Monday, December 15, 2014

Conto de Natal, 2014


FELIZ NATAL


Era por volta de 11 horas e ela se ocupava na arrumação da casa quando escutou o ruído do plim do computador, avisando que tinha mensagem. 
Facebook!, foi o que pensou, mas, mesmo assim, não conseguiu deixar de olhar para a mesa onde havia criado um cantinho de trabalho, e onde seu laptop, mesmo pequeno, parecia agigantar-se. Ia ignorá-lo e terminar a arrumação, amorosa, dos enfeites natalinos. O plim voltou a soar, como se insistisse, e a fez levantar para silenciar os ruídos que pareciam perturbar a ordem doméstica. Olhou em torno, a casa já começava a tomar ares de lar. O apartamento pequenino, alugado às pressas naquela cidade estranha era jeitoso, mas extremamente impessoal. Seus esforços haviam transformado a sala num local um pouco mais hospitaleiro. A manta que jogara em cima do sofá quebrara a monotonia dos tons beges. As almofadas compradas em brechó acomodavam seu corpo com uma maciez que os assentos recusavam a ofertar. Na mesinha de centro, os livros começavam a se apossar dos espaços livres. Na prateleira, mais livros, e dois porta-retratos, com fotos dele.  Um tapete estendido sobre o piso frio permitia que ela sentasse no chão, e até mesmo deitasse ali, em frente à TV, sem acompanhar os programas, mas valorizando as vozes que se revezavam em dizer coisas que não a interessavam. Aqueles sons humanos a tornavam menos solitária e a embalavam num sono insatisfatório, apressado, sem entrega. A mesa de jantar, minúscula, tinha sido promovida a escrivaninha. Fazia as refeições no balcão, que separava o que era chamado de cozinha do que se apresentava como sala.
Agora, o verde da árvore, pequenina mas viva, alegrava e perfumava o ambiente. Cheirinho de pinho, de mato, aquele era um dos prazeres do Natal. No topo, a estrela que ela mesma fizera com papel laminado, se entortava, imperfeita. Ela sorriu, condescendente: Está tortinha, mas está linda! Não sabia se dizia as frases em voz alta, ou se elas apenas ressoavam em sua cabeça. Já fazia tempo que, ali, as únicas vozes que se escutavam eram as dos personagens televisivos. 
Plim, plim! Aqueles chamados impertinentes ecoavam no apartamento, e aceleravam seu coração, sempre tão inquieto, na solidão.  Colocou um passarinho de penas vermelhas e macias, pousado sobre a beirada de um ninho onde um ovo azul, com pintinhas douradas, resplandecia. Um lar de passarinho! Na vida real, aquele pássaro vermelho deveria ser o macho, com suas cores atraentes, enquanto a fêmea ostentaria penas castanhas, discretas, apagando-se entre os galhos de árvores e arbustos em busca de proteção. Sabia disso, mas, na sua árvore, o pássaro vermelho, com as asas abertas e o bico voltado para o lado esquerdo, lado do coração, simbolizava a mãe. O macho estava ainda dentro da embalagem transparente. Era grande, branco, de longas penas que formavam uma espécie de cauda. Os olhos tinham sido feitos com duas contas azuis, brilhantes e frias. O bico dourado abria-se como se a ave estivesse cantando, mas emprestava-lhe um ar um tanto ameaçador. Ela não ia colocá-lo agora na árvore. Ia esperar a véspera de Natal, quando Armando chegasse, para tomar posse não apenas de sua vida, mas do pequenino lar que se esforçava, sozinha, para construir.
Plim!Plim!Plim! Os ruídos cavalgaram uns nos outros, atropelaram-se, chegando a assustá-la. Por que estariam tão insistentes? Capitulando, voltou sua atenção para a tela, e clicou sobre o ícone de mensagem. Apenas uma linha: “Não poderei ir. Feliz Natal” Assim mesmo, sem um ponto final, lacônico, inexplicável. O que queria dizer aquela mensagem?  Uma mensagem solta, de quem ainda na véspera conversara com ela risonho pelo Skype. Teve a estranha sensação de que o mundo continuava sua vertiginosa volta, sob seus pés, enquanto ela permanecia parada, fixa num tempo anterior ao da decepção. Não chorou. Como uma autômata, ligou para ele, pelo computador, mas já sabendo, de antemão, que ninguém atenderia. Passou o resto do dia, e a noite inteira mandando mensagens que não eram respondidas, tentando ligações que não eram atendidas. Procurou-o no Facebook. Tinha sido bloqueada. 
A luz da manhã da véspera de Natal demorou-se, tímida, a entrar pela janela. Preguiçosamente um raio empoeirado veio refletir-se no olho frio do pássaro ainda protegido pela capa transparente de acetato. Foi só então que suas lágrimas vieram, e os gritos que precisou soltar foram abafados pelas almofadas, que também secaram seus olhos. Pensou em se matar. Pensou em se embriagar. Pensou nele, que sorria, despreocupado, lindo, encantador, na placidez do retrato. A dor que sentia parecia rasgá-la por dentro. Seus olhos inchados mal conseguiam olhar a tela do computador, que ainda ostentava a mensagem, terrível. “Não poderei ir. Feliz Natal”
Finalmente compreendeu que a ausência de pontuação a obrigava a continuar a frase. Copiou e colou a mensagem numa página em branco. E foi assim que começou o romance que  publicou no Natal seguinte, ainda ferida, mas em franca recuperação.