Saturday, October 30, 2010

Encontros e desencontros

Roubo o título da cineasta para falar de meus últimos dias: fui e voltei e já estou indo outra vez. Fui: para Ribeirão Preto e Araraquara. Terras quentes e férteis, com gente solar, agradável. Fui recebida com carinho e atenções delicadas. Mas a viagem teve um custo alto: presa num avião com uma sinfonia de espirros e tosses, cheguei em Ribeirão carregada dos vírus que colhi no caminho e que espero não ter espalhado por aí. A agenda de entrevistas teria me deixado até algum tempo livre para explorar as cidades que visitei, mas a febre me tirou o ânimo e não cheguei a ver o "Salto Grande", nem sequer dei uma volta pelos arredores de Ribeirão. Mas o céu, enorme, azul, e os campos cultivados com capricho me encantaram. E o canto dos pássaros, em Araraquara, fizeram a minha delícia. A UNESP fica dentro de um bosque, e eu tinha vontade de sair, como louca, cantando estrofes do hino nacional: nossos bosques… Mais flores…Mais vida…nossos encantos, patria amada salve, salve! Ainda bem que não cantei. Até porque a voz que tinha se acabou de tanto falar, não sei de quê! Em Ribeirão, respondi a muitas perguntas. Em Araraquara, falei, assim, meio sem compromisso, inspirada, talvez, pelos passarinhos, pulando de galho em galho de assunto. Nos dois lugares conheci gente interessantíssima, adorei os papos públicos e privados. E, vou ter de falar, pois me sinto ainda com o peito estufado de orgulho: fui entrevistada na chácara onde Mário de Andrade escreveu Macunaíma! Com que emoção entrei ali, com que cuidado pisei naquele chão… Agora, finalmente entendo a letra do samba "pisar nesse chão devagarinho". Estava entrando no que, para mim, é um santuário. E, como meu adorado e adorável Mário tinha que ser diferente, foram logo me apresentar a banheira onde – diz-se – ele escreveu sua obra prima.
Ainda estou com a cabeça recheada de algodão, por causa da gripe, e nem posso transmitir direito minha emoção. Mas, amanhã já vou bater asas outra vez. Um pouco de NY, um pouco de Dallas. Sempre a caminho, numa tentativa de me encontrar (ou, no melhor dos casos, de me perder). Se a gripe permitir, vou a teatros e museus. Se estiver mal, pelo menos vejo amigos queridos. Então, até breve.

Wednesday, October 20, 2010

Vergonha

Às vezes me envergonho de sangrar tão fácil.
Estou me despedindo de Rimbaud, terminando com minhas alunas a leitura de Rimbaud, o filho de Pierre Michon. Um livrinho curtinho e denso que nos serviu de base para explorar a poesia e a vida do poeta. Por conta disso, fui ler as cartas que ele escreveu e que estão publicadas pela Topbooks, na tentativa, tantas vezes ensaiada por tanta gente boa e má, de compreender seu inexplicável silêncio. Claro que não faço ideia da razão de seu silêncio. E lendo suas cartas, escritas de seu "exílio" na África me admiro: por que escrever cartas depois de escrever os poemas que tinha escrito? Por que voltar a ser homem depois de ser um semideus? Mas, aquele que escreve poemas e palavras geniais pode ser considerado outra coisa que não um ser humano comum? Não precisa ele viver num corpo de carne e osso, tendo que alimentá-lo, banhá-lo, vesti-lo de maneira adequada? Poeta e gênio, não precisa ele de ganhar a vida, de manter a vida, de pensar na velhice, ou preocupar-se em aprender uma nova língua, em sobreviver entre pessoas que são regidas por leis tão diferentes das que o governam?
Cartas discutindo o preço, pleiteando pagamentos, tentando escapar de prejuízos e regularizar situações me incomodaram. Mas o que me fez escrever aqui no blog é ler suas últimas cartas, nas quais descreve os males que o afligiram e o levaram à morte.
Sangro fácil, qualquer coisa me fere, mas eu não sou Rimbaud. Imagino, então, esse alguém, com uma sensibilidade tão maior que a minha, sofrendo provações tão superiores às minhas. Medos, injustiças, dores insuportáveis e a necessidade de se aceitar como um ser vivo. Sua última viagem pelo deserto, carregado numa liteira que ele mesmo teve que desenhar, donde não pode sair nem para ir ao banheiro. Depois, já com a perna amputada, seu desespero com as muletas, seu medo de ser derrubado por alguma pessoa descuidada… Só lendo as cartas!
Abandonar a última esperança, abdicar dos últimos sonhos. Fazer a vontade da irmã carola e confessar-se, e talvez até crer, com a intensidade com que fez tudo na vida.
Tenho vergonha de sangrar tão fácil! Minhas dores me transpassam como as espadas que atravessam a imagem de N. S. das Dores e provocam sangramentos hemofílicos que não estancam, que me debilitam. Mas talvez a minha dor seja, afinal, comparável com a de Rimbaud, e com a de todos os outros sofredores: é a dor de estar viva.

Thursday, October 14, 2010

Luto

Acabo de ler O tempo envelhece depressa, de Antonio Tabucchi. Na epígrafe, a frase " Seguindo a sombra, o tempo envelhece depressa", retirada de um fragmento dos pré-socráticos.
Vou fazer uma resenha, mas meu tempo está solidificado numa pedra, que pesa sobre meu coração, há cinco anos. Minhas mãos estranham a ausência das mãos que com elas se mediam. Perdidos, tempo e afeto, só as memórias. Mas as memórias são sempre mais novas, são sempre de um tempo mais novo…
Uma citação: " Sentiu-se como aquele menino que de repente se via com um balão vazio nas mãos, como se alguém o tivesse roubado, mas não, o balão ainda estava lá, tinham somente retirado o ar de dentro."
Na minha infância aprendi muito com os balões: inflados, eles ansiavam por subir, e era necessário mantê-los à força, amarrados com nós bem dados, seguros por dedos firmes e sempre atentos. Ao menor descuido, eles se iam, sem nem ao menos se despedir. Por algum tempo era possível ficar olhando-os subir, ainda dava para se distinguir, no céu cada vez mais imenso, o pontinho de cor. Depois, era apenas um sinal, a cor contraída num ponto negro e dolorido. E, apesar dos esforços, até esse ponto desaparecia, só nos sobrava a memória da dor.
Havia outros que mantínhamos por mais tempo junto a nós. Mas esses também iam escapando devagar. Já sem forças para libertarem-se, seu voo era apenas uma afirmação de leveza, e eles exibiam seus rostos tristes e enrugados, sua superfície cada vez mais opaca, cada vez mais próximos de nossas mãos. Até que murchavam, amarrados a uma corda que era, para os balões apagados, sua condecoração.
Balões eram tristes, na sua beleza efêmera. Mas a gente só sabia que eles eram tristes no momento da perda. A gente não sabe da vida a metade…

Friday, October 08, 2010

Boas lembranças

Há alguns livros que são inesquecíveis. Talvez uns o sejam pelo conteúdo, outros pelo elevado de suas mensagens, e outros porque tenham sido presentes de uma pessoa amada. Há livros cujas ilustrações nos transportam a um mundo paralelo, livros que nos comovem até às lágrimas, livros que nos fazem rir. Tenho recordações de muitos, em todas essas categorias. Mas preciso confessar meu encantamento com alguns livros de Mário Vargas Llosa.
Começo por um que me deslumbra, embora talvez não seja a melhor coisa que o autor escreveu: Pantaleão e as visitadoras. Muito antigo, já não me lembro bem de quando ele é. Mas só sei que saiu ainda muito próximo dos tenebrosos anos da censura, em que até o Ballet de Moscou foi censurado. Imaginem, censurar um ballet. Imaginem, censurar! Pois eis que vem a prelo um livro em que os militares (os peruanos, é verdade) são alvo de zombaria e irreverência. Mas uma zombaria e irreverência de tal maneira construída que nos provocava risadas, muitas risadas. Quem não leu, corra para encontrar o romance, todo escrito em cartas e memorandos, numa variedade de "discursos" que esbanja conhecimentos de retórica e cuja "seriedade" e excelente performance de seu protagonista, tão certinho, na desordem da selva, no Carnaval do sexo e nos desvairios da religião nos divertem até às lágrimas.
Fizeram um filme, chatinho... Mas o romance é nota dez! Com certeza não foi este o romance que deu o Nobel ao Mário, mas que ajudou, lá isso ajudou.
Gosto também de um outro, picante que só ele, e que não lembro se são Os cadernos de Dom Rigoberto ou se se trata de Elogio à Madrasta. Cheio de erotismo, descreve quadros entre Dom Rigoberto e sua amada, jogos sexuais em que encontramos perversão, malícia e sensualidade. (Olhando para trás, julgo reconhecer neles alguma coisa de meu bem amado Felisberto Hernández, que quase ninguém conhece no Brasil, e que merecia ser traduzido. Las Horténsias é uma obra prima!)
Gostei de tudo o que li de Vargas Llosa - coisa que nem sempre acontece. Nem Virginia Woolf, nem mesmo Proust escapam de minhas críticas. Mas, Vargas Llosa, por diferentes que sejam seus romances, todos os que li me agradaram. Até do opúsculo que ele escreveu, dando conselhos a um escritor, gostei. Mas, até hoje não consegui ler as Travessuras da menina má, livro que vive se escondendo de mim. Comprei-o antes mesmo que fosse traduzido, em español, lá na Argentina. Pois coloquei-o na mala, e não pude continuar a leitura que tinha iniciado ainda no hotel. E, ao chegar aqui, o livro foi direto para a estante, e se perdeu na indisciplina de minha biblioteca. Tenho esperanças de que agora, com ela domesticada por meu Dédalus/Guilherme, o poeta das classificações, o livro seja facilmente alcancável. O que me falta agora é tempo.
Volto então para o Rimbaud, de quem pretendo falar na segunda. Preparo minhas aulas com carinho, e renuncio ao prazer da leitura de nosso querido premiado. Renúncia que não é custosa, pois deixo de ler um mestre da prosa para mergulhar na embriaguês dos barcos-poema, que me transportam ao encantamento.
Então, feliz prêmio Nobel para todos: os que já o receberam, os que agora são premiados e os que sonham com ele, no futuro…

Friday, October 01, 2010

Jabuti Silvestre

E eis que um amigo ganha o prêmio Jabuti.
Suponho que o nome do prêmio tenha sido escolhido em homenagem ao livro de Mário de Andrade, Clã do Jabuti, que resultou de sua viagem de "descoberta" do país. Pois o Brasil é um país que ainda está por se descobrir, se conhecer. Somos 300, somos 350, múltiplos, diversos, espalhados e antagônicos, solidários e individualistas. O que nos une? Um "certo instinto de nacionalidade", que o bruxo do Cosme Velho percebeu mas não soube explicitar. Mas é esta coisa que se acende dentro de nós e nos aquece na torcida, seja de Copa do Mundo, seja de premiação.
Na lista de finalista de romance, suponho que dez ótimos livros. Não li todos, mas os que li confirmam minha suposição. Livros de autores admirados, livros de amigos queridos, livros de pessoas a descobrir. Torci, queria que os amigos ganhassem, é claro, mas o que todos desejamos sempre, a cada ano, é que o prêmio mantenha seu prestígio e descubra nosso talento, afirmando-o com orgulho.
Quem vence o Jabuti tem uma responsabilidade com nossas letras, a responsabilidade de zelar pela nossa cultura, sem demagogias nem estrelismos, mas reconhecendo e ensinando nosso valor cultural. Quem vence o Jabuti, na verdade, somos nós, os leitores, que todos os anos vemos a grande produção cultural de nosso país receber a atenção e reconhecimento. Quem vence o Jabuti representa, entre tantos irmãos, nosso esforço e dedicação às letras, ao pensamento, à invenção de uma nação.