saturday, September 21, 2013

Saqueando a realidade

Sou de uma estranha raça de bípedes que adora ir a palestras literárias. Vou, não só para falar, mas também para escutar. Isso é o que me torna "estranha". Geralmente as pessoas comparecem por alguma razão alheia ao discurso do "outro". Vão escutar a própria voz. Vão porque a professora vai passar uma lista de chamada (alguns, uma vez assinada a lista, saem descaradamente). Ou vão porque devem favores a quem fala. Outros, ainda, vão porque têm a chance de pegar o microfone que se abre para perguntas e, sem perguntar nada, fazer uma conferência paralela. Algumas pessoas vão às palestras por causa do prestígio do local, ou do palestrante. Algumas estão ali como eu: esperando para escutar o segredo revelado do universo. Claro que nem sempre a gente escuta algo que preste, mas quase sempre aprendo alguma coisa, boa ou má.
Ultimamente, tenho escutado a mesma coisa, repetida ora como confissão, ora como queixa. Um escritor que confessa que coloca fatos reais nos seus romances. Uma que reclama que, conversando com outro escritor numa festa, ou num bar, disse alguma coisa interessante – ou proibida, daquelas que se diz na intimidade, entre amigos – e que recebeu o aviso: "vou usar isso no meu livro, já estou avisando!" Numa diferente versão, fico sabendo de livros que se dizem de ficção, mas que contam as histórias e os nomes de seus conhecidos, apenas tomando algumas "liberdades poéticas".
Então quero propor aqui a leitura de A louca da casa, de Rosa Montero. Ela nos dá uma boa lição do que seja o trabalho literário, que toma como ponto de partida a realidade, mas depois deixa que a "louca da casa", nome que Sor Juana dava à imaginação, apropriar-se da pena e narrar. Assim, um episódio como (já não me lembro bem qual é) uma briga com o namorado e uma posterior ida à casa dele, dá origem a umas três histórias diferentes, completamente diferentes do que se passou – se é que se passou. Em  Rimas da vida e da morte (acho eu que é esse o título) Amós Oz dá uma lição magistral de como tirar leite das pedras, ou seja, ficção da realidade. O livro principia com uma possível confissão autobiográfica, de um autor que vai a uma palestra para ouvir sempre as mesmas perguntas, superficiais,  e, mesmo no meio do tédio e das dúvidas, ele é capaz de fazer dessa plateia uma matéria prima pulsante, viva, e, no entanto fantástica, onírica.
Só queria registrar aqui, neste meu cantinho escondido, que saquear a realidade e colocá-la entre as páginas de um livro não cria uma obra realista, cria, no máximo, uma reportagem. Romances não são reality-shows, são muito melhores do que isso. E o escritor não é uma câmera escondida, flagrando amigos e conhecidos em situações embaraçosas, e colocando-os na berlinda. Nem mesmo a nossa própria vida merece se expor desta maneira, nua e crua, sem um bom photoshop literário. Literatura é arte e arte é surpresa e reinvenção. Vejam os impressionistas, que saíram de dentro de seus estúdios, procuraram pintar a natureza e fizeram quadros que ninguém reconhecia como "realidade". Eles nos ensinaram, ampliaram os limites do que vemos como "real". Ensinaram que tudo o que vemos é mediado e nos fazem pensar até hoje. Pois taí o da Vinci (será que é ele mesmo?) que não me deixa mentir: "arte é coisa mental". E eu acrescento: arte também é generosa: por que ferir um só, se com um pouquinho de trabalho a gente pode ferir a todos?

Sunday, September 15, 2013

recados e mensagens

Vou contar um segredo de polichinelo para vocês (caso alguém não saiba o que é o tal do segredo de polichinelo, é aquele segredo que todo mundo já conhece, menos a pessoa que está espalhando o caso, que acha que é um grande furo)
Bem, meu segredo – conhecido por todos – é que sou péssima nessas coisas de computação, mas adoro todas essas novidades. Acontece, então, que todas as minhas ações cibernéticas são à base de erro e acerto, e percorro caminhos tortuosos para fazer o que os outros fazem em dois segundos, com um único comando.
Para acessar este meu blog aqui, que mantenho obstinadamente há anos, como um amigo, meu caminho é através do google. E, às vezes, me assusto: descubro que ele está classificado no ranking Brasil (provavelmente em último lugar, me deu preguiça de ir lá olhar); descubro que existem outros blogs semelhantes e que alguém (isso é que me admira, mesmo que esse alguém se chame Logarítmo da Silva) se deu ao trabalho de comparar e classificar. Não fui lá ver, para me proteger. É que sou parcial aqui com este meu bloguinho de estimação, mas sei de meu espírito crítico. Se olhar para os blogs estranhos que outros comparam com o meu e encontrar mediocridade, vou ficar arrasada. Pois no meu não sou capaz de ver minha própria banalidade, mas no dos outros… É outra história!
Só que desta vez não resisti a uma página que dizia "recados do nadanonada blogspot.com". Quis ver que recados eram esses que eu andava mandando sem saber. Juro que nunca mandei nada daquilo, coisinhas bobocas como alfabeto da amizade e retratinhos de bebês falando de resoluções para o novo ano. Que droga! Essa ida a esse descaminho virtual só serviu para me deixar deprimida: afinal, meu bloguinho, quase um diário, pois estou mesmo convencida de que ninguém, além de mim, o visita, na verdade é escrutinizado pelo sr. Logarítimo da Silva, que atesta que ele recebe X visitas mensais, e manda recadinhos idiotas, ou, mais acuradamente, que algum espertinho usa o nome de meu blog para mandar recadinhos infantilóides para o ciberespaço.
Estou pensando que as visitas devem ser todas de Obama Dearest (tenho que tratar bem ou ele ainda me acusa de usar armas tóxicas). Imagino que esse meu blog está ajudando a recuperar a economia americana, uma vez que eles precisam empregar o Sr. Logarítimo da Silva e o Sr. Tradutor de Abobrinhas, além de outros mais, visto que continuo insistindo em manter esta página. Pela longevidade, ela se tornou importante, sem dúvida. Já virou parâmetro e inspiração.
Viva o mundo web e nossas mensagens circulantes e ociosas. Esta semana li que estamos acelerando o aquecimento global por armazenarmos tudo nas "nuvens". Daí fico aqui pensando, num ET arqueologista, quando se deparar com esse meu blog, daqui a anos luz. Será que o Sr. ET da Cunha vai ter a mesma reação admirada de quando, hoje, contemplamos a arte rupestre? LINDO! Lindo. Legal… Por que será que eles só desenhavam (conchas) (cavalos) (mãos) (caçadas)?
Repetitivos e fastidiosos, convencidos de nossa própria genialidade, vaidosos, eu me enquadro nesta multidão que começou deixando sinais nas paredes de cavernas e agora deixa suas marcas na solidão das esferas.  E digo ao Sr. ET da Cunha, não se decepcione quando, finalmente, conseguir decifrar nossos bits e bytes. Se eles não trazem o segredo da vida, ao menos ocupam as nossas. Eu elaboro, você decifra e todos sonhamos.

Saturday, September 14, 2013

O bicho está feio!!!

Um concurso de feiúra, coisa de nossos tempos conturbados, ocupou jornais e internet. Não sei se teve muita repercussão, mas ocorreu; e o eleito foi o "peixe-bolha". O peixe bolha é a massa cor de rosa no alto à direita. Blob (batizei-o assim) não me parece ser o mais feio. Acho que ele não me assustaria, se acaso, num mergulho, topasse com seu muxoxo infeliz lá nas águas escuras do oceano. Uma cabeça derretendo de tanto pensar tristezas, cismando com o fim de uma era.
Acho que não gostaria é de  abrir uma porta e descobrir um Ai-ai arregalando os olhos para mim. Seria como entrar na tela de Munch, o bicho contribuiria com a cara preocupada e eu com o grito.
No meio destes bicharocos, o macaco narigudo posa de galã. Parece um Jean Paul Belmondo do mundo animal, olhando-nos meio de lado, com alguma ironia. Suponho que essa semelhança só seja válida enquanto permanecer calado. Falando pelo nariz, comprido como dois dedos, deve ficar mais feio e muito mais estranho.
Para situar, o Ai-ai é o orelhudo à esquerda de Blob, e o Jean Paul é o macaco arruivado imediatamente abaixo do dito Blob. À esquerda, embaixo, está a cara vermelha da Uacaraci. Diz a legenda que a fêmea canta para seduzir o macho. Espertíssima, pois talvez sua voz seja bela e sua canção maviosa. Sua cara parece ter sofrido um peeling e talvez ela consiga emprego como mascote de uma campanha centrada nos dermatologistas. Um paciente, com a cara em fogo depois de ser abrasada por ácido, certamente contribuirá para minorar as mazelas de sua companheira de infortúnio.
Nesta linha de raciocínio, a toupeira cega, que está à direita, embaixo, poderia estrelar a campanha voltada para os consultórios de oftalmologia, mas, lendo a legenda que acompanha sua foto e que nos garante que ela cava túneis de até 20 metros, acho melhor fazer dela a mascote da Papuda. Ela também escaparia de lá, e talvez os outros "não-presos" lhe dessem um mensalinho ecológico.
Só me falta comentar a rãzinha fashion do Titicaca, envolta em peles, com seus olhinhos de boneca e suas dobras e pregas que a fazem mascote da alta-costura. Qualquer hora vamos ver uma rãzinha dessas numa loja de brinquedos pertinho de você. Aposto que a Pixar ou os studios Disney já estão elaborando histórias para ela. Uma fofa! Totalmente fashion! Só precisa de um nome. Tite? Tite Pelechen?  Übermodel da ecologia, arrasando na semana da moda de Paris!

Sunday, September 08, 2013

Violência

Vivemos num mundo violento demais. Não sou eu que o digo, são os jornais, a TV, os filmes. Eu até que não tenho me encontrado muito com a tal violência. Não tenho testemunhado abusos, a não ser o do supermercado aqui em frente, que insiste em ocupar e emporcalhar nossas ruas.
Aqui no prédio as pessoas são educadas. Os funcionários são educadíssimos. Na rua, como o Leblon ainda é uma aldeia, somos reconhecidos e cumprimentados por quase todos. Isso quando somos anônimos, ou seja, essas pessoas que passam desapercebidas e nem precisam de máscaras. Pois sei que sou reconhecida, mas tipo: lá vem a dona do cachorro branco, olha o bigodudo cantor, e onde será que anda o moço das cadeiras. Gente de quem só lembramos ao cruzarmos na rua e de quem até sabemos o nome, mas na maioria das vezes não. Por exemplo, tenho uma vizinha que gosta de plantas, cujo marido está com dificuldades para andar, e que não é brasileira. Sei que gosta de vestir roupas claras, e que é muito disciplinada. Sei de muitas coisas sobre ela, mas não sei o seu nome.
Outro vizinho toca piano, pratica todos os dias. Um outro (talvez o mesmo) fuma maconha. Sinto o cheiro todos os dias. Uma tem cachorro, outra tem netos. Uma está sozinha, não tem filhos, perdeu o marido, a família mora longe. Uma é ambiciosa e segura de si. A outra é recém-chegada ao país, tem um filho pequeno e não fala português. Aquele usa perfume demais, sempre que posso, tomo outro elevador, por conta de minhas alergias. Mas quem são essas pessoas, realmente? Anônimas – sem nomes, sim, mas com histórias e características próprias.
Talvez seja esta a razão de nos saudarmos e de sermos gentis uns com os outros. Eles aparecem para a gente com algum sinal de humanidade. Quando estamos numa situação de "massa", as coisas se tornam diferentes. Pessoas se acotovelam nos locais muito cheios, empurram, gritam com quem eles acham que está em desvantagem. Pessoas são horríveis quando são apenas "gente". Grosseiras. Perderam a delicadeza e seus sorrisos.
Nós somos seres horríveis quando viramos "massa". Abusamos do nosso ambiente, abusamos de tudo e de todos. Somos um grupo de infelizes, achando que o mundo nos maltrata, mas nós é que maltratamos o mundo.
Digo isso por causa de minha leitura da Revista de Domingo. Um fala do meio ambiente ameaçado, outra fala da sala de espera do analista e do esforço pela invisibilidade. Mas há uma história que me encanta. A do médico que inventa exames baratos e que se preocupa em identificar doenças negligenciadas porque são, erroneamente, classificadas como "doenças de pobre".  Exames que custam apenas 5 reais. Acho que contribuir para isso faria mais bem à alma da cronista que frequentar o consultório do analista e se preocupar com a etiqueta de cumprimentar ou não o paciente da sala de espera. Ela que estenda a mão a quem precisa, e que abra a bolsa que seus leitores generosamente recheiam. Pessoas como ela, com nome, são exemplos para anônimas como eu. Mas é pelo médico anônimo e estrangeiro que a lição verdadeira é ministrada. Meus parabéns a ele. Prometo que vou decorar seu nome e aprender sua lição.

Saturday, September 07, 2013

cidade sitiada

Venho para meu escritório e vejo navios de guerra no mar. Então é isso? Entramos em guerra? Ou essa é apenas uma demonstração meio anacrônica, pelo dia da Independência?
Como comemoraria meu dia da independência? Para começar, o que é independência? Sou uma pessoa gregária demais para querer ser "independente". Por exemplo: jamais me meteria numa aventura como a de Cheryl Strayed, caminhando um montão de km a pé, numa trilha no alto das montanhas, sozinha. Mas eu teria seguido meu marido, se ele tivesse encasquetado uma aventura dessas. Reclamaria antes, sem dúvida. O quê? Atravessar o Atlântico de barco? Só nós dois? E meus livros? E se a gente ficar doente? E… Mas, ao mesmo tempo, estaria preparando as malas, comprando equipamentos (claro que os mais estapafúrdios, tipo uma coleção de bandeiras sinalizadoras com um manual, para poder mandar mensagens caso todos os equipamentos do barco pifassem, ou um dessalinizador de água do mar que sem dúvida salvaria nossas vidas depois de ficarmos à deriva por causa de uma calmaria). A primeira coisa que colocaria na mala seria uma roupa bem linda, para usar no dia da comemoração  ao aportarmos em nosso destino. Depois, um caderno, canetas e lápis, meu laptop (Gui, tem certeza de que vamos conseguir carregar a bateria?). Uns bons litros de filtro solar e de creme hidratante. Depois iria, amorosamente, escolher os CD's e os DVD's para o meu marido. Aquele Dvd do Gato Barbieri tocando Astor Piazzola em Paris não podia faltar. O Music for Montserrat também não. BBKing? Ah, mas o Gui gosta tanto… E o John Coltrane? Claro! My Funny Valentine, com Chet Baker? Indispensável. Liebestod? Esse vai, junto com Gymnopédie.
Depois, alguns livros, para ler a dois. A arte de amar, de Ovídio, pois desta vez ele não me escapa! Será que levo os 50 tons de cinza? Nah…pelo que andei folheando, não vale a pena…
No dia aprazado, lá estaria eu, bem acomodada no barco, já preocupada com alguma outra coisa, mas, cinco minutos após termos saído a boca da barra, depois de lambuzá-lo bastante com o protetor solar, apesar de seus veementes protestos, já estaríamos rindo e felizes com a nossa aventura. E, mais tarde, quando um desanimasse, o outro o ampararia, alternando forças e sonhos.
Como saí do estado de sítio em que estamos para esses sonhos de viagem?
Os sonhos, quase sempre, me bastam. Acho que, desta vez, talvez tenha sido a leitura do poema de Ivan Junqueira em homenagem ao Luís Paulo Horta, combinada com a coluna do Arnaldo Bloch, que fala do Livro da Vida e das memórias. Aprendi, com o povo Sami, lá da Finlândia, que as pessoas não morrem enquanto existe alguém que lembre sua canção. Pois cada um que nasce recebe uma canção própria, e, nas reuniões do clã, eles sempre cantam as suas canções, e a dos antepassados, e enquanto aquela canção for lembrada, a pessoa, mesmo desaparecida, ainda estará viva.
Pessoas queridas têm muitas canções. É difícil não pensar nelas, mesmo quando a gente olha para um encouraçado singrando esse belo mar de anil… Ou para um cartão de visitas de uma galeria, com um lindo quadro de Pancetti. Pequenino, esse meu cartão. Mas vou emoldurá-lo, como a um diploma de vitória.

Sunday, September 01, 2013

Como era gostoso o meu poeta…

Veríssimo, hoje, nos brinda com uma divertida especulação sobre a vida em outros planetas, e de seu encontro com um poetófago. Imaginem: um ET carambolando de astro em astro à procura de "poetas" e que, na Terra, descobre um suprimento considerável destes.
"A Terra é o único planeta do universo conhecido em que as pessoas dão nome aos ventos", diz o viajante intergalático, como prova de que somos todos poetas. Em minha imaginação, já vejo o interlocutor do cronista, de olhos sonhadores e língua gulosa lambendo os bigodes.  Peraí! Será que ET tem bigode? Acho que nunca vi no cinema um assim. Geralmente eles são cabeçudos e têm alguma semelhança, maior ou menor, com algum réptil. Mas esses são os invasores incongruentes com tanta tecnologia que lhes permite chegar até a este canto esquecido do sistema solar, mas incapazes de pensar. São vírus que atacam com armas letais e destroem aqueles a quem conquistam.
O ET do Veríssimo e da minha fantasia é um gourmet. Vem à Terra para se alimentar de poetas, e sem dúvida aqui encontrará grande fartura deles. Basta olhar no Facebook que ele vai encontrar pessoas insistentemente poetando a torto e a direito, e enviando seus versos para uma lista de amigos que, por sua vez, também poetas, mandam versos de volta, adornados de fotos de todos os tipos,  fotos de beijo, de animais e vegetais, de céus nublados, de tempestades furiosas, de crianças fofinhas ou de velhos tristes.
Misturo a crônica do Veríssimo com a do Xexéo, falando sobre sonhos… Provavelmente o extraterrestre, ao lamber seus bigodes, estivesse pensando no seu primeiro poeta ingerido, com uma saudade culinária e afetiva que o impedirá, para sempre, de encontrar aquele gosto insuperável. Mas tenho a certeza de que vai passar a vida tentando encontrá-lo de novo. É capaz até de engordar uns quilinhos, experimentando mais do que sua dieta exigiria.
Finalizo lembrando de uma conversa com a namorada de um amigo. Ela se diz uma "shabra"(acho que é essa a palavra), nativa de Israel, e me explica que é um fruto típico de lá, espinhoso por fora e muito doce por dentro. Revejo os poetas que conheço, e tento imaginar o sabor de um Rimbaud, de um Castro Alves, de um Paul Célan, de uma Elizabeth Bishop. Uns mais secos, crocantes, até amargos. Outros doces, poetas de sobremesa. Uns apimentados, estimulantes. Outros gelados, de fazer doer aquele pontinho entre os olhos. Alguns são massudos e maçantes como um pedaço de aipim. E aí me lembro, essa raiz, que eu tanto aprecio, tem seus perigos. Existe uma mandioca brava, letal.
Muito cuidado, Seu ET. Há que fazer como fazem os franceses, na colheita dos cogumelos. Antes de provar seu poeta, leve-o a um farmacêutico – na falta de um especializado na toxicidade poética, procure um crítico literário. 

Saturday, August 31, 2013

Vem pra rua…

Ontem não fui para rua. Nem eu nem os 200 milhões de brasileiros que agora já somos.
Cansamos? Tanto que as pessoas se manifestaram por alfinetes, tantas vezes umas 30 pessoas paralisaram o trânsito da cidade, tanto gás de pimenta, tantas balas de borracha, tanta ocupação de espaços públicos, tanta depredação em vão e agora, quando atingimos o auge do que a mim me parece uma baixeza, ninguém se manifestou.
Não é que não tenha ido para a rua. Fui ao Centro, passei lá a tarde e depois ainda voltei à noite. Tudo estava calmo. De tarde, passei o dia dentro de um banco, um daqueles de agências envidraçadas, bem no coração da cidade, um alvo perfeito. Ninguém ali estava preocupado com o fato de que um bandido, condenado por corrupção, continuasse a dar plantão na Câmara e fosse dormir na cadeia. OK. Ou melhor, a polícia deve ter se preocupado, pois, no meu retorno ao centro, um contingente inteiro havia se posicionado ali na Cinelândia. Isso durante o espetáculo maravilhoso no Municipal. Quando saímos, ainda em estado de graça com as belezas que ouvimos, a praça, que já foi do povo, era da farda. Creio que temiam que nós ocupássemos a rua e nos dispuséssemos a cantar o coro de Nabuco. Va pensiero… transporte-nos a um outro Brasil, de mais justiça e de ética menos enxovalhada.
Por sorte, peguei uma carona com um casal de amigos. A mulher me garantiu que o Centro tinha sido palco de furiosas manifestações. Perguntei: onde? Como cariocas, sabemos que o Centro é múltiplo e que as praças nem sempre se conectam. Ela respondeu que ali mesmo, na Cinelândia (por onde eu havia passado sem ver mais do que o sujo acampamento que se perdura como um monumento), a TV tinha mostrado uma passeata de professores. Educadamente, não discuti com ela, mas fiquei pensando com meus botões, como diria Machado, ou com meu zíper, como seria mais apropriado em meu caso, que talvez a TV, por falta de quórum, tenha requentado as imagens de uma manifestação ocorrida na terça.  Como vou saber?
A impressão que me ficou foi a de que apenas a polícia ainda conserva um pouco de senso comum. Estavam lá, de prontidão, para conter as milhares de pessoas que seriam de se esperar no dia seguinte ao nosso colapso ético. Talvez inspirados por um amigo, que recentemente esteve dando palestras na Academia de Polícia e descobriu o apreço de seu chefe por literatura, os policiais tenham se lembrado de Drummond e de seu Sentimento do Mundo.  Talvez tenham se posicionado ali na esperança de dar as mãos a todos os indignados, a todos os ultrajados pela piada de mau gosto que a democracia nos pregou. Elegemos mal, é verdade, mas podemos demonstrar nosso desprazer e tentar reverter a situação. Poderíamos exigir eleições gerais, insistir para a renovação total, geral, completa da Câmara e do Senado, dos Governos Estaduais e Municipais, com a condição de que nenhum dos atuais políticos fossem candidatos. Vejam, se os médicos daqui não prestam, importamos cubanos. Se os políticos não prestam, que tal importarmos dinamarqueses? Ou suecos? Ou Australianos?
Lanço aqui a campanha: respiremos fundo, mais uma vez, e vamos para a rua, exigir novos políticos. Ou, pelo menos, transformemos Brasília num grande presídio de segurança máxima!

Sunday, August 25, 2013

Volto aos nomes

Os franceses têm uma capacidade de nomear que me causa admiração e inveja. Vejam o caso das celas de prisão que conhecemos como solitárias. Sim, é verdade que são perfeitamente bem nomeadas em português, mas estão nomeadas do ponto de vista do prisioneiro. Elas exacerbam o sentimento de solidão que o preso deve sentir, mas não dizem nada sobre o sentimento do encarcerador. O poderoso, no caso, é esquecido e o prisioneiro triunfa como nomeador. Mas vejam o caso de oubliette. Trata-se da mesma cela, mas a palavra adquire relevância não apenas para o o encarcerado, mas também para quem manda o infeliz para lá. Um infeliz que se torna bem mais infeliz, com a certeza de que será esquecido. Enquanto que o nome da cela já vai produzindo um alívio e uma sensação de vitória naquele que manda prender. Oublier quer dizer esquecer. No caso, iria mais longe e diria que quer dizer obliterar. Então, quando pronunciamos a palavra, não somos obrigados, como em português, a experimentar um pouquinho da angústia do prisioneiro. Sentimentais, tomamos o partido do mais fraco. Na França, falamos do ponto de vista do dominante, mas nem por isso esquecemos do dominado. Sutilezas que só eu percebo? Bem, minha vida é revirar palavras, em busca de brilhos inesperados que revelem seu valor…
Querem mais um exemplo? Existe uma palavra bem feia em português: orgasmo. Tem uma sonoridade estranha, quase um engasgo, e acaba ressaltando o lado físico masculino do ato, aquela onda que vem lá de dentro e chega a superfície com o jato que nos livra de uma sensação que julgamos já não poder mais suportar. Na França eles preferem usar uma metáfora: la petite mort (bem, falo a partir de leituras, não tenho nenhuma vivência amorosa nem sexual na França, pode ser que tenham abandonado o termo). Vejam com que delicadeza a metáfora serve aos dois participantes da relação, e com que facilidade pode servir a ambos os sexos e a múltiplos parceiros. Uma pequena morte que se experimenta quando nos sentimos perdendo nossos limites individuais e pulsamos num corpo que não é o nosso, mas tornou-se, por um instante todo o universo. E serve também aos atos tristonhos, pouco satisfatórios, pois não se trata, no caso destes, de uma pequena morte de nossa autoestima? Mas serve apenas ao lado físico que nos exaure e deixa vencidos, mortos ofegantes que, no paraíso das sensações, anseiam voltar ao inferno das paixões o quanto antes…
É verdade, divago. Talvez o melhor seja procurar a extraordinária ária da morte de Isolda, a mais perfeita descrição de uma petite mort que conheço. Acompanhar a escalada de sons e emoções, chegar ao que julgamos ser o cume e descobrir que ainda é possível ir mais além e sentir nosso coração abranger o mundo todo, todos os mistérios, conhecer todos os segredos e voltar, numa espiral suave e descendente até nossa condição humana e desmoronar por não conseguir entender como fomos tão longe e continuamos os mesmos…
Bom domingo. Ou dimanche, mais suave de falar, quase um balouço de rede.

Saturday, August 24, 2013

Espelho meu

Olho a foto de um ator no jornal e não posso deixar de lamentá-lo. Por que desfigurar-se desta forma? Preenchimentos, creio que é este o nome da técnica, que alguns chamam de botox, que vai apagando traços e linhas e, em seu lugar, vai deixando almofadinhas de diversos feitios. Umas compridinhas feito lagartas, outras parecendo chumaços de algodão. O rosto fica parecendo uma estrada malcuidada, causa  estranhamento a todos que o veem, menos à própria pessoa, que olha-se no espelho e (talvez por conta da vista cansada, ou de uma incipiente catarata) vê um rosto jovem e liso. Ou talvez repare em alguma imperfeição e corra de volta ao médico para mais uma injeção, mais um procedimento.
Como avisar a uma amiga que ela está se desfigurando? Ou mesmo um amigo, pois mais e mais homens estão recorrendo à prática. A primeira vez que vi uma pessoa com esse tipo de rosto "rocky road" foi numa festa de granfinérrimos. A dona da casa era uma dessas lendas das colunas sociais, tinha sido bonita e era riquíssima. A festa era para comemorar mais alguns milhões de dólares que estavam sendo recebidos por sua família pela venda de uma instituição financeira aos sócios holandeses, ou finlandeses, sei lá.  Estávamos num janeiro ardente, mas a dona da casa tinha resolvido fazer a festa no jardim pois era época de lua linda, como a que nos tem encantado nos últimos dias. Os dias e as noites estavam realmente infernais, e, como fosse janeiro, era possível que uma chuva de verão desabasse de repente (ainda não tínhamos as sofisticadas previsões meteorológicas de hoje em dia) A dona da casa, portanto, com todos os seus milhões, tinha coberto o jardim com um toldo transparente – absoluta novidade cá na terra – e para evitar que o ambiente se tornasse uma estufa, tinha mandado refrigerar o jardim. Isso era absolutamente inusitado, jamais havia sido feito antes. Como dizem os americanos, tratava-se de "state of the art". Pois, com tantas maravilhas para capturar minha atenção, da festa só me lembro mesmo do rosto da dona da casa. A luz feérica iluminava todas as bossas e reentrâncias de seu rosto, e ela parecia um quadro de Picasso, estranhíssima. Passei a festa hipnotizada pela figura. Os outros convivas, sem dúvida, me tomaram por alguma deslumbrada que estivesse fascinada pela importância da madame. Afastei-me, virei as costas, mas, volta e meia olhava para aquele rosto que se desmanchava em relevos geométricos e ficava pensando que ninguém mais olharia para ela e se encantaria com os olhos claros, que desapareciam atrás dos volumes artificiais.
Tempos depois, uma amiga, numa conversa dessas de mulherzinha, me pediu que lhe avisasse se estivesse exagerando nos "procedimentos". Como fazer isso? Impossível. Pois mesmo quando a gente, com toda a intimidade, diz algo como "agora chega", a resposta invariavelmente é : "só falta dar um jeitinho aqui neste ponto". Um ponto que muda a cada olhadela no espelho.
Também tenho amigas que me pedem que lhes dê um "toque", caso comecem a perder o juízo. Missão igualmente impossível, pois se o juízo já está comprometido, elas já não são mais capazes de aceitar os avisos. E, como todas as minhas amigas são inteligentes e cultas, e o juízo pode abandoná-las, mas não a sua inteligência, argumentam brilhantemente, defendendo suas posições.
Avalio: de que me vale desmontar a ilusão que cada um de meus amigos constrói para si? Eu os amo até porque sabem se iludir e com isso me ensinam a ser um pouco mais complacente comigo mesma. Por isso me olho no espelho e não entro em depressão. Me vejo com olhos sonhadores, que apagam os sinais, os quilos, a falta de sex-appeal. Sorrio para meu rosto no espelho, na esperança de espantar o tal "bigode chinês", convencida de que, sorrindo, as pessoas vão notar mais a simpatia que o desmoronamento. Na verdade, pago o preço de uma convicção: o tempo nos esculpe, por bem ou por mal. Mesmo fazendo todos os "procedimentos", a gente não fica mais jovem. Fica é com cara de quem não se conforma com a idade.

Monday, August 19, 2013

Feldspato

Hoje, atrasadíssima, fui ler o jornal de sábado, mais especificamente, o Prosa, que ainda insisto em ler, embora esteja cada vez mais distante de um suplemento literário. Tinha guardado o caderno para uma hora mais tranquila, pois, desta vez, quebrando a regra, falava-se sobre livros: aqui um comentário sobre o Silviano, ali uma longa dissertação sobre o pós-modernismo e um texto sobre o feminino em Nietzsche e Derrida. Como esses dois são figurinhas fáceis nos comentários literários, desprezei o fato de que o artigo se achava sob a rubrica "filosofia", e embarquei na leitura.
Começou muito bem, com a citação de uma autodefinicão de Nietzsche: "Sou uma nuance". Claro que adorei a frase, cheia de possibilidades e continuei lendo a referência seguinte que afirma que o filósofo em questão é "um pensador que se instala de modo deliberado entre antagonismos insolúveis". Era uma frase em aspas, portanto assumi que o autor do artigo estivesse resumindo os "brilhantes estudos de Wolfgang Müller-Lauter". Brilhantes? Bem, tudo é uma questão relativa. A luz de um fósforo é brilhante na escuridão, mas supérflua num dia radioso como o de hoje.
Seguimos? Seguimos!
Fala-se, então, de um novo modo de lidar com a verdade, que teria sido inaugurado pelo bigodudo filósofo: a interpretação infinita. E já estou perdida, pois não tenho conhecimento filosófico suficiente para saber se isto é ou não verdade. Como sou realmente uma mulher de boa fé, tomo a assertiva como verdadeira, embora surjam algumas dúvidas no fundo de meu raso intelecto. Será que a filosofia não vem praticando isso há milênios? Bem, mas talvez a prática não valha sem uma teoria que a organize, então continuo a ler e me deparo com a relativização da "própria condição do sujeito que valida essas mesmas perspectivas". Sim, leitor, pode me abandonar, se quiser, pois não vai haver relativização que melhore o meu entendimento. Não  pense que estou fazendo pouco do texto, estou apenas dissecando minha própria ignorância. Por que, então, continuo a ler? Porque no parágrafo seguinte está a seguinte hipótese, sustentada por N. "a verdade é uma mulher", e em seguida uma frase absolutamente tentadora: "reavivar a agonística alegre existente entre Nietzsche, Derrida e o tema do feminino".
Puxa! Sou uma mulher e, se a verdade é uma mulher, a verdade tem a ver comigo, que não sei do que trata a alegre agonística  com que os dois filósofos se relacionam ao tema do feminino. Que, diga-se de passagem tem muito pouco a ver com a mulher… Isso eu sei, nebulosamente, pois as duas palavras deveriam estar rotuladas sob categorias diferentes segundo me ensinaram algumas teorias que andei lendo por aí.
Sigo a leitura como quem faz um exercício de piano. Repito, saboreando os sons, que não levam a nenhuma sinfonia: "conceitos de phármakon e de khôra"; "a metafísica consiste na tomada de decisão diante de termos estruturalmente indecidíveis". Paro e recorro ao meu velhíssimo Aurélio, que não lista entre indecidido e indecifrável  a palavra em questão. Bem-feito! Quem manda se apegar a velhos dicionários e não comprar uma edição mais recente? Quantas palavras deixarei de conhecer, desse jeito?
Descubro que além de "verdade", sou "metafísica", pois esta é "incapaz de pensar a complexidade do mundo contemporâneo". Eu também. Eu também, mas estou em boa companhia. No entanto, sou fulminada por uma nova revelação: Uma escrita pós-metafísica seria uma escrita feminina. Como?!  É que o Derrida diz, segundo esclarece o autor do artigo, que "toda metafísica é um fono-falo-logo-centrismo" ou seja "Uma lógica fálica apoiada em um racionalismo fonocêntrico que privilegia a fala e a presença em detrimento da escrita e do pensamento in absentia". Ok, está certo, por menos que seja capaz de pensar o mundo contemporâneo não posso me comparar à metafísica pois esta é domínio do falo e da fala.  Calo-me e castro-me (deve de ser esta a ausência), continuo a leitura.
O pensamento metafísico nasceu de um parricídio simbólico. Não complica, caro mestre. Você não acabou de dizer o contrário? A metafísica não é o domínio do falocentrismo? Ah, é que  "a fala e o falo paternos continuraram reverberando de um modo fantasmal na escrita, chancelando-a com uma negatividade incurável".  Esclareceu para você? Para mim complicou. Quando foi que saímos da fala e entramos na escrita?
Estou perdendo o fôlego e a razão. Mas me animo com o parágrafo seguinte que tem "franjas e bordas" palavras que me fazem lembrar de meu querido e sempre claro Machado de Assis.  Leio que Derrida "criou uma odisseia da marginalidade intelectual que inclui todas as vozes ausentes do festim masculino da razão e abandonadas pela paternidade arcaica dos signos". Saboreio a frase. Linda! Tem odisseia, tem marginalidade, tem festim, coisas de que gosto muito. Ignoro minha incapacidade de pensar a complexidade do mundo contemporâneo, pois isso é coisa da metafísica e, como sou mulher, portanto, verdade, não faz muita diferença se compreendo ou não porque, ao fim e ao cabo, faço parte da marginalidade.  Creio ler uma corroboração de meu entendimento na frase: "Apenas uma escrita que incorpore o devir-mulher em seu caráter inapreensível será portadora da marca indecidível da verdade".
OK. Não dá para entender mesmo. Mas vejo que, como eu, Derrida tem suas "palavras amadas", e listo, copiando o Rodrigo: alteridade, dom, justiça, lei, perdão, amizade, soberania hospitalidade e responsabilidade.
Alguém ainda estuda Derrida?  Ele não tinha saído de moda, depois de detectarem nele algum defeito primordial que já não lembro mais qual seja? Não seria o fato de que ele pregava (simplificando muito) que todos os discursos são autocontraditórios? Se são autocontraditórios, não significam nada além de "vontade de poder".
Acho que era por aí.  Pois, acompanhando as palavras do articulista, leio que "toda teoria de diferenciação que pressuponha uma identidade substancial anterior, à qual o movimento de diferenciação se dirija, será uma teoria metafísica, ainda que a serviço de causas feministas" Bem, se isto não é autocontradição, o que será?
Você ainda está aí, querido leitor? Não me acompanhe neste caminho intrincado, acho que ele não vai levar a lugar algum. Mas, se quiser, nada me dará maior prazer que sua companhia, enquanto vou tentando me encontrar nesta leitura.  Estou aqui exercitando o "princípio diferencial da escrita como apropriação incacabada". Estamos a caminho,  na estrada de Damasco, e logo seremos fulminados pelo raio divino, o relâmpago que nos permitirá entender o feminino como o  "movimento centrífugo que a verdade realiza em direção a zonas de indeterminação".
Pensa que isso basta? Não. Estamos nos aproximando de uma "verdade mais verdadeira", a de que Deus é o modo absoluto do feminino. E Nietzsche? ao dizer que era uma nuance estaria ele se definindo como uma mulher?  Não. Sim. Não! "Nietzsche  estaria se definindo como o próprio Deus se definiria a si mesmo", é a conclusão de Rodrigo Petrônio, Mestre em Teoria da Literatura e em Filosofia da Religião.
Faço uma pausa. Respiro fundo. Penso que deveria ir tocar tambor. Mas fico por aqui mesmo, e de meu cérebro confuso nasce um signo, rebrilhando. Feldspato. Nunca mais tinha ouvido falar nele. Nunca mais tinha escrito essa jóia linguística, feldspato. Linda palavra, belo signo. Incongruente. Sonoro. Difícil.  Acho que o feldspato é Deus. Ou uma nuance de Deus.

Sunday, August 04, 2013

Velórios

Li esta semana um texto da Cora Rónai falando sobre o fim dos blogs. Coincidentemente, no mesmo dia, amigos do SESC propõem a criação de um blog para juntarmos nossas produções, e termos alguma visibilidade. Eis aí uma palavra que me arrepia: vi-si-bi-li-da-de. Houve um tempo que a gente usava isso apenas em viagens. Os aviões não decolavam por falta de visibilidade, por exemplo. Hoje eles, que nunca tiveram chão, perdem o teto. Outro emprego que dávamos era em viagens de automóvel, quando a cerração baixava na serra e perdia-se a visibilidade.  Hoje em dia usamos essa palavra para uma qualidade que já foi defeito, a tal da "semostração", coisa muito criticada por minha avó. Não havia nada pior que uma menina "semostradeira", aquelas que chamavam a atenção para si mesmas, e queriam as atenções de todos. Hoje em dia virou qualidade e mudou de nome. Cada um de nós almeja um holofote apontado para si, iluminando e tornando público todo movimento, todo pensamento, todo vagido.
Voltando à Cora, ela diz que os blogs foram desbancados pelo Facebook, muito mais eficaz em nos expor aos olhos da humanidade. Concordo. O Facebook, ao qual cheguei pensando ser uma forma mais abrangente de comunicação entre amigos, revelou-se, na verdade, uma eterna propaganda. Geralmente mostramos como somos felizes e sortudos, como vão nossos escritos, e como nossa agenda é cheia e movimentada. Claro que isso provoca um cansaço mortal… Aposto que muitas pessoas já não suportam mais toda essa "semostração".
Persisto, tanto no blog como no Facebook, esperando, não sei bem o quê, provavelmente Godot. O que me faz continuar é a sensação de que ninguém me lê, mesmo, e tanto uma como outra atividade pode me servir como um diário.  Por quê tenho essa sensação? Porque divulgo convites no Facebook e amigos queridos me perguntam por que é que não os avisei. Respondo que coloquei no meu perfil, e eles dizem que não viram. Ora, se amigos queridos não veem, quem verá alguma coisa em meu perfil?
Acho que eles até visitam o tal perfil, mas só para marcar presença, apertar a tecla curtir, numa saudação, e depois vão ver coisas muito mais interessantes do que as que acontecem comigo. No meu blog, são 7 anos de divagações. Não consigo fazer uma coisa bacaninha, com fotos e design apurados, nem assuntos selecionados. Isso aqui é mesmo uma caixa de pensamentos, a qual pretendo fuçar um dia, quando (Deus me livre) estiver sofrendo de Alzheimer, ou quando estiver sem o que fazer e sem  o que imaginar. Pois passo muito tempo sem o que fazer, mas nem um minuto sem imaginar alguma coisa que me distraia. Assim vou eu, admirada com minha própria persistência, mas me divertindo e guardando memórias. E comentando a vida e a morte.
Esta semana comento a morte de uma pessoa que nunca cheguei a conhecer, mas que admirei através de amigos. Todos sabem que gosto muito de música, frequento concertos e ballets aqui e lá fora. Sabia que o Luís Paulo Horta tinha (teve) um grupo que comentava música e eu teria adorado ir. Mas, acontece, que fui primeiro convidada para o grupo do Renato Machado, e achei que não tinha nada a ver com aquelas socialites. Nem me esforcei para frequentar o grupo do Luís Paulo, de quem me sentia um pouco próxima pois tinha sido aluna da temível Guida Parreiras Horta. Não foi uma mestra que me inspire saudades, mas o fato é que ela me ensinou Grego. Alfabetizei-me em grego, vi muitos slides de suas viagens à Grécia e compartilhei com ela um encantamento pela antiguidade clássica. Quando visitei a o país, não pude deixar de pensar nela toda vez que laboriosamente consegui decifrar algum cartaz que me dizia "farmácia" ou "sintagma". Lamentei a sua morte e fui à sua missa de sétimo dia, no Mosteiro de São Bento. Provavelmente cruzei com o Luís Paulo por lá, já que eles compartilham sobrenomes.
E aqui estou eu, escrevendo para ninguém, mas fazendo uma homenagem a uma pessoa que admirei pois nunca escutei ninguém que não tivesse uma palavra boa sobre ele. O fato de ele ter morrido de repente, assim às vésperas de uma comemoração, mexe comigo. Fico angustiada pensando em tantas mortes repentinas que tive que assimilar. Lamento por ele e por sua família. Espero que ele seja recebido com muita música e paz, aonde quer que ele vá. Embora, de uns tempos para cá, eu ande muito descrente e cética.

Thursday, July 25, 2013

Tragédias e alegrias

Sempre me espanto com o fato de que nossos sentimentos não são universalmente compartilhados. Se estou triste, como pode o mundo e as pessoas seguirem alegres com coisas que nem sequer têm a ver com eles? Lamento a tragédia acontecida na Galícia, onde tenho amigos e de onde guardo boas lembranças. Como pode um vagão sair voando assim  e estatelar-se, enquanto outros se engavetavam e matavam e feriam pessoas que estavam felizes, prontas para desfrutar um feriado? Indiscriminadamente, inesperadamente, inexoravelmente. E, enquanto isso, porque se alegram aqui as pessoas com o nascimento de um príncipe cujo nome é de arrepiar? George Alexander Louis, que talvez nunca venha a reinar sob o nome de George VII, tem tudo (no caso 3 nomes) para ser estilista.  Griffe denominada "By George!", uma pequena ruguinha sobre seu narizinho preocupado com a roupa que sua bisavó usaria na primeira visita real.
Enquanto tento me certificar de que nada aconteceu com meus amigos galegos, leio notícias sobre o "lodaçal da fé", e me preocupo com o Papa sorridente, mas um pouco chatinho. Se, logo na chegada ao Rio nossa expertise já levou o pobre homem para o meio de um engarrafamento, creio que na ida para o Lodaçal da Fé arrumem jeito de atolar seu Fiat numa poça e iniciarem um flash mob, com as pessoas cantando "vem pra Lama", enquanto se atiram no chão para o papa poder passar.
Espero estar enganada e que o papa não pegue dengue ou malária por conta de mosquitos impertinentes e talvez evangélicos. Espero que nem sequer um resfriado seja levado de herança por este simpático visitante que, sem dúvida, há de perguntar a Deus sobre a tão falada criatividade brasileira. Que fim levou, ó pai? Se em todas as estações da Via Sacra vamos ter uma "estátua viva" ou cadeirantes  empurrados por motoboys. Um espanto isso. Seriam os cadeirantes ex-motoboys? E os enfermeiros que irão alegremente empurrando as macas e, outra vez, as cadeiras de roda? Será que farão uma campanha contra a pólio?
Acho que tudo isso é despeito meu, que, gripada, não conseguirei acompanhar a festa. Mas vou tentar ver pela TV a cara que o papa F. fará ao descobrir que a Cristina K. foi convidada pela Dilma R. para assistir a missa do Envio do Papa. Vão enviar ele para onde? 

Tuesday, July 09, 2013

Quem sou eu, afinal?

Esse negócio de autoentrevista combinou-se com essa coisa de espionagem de meus posts, de minha correspondência eletrônica, e de minhas ligações por celular. Será que sou assim tão interessante? Devo estar na lista das pessoas mais procuradas do planeta, como serial killer: matei de tédio todos os agentes encarregados de ler e escutar os testemunhos de minha vida. Perdão, mil vezes perdão. Sempre me ofereço para melhorar as coisas com minha imaginação, mas as pessoas continuam interessadas na "verdade". Mas qual é a minha verdade verdadeira? As coisas que faço cotidianamente, acordar sempre cedo, escovar os dentes, tomar o mesmo café, puro, sem açúcar?
Ou seriam meus sonhos, minhas lembranças? Sou aquela que tem um jardinzinho, com plantas cultivadas em memória de pessoas amadas, que já se foram. Sou a que não olha álbuns de fotografias, com medo de chorar, mas que guarda as fotos e conversa com elas, nos portarretratos espalhados pela casa. Sou a que sorri quando encontra os amigos, e que os abraça com vontade de transmitir a eles a grande alegria que me dão, sendo meus amigos. Sou a que encontra refúgio entre as páginas de um livro, e a que conversa com passarinhos que visitam seu jardinzinho. Sou a que se entristece quando um bibelo barato se quebra, pois ainda lembra do carinho de quem lhe deu aquele enfeite, e dos olhos que já contemplaram aquelas coisas, e que se fecharam para sempre.
Sou também aquela que plantou algumas árvores, fez alguns filhos escreveu alguns livros. Continuo escrevendo livros na esperança de que alguém os leia. Talvez ainda plante alguma árvore, no futuro, ou mesmo um pequeno arbusto. Mas não farei mais filhos, os que tenho alegram minha vida, preocupam minhas noites e me fazem temer o futuro, que vislumbro ameaçador e pouco gentil. O futuro… devia estar me preocupando com o presente, que é somente o que temos. Aqui e agora, mas conscientes de que a vida se expande por longos anos, e que continua além de nós, portanto, para permitirmos a todos viver e aproveitar, é preciso cuidar e conservar.
Resumindo: sou sem graça, mesmo quando pretendo oferecer uma versão menos chata de mim. E sofro por isso. Mas tento consolar-me, da melhor maneira que consigo.

Tuesday, July 02, 2013

Autoentrevista 2384

Saiu numa revista espanhola, chamada 2384. Não me perguntem de onde tiraram esse nome, que é um número, para uma revista literária. Há de ter algum matemático infiltrado no conselho editorial. Ou esse talvez seja parte do número do telefone da namorada de um deles. Ou o final do cartão de crédito de outro. Ou um conselho cabalístico de uma numeróloga. Só sei que a revista é bacana, com uma produção visual que nem sempre facilita a leitura, e que tem fotos escandalosamente ótimas. E textos muito bons. E que gostam de que autores se autoentrevistem, talvez para evitar as repetições das perguntas de que se queixa o personagem de Amós Oz em Rimas da vida e da morte.
Julguem vocês, se me saí bem.
Publico em português e depois dou o link, para verem no site da revista, já traduzida para o espanhol.

Fazer uma autoentrevista é como fazer um autorretrato?
(Risos) Acho que não. Num autorretrato o artista tem o espelho como intermediador entre ele e sua criação, que fica em xeque por conta dessa imagem. Na autoentrevista, só existe autor e criação… uma combinação que geralmente leva à fantasia e ficção, a uma imagem sem limites objetivos.

Mas você pode revelar alguma coisa sobre sua vida e/ou sua obra?
Bem… Um autor, geralmente, vive através de suas obras. A vida cotidiana do autor é, na maioria dos casos, muito desinteressante. Sentamos e escrevemos. Ou ficamos de pé e escrevemos, como Pessoa. Ou, até mesmo, deitamos e escrevemos, como Proust. Mas, algumas vezes, lemos. Outras vezes paramos de escrever e é como se nos dissolvêssemos no ar. Pois, mesmo que estejamos mergulhados em atividades, que nossa vida esteja repleta de aventuras e eventos fantásticos, isso só parece existir para nós depois que traduzimos tudo em palavras.  Somos como náufragos, nadamos desesperadamente – não apenas para sobrevivermos –, mas para termos a chance de chegar a algum lugar e podermos criar a mensagem que enviaremos na garrafa. Essa mensagem, é claro, destina-se a alguém, mas não sabemos a quem. E, também, é necessariamente incompleta, fruto de nossa experiência de náufrago, – e que náufrago sabe, com segurança, para onde as ondas o levaram? Portanto, não há muito o que revelar sobre minha vida. Quanto à minha obra, saberei sempre menos que meu mais desatento leitor.

Então, por que dar uma entrevista a você mesma?
Creio que nenhum outro entrevistador seria capaz de me permitir mentir sobre mim ou sobre meus livros com a mesma sinceridade que o faço.

Mentiras sinceras? Você tirou isso de alguma música?
Preciso confessar que sim. Mas essas mentiras a que me refiro são completamente diferentes das da música, pois não são mentiras sentimentais. O autor, ao se analisar, crê sinceramente que está dizendo a verdade. No entanto, a verdade nunca é única e, como não conseguimos ser, ao mesmo, tempo sujeitos e objetos, nossa verdade confessada é subjetiva e imperfeita, portanto, mentirosa.

Falemos, então, de suas obras. Há quanto tempo você escreve?
Desde que aprendi a escrever passei a me relacionar com o mundo através da escrita. Sempre fui tímida e era mais fácil, para mim, escrever e deixar que os meus amiguinhos de escola lessem, ao invés de falar e me fazer notar.

O que você escrevia?
Histórias em quadrinho. Chegava em casa e “reciclava” os papéis usados fazendo caderninhos onde desenhava pequenas histórias. Era minha brincadeira predileta. Infelizmente não guardei nenhum desses meus livrinhos de infância, e meus pais nunca valorizaram esse meu subterfúgio.

Mas você lembra de alguma dessas histórias?
Não. Lembro apenas de minha primeira crítica negativa. Tinha escrito uma história – da qual já não lembro o enredo – mas que tinha uma  (em minha opinião) maravilhosa descrição do por do sol. Falava do astro e de como seus raios amarelos terminavam em formosas pontas de rubi. Meu pai leu a história e me alertou para o fato de que eu não estava descrevendo o por do sol, mas sim um desenho do por do sol. De repente, perdi minha ingenuidade infantil e passei a desejar escrever de maneira que pudesse criar imagens que, embora não tivessem necessariamente que ver com o real, pudessem ser percebidas como “verdadeiras”. Mas a fantasia continuou a imperar.

Você algum dia quis ser “escritora”?
Em verdade, nunca quis ser escritora, mas sempre me defini assim, pois escrever era e ainda é, minha expressão favorita. Gosto de falar e de estar com os amigos e a família, mas as coisas importantes que consigo comunicar são através de textos. Todas as minhas frustrações, todos os meus medos, tudo o que me incomoda, as coisas que me faltam, os desejos insatisfeitos, tudo isso eu resolvo em narrativas. Olho para o mundo, cada vez mais agressivo e incompreensível, e procuro um sentido para ele. As palavras são meu consolo e minha salvação. Através delas posso ser violenta ou suave, posso ousar ou temer, posso consertar ou destruir.

Esse seu aspecto demiúrgico é sua principal característica?
Não, muitas vezes, ao invés de criar mundos, prefiro brincar com a própria literatura. Sou uma leitora voraz, e algumas histórias que leio ficam germinando dentro de mim, crescendo e exigindo que eu reaja a elas criando alguma coisa diferente, algum tipo de resposta. Na verdade, é uma espécie de “leitura por escrito”, pois sempre que lemos um texto, nos apropriamos dele. A história que leio é necessariamente individual, pois ela se realiza na minha imaginação, na minha psiquê. Esse é o milagre da literatura: um bom livro viverá em seus leitores e sera único a cada leitura. Existem livros que são bem escritos, interessantes, mas que se esgotam numa única leitura, nunca mais voltamos a eles, nunca mais eles terão nada a nos dizer. Outros são livros a que voltamos sempre, e com o mesmo interesse. Mesmo sabendo o final, mesmo conhecendo a história, precisamos revisitá-la pois tornou-se parte de nossa própria experiência: essas, em minha opinião, são as grandes obras literárias.

O que você está escrevendo agora?
Estou terminando um romance sobre a morte de Rimbaud, pois, ao preparar umas aulas que estava dando sobre ele, li sua biografia e fiquei muito sensibilizada com o final de seus dias. A vida dele, um grande redemoinho, me parece exigir uma morte menos cruel, e menos escondida. Pensar que no enterro deste poeta extraordinário só a mãe e a irmã compareceram me  dá dor no coração. Então, escrevo e convido a todos para esse novo funeral. Acontece que estou escrevendo um romance, e não uma biografia, daí que posso criar de acordo com minhas interpretações e meus desejos.

Este projeto me parece bem triste. Você é sempre triste assim?
No fundo, no fundo, sou bem sombria. Mas tenho um lado solar e alegre que aparece mesmo no meio de minhas grandes depressões e é o que me “salva” de mim mesma. Meu romance anterior, O amor acontece, é muito divertido e com personagens mais doces, menos complicados. Trata-se de uma história de amor escrita por uma pessoa que não acredita em amor. Ela é contratada para ir à Veneza e escrever um romance ambientado nesta que é uma das cidades mais românticas da Europa.  Mas ela só vê os aspectos negativos, a umidade, o cheiro de mofo. Ou, quando seu humor melhora, ela só vê a Veneza dos livros:, a que foi contada por outros autores que fizeram da cidade seu cenário.  Ela é incapaz de ver o que está acontecendo ao seu redor, mas acontece que existe alguém que  consegue romper esse seu véu de descrença/fantasia e ensiná-la a se entregar às surpresas da vida. Só que a autora é teimosa e a história que ela escreve é um desencontro atrás de outro. Temos, então, um romance dentro de outro; passar de um plano a outro da narrativa é bastante agradável e provoca um diálogo entre as diferentes opiniões sobre a possibilidade de se amar no mundo moderno.
Você falou em romances, mas sua carreira se iniciou com contos, não?
Os primeiros livros que publiquei foram de contos. Durante muitos anos escrevi apenas poesias, mas essas estão guardadas, não sei se algum dia virão a prelo. Os contos também estavam engavetados, mas, em 2005, tomei coragem e mandei um para um concurso. Trata-se de “A cicatriz de Olímpia”, que ganhou o I concurso Osman Lins de Contos. No mesmo ano meu marido pegou os originais de um conjunto de histórias e os enviou para o SESC:  graças a iniciativa dele ganhei o Prêmio SESC de 2005 com o livro A secretária de Borges. Em seguida publiquei Linha de sombra, outro livro de contos. Mas as editoras não gostam de publicar apenas contos e acabei me aventurando na narrativa mais longa, embora eu prefira trabalhar com a forma mais sucinta e muito sofisticada do conto. Cortazar nos ensina que no romance existe espaço para divagações, mas no conto precisamos ser absolutamente essenciais e surpreendentes como um nocaute. Além dessas obras já mencionadas, escrevi e publiquei mais três livros infantis (O sapo e a sopa, A cobra e a corda, Botas e bolas), um livro de ensaio (O Banquete: uma degustação de textos e imagens)  que acaba de ser premiado pela Academia Brasileira de Letras, e colaborei em algumas antologias, revistas e jornais. E ainda ganhei o prêmio Josué Guimarães na 12ª Jornada de Literatura de Passo Fundo, com os contos “A mãe de Proust”, “A caixa” e “Manhã”, que só este ano estão sendo publicados pelos organizadores.

Qual o significado dos prêmios na vida do escritor?
Sem dúvida os prêmios ajudam na construção de uma carreira, e abrem algumas portas. Claro que, como em tudo na vida, quanto mais prestigioso um prêmio, mais portas ele abre. Eu mesma só comecei a ser publicada a partir dos prêmios que recebi, pois sou tímida e muitas vezes acometida de crises de autoestima. Os prêmios recebidos funcionam como estímulos e reconhecimento. Reconhecem o nosso esforço e nos estimulam a produzir e a continuar insistindo numa arte que é solitária e demorada. Vivemos numa época em que se procura gratificação imediata e o processo de publicação tradicional é necessariamente demorado. Esta é a razão pela qual acredito que o futuro vai ver cada vez mais publicações eletrônicas, embora convivendo com alguns livros tradicionais, que não desaparecerão completamente.  Voltando aos prêmios, algumas vezes, nos trazem tesouros inestimáveis. Por exemplo, quando recebi o prêmio Josué Guimarães, recebi também um convite da Universidade de Santiago de Compostela. As lembranças do local e as amizades que fiz por lá são motivo de grande alegria. E as coisas que aprendi, são inestimáveis! Com o prêmio SESC, seguiu-se uma série de viagens pelo interior do meu país, e foi como se eu tivesse ganhado um certificado de “brasilidade”. Ganhei a minha própria terra de presente, ganhei raízes mais profundas, uma injeção de seiva.

Escrever em português é mais ou menos difícil?
Que pergunta tão mal formulada, mas creio que entendo o que você deseja saber. Algumas vezes lemos sobre o isolamento imposto aos escritores por conta de suas línguas de origem. Falamos de um Conrad que abdicou de seu idioma natal para escrever apenas em inglês, por exemplo. Ou discutimos a questão de idiomas como o galego, que durante anos foi uma língua “clandestina” devido à prepotência franquista. Ou lamentamos a escassa repercussão de um autor que escreve apenas em português, imaginando que ele poderia ter muito mais público caso escrevesse em outra língua. Mas podemos pensar na literatura mundial em termos de uma orquestra: cada idioma é um instrumento maravilhoso, com sua sonoridade própria e sua personalidade.  Um Scholem Aleichem, que escreveu em íidiche, um Chinua Achebe, nigeriano cujos livros foram capazes de “dissolver as paredes da prisão” de Mandela, são autores que nos ensinam que nosso local de origem e nossa língua materna nos enriquecem e são nosso maior trunfo, ao invés de nos prejudicar. Lembro da escolha de Dante que, ao escrever sua Comédia, optou pelo dialeto florentino ao invés do prestígio do Latim e, com isso, transformou o mundo literário. Escrever, seja no Brasil, na Etiópia ou na Ucrânia, ou mesmo na França, nos Estados Unidos ou no Japão é um ato de coragem e um trabalho delicado.  E, em cada idioma, há força e significação para recriar o mundo a cada história.

Para terminar: você se comparou a um náufrago, disse que os escritores são como náufragos. Isso não seria uma imagem negativa?
Não, um náufrago é um sobrevivente, uma pessoa normal que, por alguma circunstância, se vê transformada em herói. É aquele que tem recursos e criatividade para sobreviver, e é aquele que pode contar sua história. O mar a que me refiro é o que carregamos dentro de nós, e que nos isola do mundo, embora seja nossa única possibilidade de nos ligarmos aos outros. Somos como Ulisses, sabemos que dependemos desse nosso mar para chegar a um bom porto e que nossos naufrágios é que moldam nossa identidade. Somente no mar somos grandes, porque enfrentamos o incomensurável. Mas é só quando contamos nossos fracassos que encontramos nosso sentido e podemos, enfim, vencer a morte. Narramos, logo, somos.

Friday, June 21, 2013

Sempre confiei mais na ficção que na realidade…

Foi assim que terminei o meu post anterior.
Será que essa é uma verdade? Pois estou sempre examinando e reexaminando o que digo. Não desautorizo o que repito aqui no título, mas qualifico. A gente confia mesmo em ficção?
Há muitos níveis e ocasiões para a confiança. Por exemplo, na hora da leitura, temos que nos entregar e formar o tal do pacto "suspension of disbelief" (suspensão da descrença? só lembro do termo em inglês). Se não damos um crédito de confiança ao autor da história, não podemos acompanhá-la. Isso às vezes acontece com as crianças. Geralmente elas confiam, mas chega uma fase que se tornam críticas.
 "Um passarinho me falou…", começamos a história, como sempre. E aí vem o protesto: "passarinho não fala, passarinho só pia" Reestabelecemos o pacto explicando que passarinho pode dizer coisas piando. Se um passarinho estiver com fome, ele pode piar chamando a mãe para trazer logo uma minhoquinha, ou, se estiver assustado, pode piar rápido, como os pintinhos que antigamente eram vendidos nas feiras, e que, quando íamos pegá-los, se encurralavam num cantinho da caixa de papelão, piando muito. Em nossas mãos, seus coraçõezinhos disparados, e seu súbito mutismo nos faziam ver o quanto estavam assustados. Eles, bichinhos da terra tão pequenos, tendo que conviver com desajeitados gigantes de dois ou três anos, sem muita coordenação motora e sem nenhuma noção de seus sustos. Quantos pintinhos assustei? E quanto de ódio armazenei contra os adultos que me separavam desta coisa fascinante que é um "brinquedo vivo"?
Mas o que acontece, por exemplo, quando lemos um livro como 1984, que já foi um ano tão distante que parecia coisa de outro planeta? Lemos aquilo que classificamos de "ficção científica" e que nos encantou com suas ameaças e possibilidades, nas quais acreditamos enquanto líamos. Fechadas as páginas, aquilo devia ficar existindo apenas no mundo da imaginação, mas talvez o livro tenha sido tão convincente que alguns dos leitores tenham dedicado sua vida a transformar o escrito em verdade. Chegou uma certa altura de nossa vida que começamos a ver que nosso mundo estava ficando cada vez mais parecido com o de Aldous Huxley. E agora? Em qual dos milhões de livros já escritos se esconde a solução para a nossa realidade?
Hoje estou vivendo no meio de um tempo em que as pessoas se comunicam demais – por telefones, e-mails, mensagens, twits, facebook, tv, rádio, internet. E onde existem manifestações espontâneas que se organizam por meios eletrônicos, sem líderes. Aí acontece que eu, aquela que sempre confia mais na ficção, se lembra de um episódio contado na Bíblia: o da Torre de Babel. Todos os seres se entendiam, e espontaneamente resolveram construir a torre e chegar ao céu. Afinal, com que direito aquele déspota tinha expulsado a nós do paraíso? O céu era nosso, o poder era nosso.
Bem, todos conhecem o final da história: o poder sempre tem uma carta na manga, e, quando ataca, sempre nos deixa piores do que estávamos antes: ficamos sem céu e sem nos entendermos.
Moral da história? Essa deve estar em outro livro, mas esse ainda não li…

Sunday, June 09, 2013

Amigos…

Amigas reunidas, os assuntos se multiplicam como borboletas em jardim florido! Conversamos sobre tudo, de aborto ao zoológico, nossas conversas contemplaram todas as letras do alfabeto, sem hesitações, mas sem ordenação. Relato aqui minhas reflexões sobre um dos últimos tópicos abordados, mas que está atual por conta da novela: bissexualidade. Acho que todas conheciam algum caso de marido exemplar que mais tarde revelou-se não tão exemplar assim. O que quero comentar, não é a preferência sexual das pessoas, pois acho que isso é coisa pessoal, e não me diz respeito. Mas sim a nossa impossibilidade de ler os "sinais", a não ser a posteriori. Me lembro de um senhor que conheci. Ele vendia livros, usava cabelo cortado curto, à escovinha. Tinha um aspecto marcial, andava sempre rígido, não era muito alto, mas via-se que era um homem forte, e que cuidava de sua aparência, sem luxos nem exageros. Um dia, ele veio se despedir: era sua última semana de trabalho, ele estava se aposentando. Fiquei emocionada com a deferência, e entabulei uma conversa dessas meio convencionais, tipo, "parabéns", "descanso merecido", "planos para o futuro". Pois então veio minha surpresa: esse senhor, que durante o tempo de nosso conhecimento, com sua voz forte e suas maneiras severas tinha falado com tanto orgulho de seus filhos, que tinham passado no vestibular, seguiam suas carreiras, e da mulher, sempre dedicada, me confessou que ia se separar. Admirei-me. Confessei-lhe que para mim era muito inesperado, pois ele sempre demonstrara ser um bom marido e pai de família. Ao que ele me respondeu, sem subterfúgios: "Cumpri o meu dever, agora vou seguir minha inclinação".  Talvez não tenham sido essas as exatas palavras. Mas, de repente, aquele senhor, sempre tão formal, e que eu conhecia há anos, embora não tivesse maior intimidade, me disse que sempre se interessara por rapazes, e não por mulheres, mas que casara para não decepcionar os pais, depois continuara casado, pois precisava criar os filhos e que desenvolvera uma verdadeira estima pela mulher, companheira dedicada, que muito o ajudara. Mas, agora, os filhos estavam encaminhados, os pais mortos e ele já não era mais nenhuma criança e se sentia com direito de contentar a si mesmo. Não sei porque ele veio se abrir comigo. Talvez seu instinto lhe tenha dito que eu não iria me horrorizar e que escutaria com simpatia o seu desabafo. Creio que eu era uma pessoa que ele respeitava, e achei que ele queria que eu lhe dissesse alguma coisa. Eu era pelo menos uns quinze anos mais nova do que ele, mas me vi na posição de "mãe", naquele caso. E disse-lhe que estava surpresa, mas que, se ele tinha tomado essa decisão de cabeça fria, e não por impulso, que seguisse seu caminho em paz. Perguntei-lhe se havia comunicado a decisão à família. Ele respondeu que ainda não. Então lhe disse que fosse cuidadoso e delicado, pois, se a minha surpresa era grande, a da família seria enorme. Perguntei-lhe se acreditava em terapia, pois talvez fosse o caso de discutir as estratégias da revelação com um analista.  Não sabia mais o que fazer. Ele agradeceu. Me abraçou. E nunca mais apareceu.
Hoje, quando olho para trás, relembro sua figura rígida, bem cuidada, militar. As roupas sempre impecavelmente passadas, rosto escanhoado, cabelo à escovinha. Ele não era uma pessoa "natural". Nunca se abandonou numa risada, nunca relaxou a postura, nunca se queixou da vida, nem do trabalho, nem do governo… Estava sempre controlado – hoje digo "vigilante". Eu teria sabido, se ele não viesse se confessar comigo? Suponho que não. E será que ele contou toda a verdade para a família? Gostaria que sim, pois seria sinal de sua auto-aceitação. Mas talvez ele tenha apenas pedido a separação, mudado de cidade, e ido viver sua vida longe da mulher e dos filhos. Seja o que for, espero que ele esteja feliz.
Por outro lado, conheço um outro caso, o marido de uma amiga, que era sempre citado como exemplo para os nossos maridos: Você bem que podia ser mais atencioso, como o X! Olhe a surpresa maravilhosa que o X fez para Y! Bem, a última surpresa de X para Y foi a pior possível. Se mandou, levando a grana e mandando a discrição às favas. Fez questão de se revelar aos filhos adolescentes, que entraram em crise. E agora se diverte infernizando a vida da Y… Olhando para trás, a gente reconhece sinais, sua paciência em escolher perfumes e roupas, seu interesse em maquiagem e cremes, que ele comprava, supostamente, para ela. Os arroubos românticos, tão diferentes de nossos maridos sérios e práticos, sua constante disposição para escutar nossos papos femininos de exposições, óperas, ballets e livros, deixando os outros maridos a discutir economia, impostos, futebol, política, música e vinhos… Mas será mesmo? Por isso é que acho os sinais do Felix (o personagem da novela) muito afetados. E acredito piamente nas descrições do Charlus, de Proust, que estava sempre em guarda, e se traia apenas por olhares, quando se julgava sozinho…Ou em companhia de iguais…
Afinal, sempre confiei mais na ficção que na realidade…