Sunday, February 28, 2010

Confissões de quem não é santa

Às vezes tenho a sensação de que passo a vida me confessando. Será? Mas não é bem confissão, são relembranças que, graças à minha educação católica, sempre são acompanhadas de uma certa dose de culpa. Pois um dos ensinamentos de alguma catequista bem intencionada, mas fraca em psicologia, uma lição que ecoa até hoje em meus ouvidos é a de que "não sou nenhuma santa". E como já sofri por causa disso! Pois juro a vocês, meus quase 17 leitores, que houve um tempo em que eu queria mesmo ser santa! Lia aquelas vidas de santas que, numa certa época, eram publicadas com mais regularidade que bestsellers, e me derramava em lágrimas, almejando ser tão boa e desprendida como aquelas jovens, ou aquelas não tão jovens, que depois de pecar à grande, se arrependiam e santificavam. A culpa deve ter sido da maluca de minha mãe que fez a promessa de me vestir de Santa Teresinha durante não sei quantos anos. Pelo menos de um ano tenho certeza: tenho um retrato para provar isso. E até que estou bonitinha, pois eu era lourinha e sorridente, é fácil achar uma criança lourinha e sorridente bonitinha. Na foto (eu devia estar com uns 4 ou 5 anos) devem ter me recomendado seriedade, pois estou fazendo um visível esforço para não sorrir. Se algum dia eu voltar a mexer em fotos, prometo que escaneio e coloco na internet, e não é por mim, é pela perfeição da roupa que eu usei. Era mesmo uma roupa "oficial", só que em tamanho infantil. Tinha tudo perfeitinho como nas vestimentas das antigas freiras. E era feito daquela fazenda quente dos ternos de antigamente. Acho que lã. Mas não sei. Só sei que tive meu momento Macondo (muitos anos depois…) ao virar uma esquina em Roma e descobrir lojas e mais lojas vendendo batinas e roupas religiosas. Incrível, ainda vou voltar lá e comprar uma roupa de santa outra vez! A rua tinha um nome engraçado, tipo rua do Triplo Burro, e aí fiquei lembrando de minha vida de Santa Teresinha.
Volto às culpas, perdão pela digressão (olha aí!, juro que foi sem querer!). Pois bem, na minha casa acreditavam na educação pela censura ("Vovó, tirei 9,5 na prova!" "Como?! 9,5?! Se tivesse estudado direito tinha tirado 10!") Daí que, mesmo quando estava certa, a única certeza que tinha era a de estar fazendo algo errado.  Quando passei em segundo lugar no Vestibular, ao invés de comemorar, minha mãe disse: Está vendo? Sempre tem alguém melhor que você…  E tem mesmo, e a Cecília, minha amiga querida até hoje, tirou o primeiro lugar muito merecidamente. Devo à Cecília muitos dos melhores momentos que passei na Faculdade. Ela era uma espécie de mãe de todos nós. Acho que ela já estava com uns 50 anos quando fez o Vestibular. Ela era professora aposentada do Sion, tinha (tem) quatro filhos que estavam na Universidade, morava (mora ainda) num apartamento que tinha quintal e boteco de beira da estrada, o Bar Roco (já não sei mais se ela ainda pode usar o espaço, o edifício precisou criar cercas de segurança). No verão, ela montava uma piscina inflável no quintal e a gente virava criança (na verdade, éramos crianças). Havia uma química boa entre nós, os membros do grupo, hoje desfalcado pela morte do André, justo o mais novinho de todos. Saudades, meu querido.  Foi Cecília quem me diagnosticou: "A Lúcia sofre de carência lúdica!" É que era tão bom ter parceiros de brincadeiras! A gente jogava MANIA, ou DICIONÁRIO (adoro jogos de palavras). Acho que também jogávamos BATALHA NAVAL. E mais um outro jogo de cartas que se chamava CRAPEAU (???) Uma espécie de buraco em que se podia mexer no jogo do outro, já não lembro mais. E, na casa dela, havia diferentes jogos de tabuleiro, de damas a War. Tinha épocas em que chegávamos lá e havia uma mesa desmontável onde algum quebra cabeças de  umas 18 mil peças estava sendo montado por toda a família e os amigos. A gente chegava, conversava, ia até o tabuleiro colocava duas ou três peças, ou conseguia montar um pedaço isolado que ficava esperando até que o quadro crescesse mais. Me lembro de um que foi montado e depois o grupo se dividiu, uns queriam que as peças fossem coladas e transformadas num quadro, outros queriam desmontar tudo e começar de novo. Acho que o segundo grupo venceu, pois não me lembro de nenhum quadro. 
Bem, nessa época eu já não queria mais saber de ser santa. Já estava até casada e, nos quatro anos de duração do curso de Letras, tive dois bebês, terminando o curso com três. Sim, porque já tinha uma filha ao entrar para a Faculdade. Precoce, não? Nada santa. Graças a Deus!

Saturday, February 27, 2010

A fada de chapéu

Estou de molho em casa, com uma dessas viroses de final de verão, mas hoje, como estava me sentindo um pouco melhor e como já não aguentava mais olhar para minha aparência desgrenhada, fui ao cabeleireiro. No caminho cruzei com uma fada de chapéu de palha rosa. Era uma menina, de uns quatro anos, vestida de fada, com asa e varinha de condão, mas com um chapeuzinho redondo de palha, totalmente incongruente, absolutamente encantador. Ela ia caminhando feliz, risonha, voltando-se para os pais e outros adultos que a acompanhavam, numa espécie de ballet que admitia rodopios, meias voltas, corridinhas e paradas. Eu ia numa direção oposta à dela, nossos caminhos se cruzaram e tenho a certeza de que nem ela nem a família me notou, a mim, disfarçada na normalidade de roupas sem surpresas. Como eu não notei os outros transeuntes pelos quais passei antes, tampouco aqueles pelos quais passei depois. Mas a figurinha da fada de chapéu, com seu rosa tão vivo e vibrante contrastando com os pastéis dos véus e os brilhos iridescentes  de suas asas me acompanhou até em casa e agora me obriga a escrever, para que não me esqueça mais dela. Me deu vontade de escrever um conto de fadas, quem sabe?
O que não tenho nenhuma vontade de comentar é a história do manifesto. Como disse ao meu mano André, todo manifesto é bobo, ao mesmo tempo que todo manifesto é útil. Mas não vou discutir nada disso aqui. Igualzinho ao manifesto que recebi por imeio sobre a candidatura da Dilma Rousseff. Acho que está no FB. Mas que as fotos são hilárias, isso são. Confiram.

Wednesday, February 24, 2010

Imagens e fotos

Percebo que vou desenvolvendo umas manias esquisitas, que talvez sejam coisa hereditária. Minha bisavó, por exemplo, detestava tirar fotografias. Os poucos instantâneos que temos dela são inúteis, porque ela ou colocou a mão em frente ao rosto, ou virou de costas, ou abaixou o rosto. Sou uma péssima fisionomista, daí que não me peçam para descrevê-la. Ela era muito branquinha, pele de porcelana, macia. Não sei que idade tinha, mas ela me parecia bem velha. Ainda mais naquela época em que as plásticas e os preenchimentos não existiam, e as pessoas precisavam ostentar suas rugas, Mas não me lembro de rugas no seu rosto, e sim de uma papada, que dava a ela um ar empertigado e meio ofendido já que, talvez para tentar minimizar o apêndice, ela andava sempre com o queixo elevado, e muito empertigada. Ou talvez fosse apenas uma questão de boa educação. Minha bisavó não se "atirava nas cadeiras", como me acusavam de fazer. Ela se sentava com as costas eretas, as pernas juntas, e ficava longos períodos calada. Estava um pouco surda, e era difícil falar com ela. Uma vez assisti uma conversa entre ela e uma outra avó, a vó Beá. Uma dizia: – Hoje está fazendo calor. A outra respondia: – Há tempos que não vejo o professor. A primeira retrucava: – Acho que é a umidade. A outra dizia: Acho que está ensinando na universidade… Bem, não me lembro exatamente o que elas disseram, mas me lembro de que ficaram conversando por rimas, falando sozinhas, mas muito simpáticas e sorridentes, duas senhoras que tinham vivido na Belle Epoque, e que lamentavam seus paraísos perdidos. Minha bisavó chamava-se Maria Cândida, mas se dizia Dona Mary. E nunca me permitiu chamá-la de bivovó. Tinha que tratá-la de Dona Mary, como todo o mundo. E ela não gostava de abraços nem de beijos. Acho que, quando ela olhava para mim, me via como um sinal da decadência de sua família. Eu era uma menina bobona e mal-educada, para os parâmetros dela. Pelo menos essa é a impressão que fiquei.
 De vez em quando ela me levava para uma "estação de águas". Uma das mais antigas lembranças que tenho é a de uma ida a Caxambu, de avião. Toda a família no avião, Dona Mary instalada em uma poltrona e, quando o avião finalmente levantou voo, a senhora tão compenetrada começou a gritar de medo e só parou quando o avião voltou a pousar. Me lembro de meu avô tentando fazer que ela se calasse, sugerindo que ela fechasse os olhos, e brigando comigo por abrir a cortininha e deixar que a visão das nuvens a atemorizasse ainda mais. Resultado, tivemos que voltar para o Rio pela superfície. E nunca mais fomos a Caxambu de avião, até porque depois acabaram os voos para lá.
Numa outra vez, fizemos uma viagem de trem, meu avó, Dona Mary e eu. Ao chegarmos a nosso destino, o vagão em que estávamos ficou fora da plataforma, e não sei porque, precisamos descer no meio do campo. Meu avô pulou do vagão, me ajudou a saltar e aí começou a comédia: Ele pegou a mãe que, assustada, começou a gritar e tapou os olhos dele com as mãos. Vovô ficou cambaleando, sem saber para onde ir, com os olhos tapados. Eu fui puxando os dois, me sentindo como uma personagem de uma fábula. Tinha medo de que o trem começasse a andar e eles ainda estivessem ali ao lado. Vovô carregando a mãe nas costas, meio desnorteado, e eu puxando os dois pela aba do terno de linho. Hoje imagino a aflição de meu avô, sem saber onde pisar, cuidando da mãe e da neta, às cegas.
Meu avô era o meu querido, meu herói, meu ídolo. Moreno, forte, bonito, era um homem carinhoso e bom. Ele me contava histórias, milhares de histórias, todas inventadas por ele. Eram as histórias do caxinguelê (bichinho mais esperto da floresta) ou as histórias do Zumbizão e do Zumbizinho (ele e eu). Foi ele quem me ensinou a amar o Centro da Cidade.  Eu ia com ele para a Câmara, ali, ao lado do Amarelinho, e me sentia o máximo. Passeávamos pelas ruas cheias do que, na minha opinião, eram palácios. Andávamos em elevadores antigos, de portas manuais, e conversávamos com os ascensoristas, e com garçons, sempre tão delicados, e sempre bem informados. Na hora do lanche, íamos ao Amarelinho onde o amigo do vovô, o Xavantes, tomava um copo de leite gelado com sal. Nunca tive coragem de experimentar. Devia ser horrível. Vovô me levava ao dentista, no largo da Carioca. Depois ( e acho que por isso meus dentes nunca prestaram) íamos comemorar na Colombo, ou na Cavé, ou na Manon. Para onde íamos, havia sempre um amigo do vovô por perto. Na ABI, assistíamos a filmes maravilhosos. Minha iniciação ao cinema japonês  foi ali. Vi um filme que me deixou impressionadíssima, em que um lobo comia um bebê recém nascido. Foi minha revisão da história de Chapeuzinho Vermelho. Os lobos comiam mesmo as criancinhas e depois não havia caçador que desse jeito no assunto. Na Câmara, vovô tinha amigos de nomes esquisitos: Honestaldo de Pennaforte (eu fazia questão do H no nome dele),  o supracitado Xavantes, Lígia Lessabá (Lessa Bastos). O poeta Jorge de Lima, para mim, era um pintor. Vovô tinha um quadro dele, que ficou para minha tia. E frequentava o sítio que ele tinha em Piabetá. Foi lá que nasceu minha madrinha Mara, com o nome mais popular de Maria da Penha. Ela deve ter inspirado a famosa música que diz "ela só pensa em namorar". Toda as vezes que me arrumava para sair, era uma tragédia. Alguma peça essencial de vestuário ficava faltando, ou ela calçava meus sapatos nos pés trocados, alguma coisa no gênero. E acho que na época ela namorava algum fotógrafo, pois tinha muitas fotos 3x4 que ia tirar com ela. Depois perdi o gosto pelas fotos. Meu avô, avesso que era a todas as maquininhas, nunca teve uma máquina fotográfica. Também não teve automóvel e a nossa TV, enorme, "faixa preta da GE", só era ligada pela vovó, que gostava de assistir um programa chamado Os intocáveis, e outro chamado Perry Mason. Vovô nem lâmpada trocava. Ele chamava o porteiro. Minha avó é que fazia todos os pequenos consertos elétricos, trocava os fusíveis, a resistência dos ferros, as tomadas das geladeiras e dos aspiradores de pó. E ela era a dona de nossa vitrola, onde escutei incontáveis historinhas que vinham nos disquinhos coloridos que até hoje amo. Minha primeira grande "possessão" foi uma vitrolinha portátil, que só abandonei depois de casada, quando meu marido, que adorava todos esses brinquedos tecnológicos decretou que ela distorcia os sons. Chega de saudade. Imagens e fotos do passado, como diria o poeta, doem muito.

Monday, February 22, 2010

Volta à escola


É hoje o dia…, diz a canção. E os brasileiros, entre sábios e brincalhões, avisam: hoje é o primeiro dia útil de 2010. Tenho uma grande implicância com essa coisa de dia útil. Se alguns dias são úteis supõe-se que os que não são úteis são inúteis. E como podemos chamar algum dia de inútil? Nestes dias, vivemos. São os dias em que encontramos os amigos, em que vamos ao cinema, em que nos estiramos ao sol. São dias de passear na praia, de dormir até mais tarde, de macarronada com a família. Ou dias de futebol, de cabeleireiro, de brincar com as crianças. São dias em que podemos mergulhar na leitura, sem interrupções. Dias de ficar olhando pela janela, invejando o ânimo de quem se aventura pelas ruas, seja para encontrar um amor, seja para dançar nos blocos, ou para ir à Igreja. Aí me lembro de Manoel de Barros, penso em sua arte da inutilidade, a poesia. O bom da poesia é que ela existe assim, sem compromisso. Não é útil, e, por isso mesmo, é a mais necessária das artes. Pois é nesses dias inúteis, nessas artes inúteis, nas ações inúteis que realmente encontramos o essencial. Um gesto de carinho, por exemplo, precisa de ser inútil, pois, se anexarmos alguma utilidade a ele, o carinho se embolora instantaneamente, se modifica e pode até virar agressão. Quem recebe um carinho porque o outro pensa que, nos acarinhando, há de conseguir alguma coisa, se sente degradado, não é não?
Quem nos roubou a vida? Pois poucos são os que ainda sabem fazer essas pausas e olhar para as coisas com desprendimento. Quem nos ensinou essa coisa de que "tempo é dinheiro"? Tempo é vida, é só o que temos. Mas fomos aprendendo a "fatiá-lo", dividindo-o em dia e noite, em horas, minutos, segundos, décimos de segundo, milésimos, até ficarmos com nada, esquecendo de que é possível regular nossos momentos pelas sensações e lembranças. 
Estamos de volta à escola. Vamos para lá para reaprendermos as coisas que a utilidade nos retira. Se a escola pode ser apenas um adestramento para a utilidade, ela também é a porta que nos liberta para nos reencontrarmos com a vida. A escola nos ensina, meninos travessos que somos, a desmontar o relógio para descobrir o tempo. Ela nos revela a utilidade para nos mostrar que tudo isso só importa se soubermos que o segredo da utilidade está em contemplá-la a partir da inutilidade essencial. 
Filosofei tanto, hein? Não era essa a intenção. 
Só queria postar alguma coisa absolutamente inútil…

Wednesday, February 17, 2010

Sem fantasia.


 Descobriram que o rei Tut morreu de malária. E que tinha lábio leporino. Que seus pais eram irmãos. Que estava com a perna quebrada e que devido a uma doença os ossos de seu pé esquerdo estavam sendo destruídos, o que o obrigava a andar de bengala. 
Descobriram que o nariz de Dona Cleópatra não teve nada a ver com a passagem da República
Romana a Império Romano. E que o amor de Cleópatra por Marco Antônio foi uma lenda, na verdade eles brigavam muito e Cleópatra, que já não aguentava mais o amante presunçoso, deixou-o no meio da batalha naval e veio brincar o carnaval no Rio.
O Egito, conforme estou lendo agora num livro simplesmente a-pai-xo-nan-te, As núpcias de Cadmo e Harmonia, foi o local de nascimento de quase todas as versões mitológicas. Acompanhando os raciocínios de Roberto Calasso a gente vai tendo arrepios de prazer, percebendo as verdades por baixo das fantasias. E, se algumas destróem nossos sonhos, como as descobertas sobre o Tutancâmon, essas descobertas nos fazem amadurecer e crescer. E nos dão o prazer do conhecimento, que é viciante.
Ontem fui assistir um filme que me deixou eletrizada do início ao fim: Educação. Pelamordedeus, não percam! Um filmaço. Uma história simples, real, na qual a fantasia desempenha um papel contrastante com a realidade (não é sempre assim?) e onde percebemos que nossos mitos, mesmo quando nos enganam e poderiam nos destruir, quando depurados pelo conhecimento são caminhos para a superação. Adorei o filme, os atores, me apaixonei, torci, e, embora desde o início soubesse que aquilo não ia dar certo, em momento nenhum deixei de curtir cada pedacinho da história. Todos os detalhes do filme me agradaram: do cenário ao vestuário, dos atores à trilha sonora, dos diálogos aos silêncios. As imagens falam por si mesmas, contam uma história ao lado da história. Por exemplo, o carro parado esperando que a mãe com as duas crianças atravessem a rua tem um significado na história, que vai sendo construída através dessas impressões visuais. 
Ou então, pequenos advérbios "– Ainda gosto dos pre-rafaelitas", por exemplo, resumem toda uma história. 
Há muito tempo não me entusiasmo tanto assim com um filme. Quero ir de novo, é como um livro que a gente tem prazer em reler, pois sabe que vai encontrar mais coisas que deixamos passar da primeira vez. E, o mais extraordinário, é que nos apaixonamos por todos os personagens, sem exceção, perdoamos seus erros, gostamos deles em suas imperfeições e desonestidades, compreendendo sua humanidade.
Não sei o nome de nenhum dos atores, exceto Emma Thompson, que faz um bico. E sei o nome do roteirista, Nick Hornby, um dos escritores mais interessantes da atualidade, que apesar de estar  ganhando uma nota preta com seus livros e roteiros, continua professor de adolescentes e faz parte de uma banda de rock alternativa. Mas todos estão ótimos, e merecem ser destacados. Mas julguem por si mesmos.

Sunday, February 14, 2010

Blocos e mais blocos

Um Carnaval a mais, sob o sol, e a vida dando voltas… Aqui onde estou, na minha torre, escuto a cantoria mais ou menos afinada, e o barulho das vozes de tantas pessoas que não se cansam de rodar pela cidade, em demonstrações genuínas ou não de alegria. Será que gosto de Carnaval? Certamente que gosto de alegria, e me emociona escutar o pessoal cantando. Certamente que não gosto de calor e de aperto. E detesto a "troca de fluidos corporais" a que somos obrigados quando entramos num bloco e passamos por pessoas suadas que, ao esbarrar em nós, deixam um pouco de si e levam um pouco de nós. Só de pensar já faço careta. Mas o que adoro mesmo é me fantasiar. Qualquer florzinha no cabelo, qualquer brilho de lantejoula me fascina. Ano que vem, já me prometi: vou sair de Colombina – uma fantasia delicada, antiguinha, romântica, como posso resistir? Por enquanto uso arquinhos de cabelo e viro Dona Cleópatra, ou prendo uma flor vermelha nos cabelos e fico parecendo Doña Carmen. Estimulada pelas amigas muito mais entendidas em Carnaval do que eu, vou ao Sassaricando, ao Boitatá, ao Boi Tolo, sou rodeada pelo Sapucapeto e pelo Azeitona, pelo Areias, pelos blocos sem nome que ficam aqui na Dias Ferreira, alimentados pelos vendedores de cerveja, e adereçados pelos camelôs de arquinhos e máscaras. A fantasia mais comum que tenho visto é a de "alegoria" – umas misturas malucas que unem vestes de Nero a perucas rastafaris, ou perneiras romanas a máscaras beijoqueiras, que ao invés de cobrirem os olhos, cobrem as bocas das pessoas. As mulheres são mais certinhas: muitas Noivas, muitas mesmo. Muitas Trepadeiras, algumas Havaianas, Enfermeiras, Policiais. As princesas também saem de seus castelos e cruzam as ruas ao lado de Avatares (suponho que sejam, já que estão todos pintados de azul). Melindrosas balançam suas franjas ao lado de Gatas e de Onças. Muita gente se fantasia de bicho: hoje, ao meu lado, uma Galinha esquecia os cacarejos e cantava entusiasmada o rancho das pastorinhas. Ontem foi o dia do desfile do Império Serrano, e lá estava eu fantasiada de escrava acorrentada, exibindo uma gaforinha que mais parecia uma Marge Simpson tropical. Meio metro de peruca e uma cangalha prateada. Pelo menos não era das mais quentes. Meu gás já acabou há muito tempo, mas as amigas não me deixam desistir. Haja produção! Vou seguindo os blocos, mas sempre pela sombra, sorrindo com o riso dos outros, cantando pedaços de sambas e marchas, arriscando um ou outro passo de samba, quando o espaço permite. Ainda me convidam para mais um baile, para mais um bloco, mas o que gosto mesmo é de chegar em casa e ver o livro que me espera sobre a cama. Vou tomar mais um banho e mergulhar na leitura.

Saturday, February 06, 2010

Carnaval

Nos tempos em que estudava literatura medieval, li muita coisa engraçada. O pessoal da época, sempre lembrado pela religiosidade e guerras, já se amarrava numa comédia, e havia muita gente boa praticando o gênero. Um dos livros engraçados e inteligentes era o Libro de Buen Amor.  O bom amor, como é entendido pelos cristãos, é o amor a Deus. A pretexto de estimular o tal do bom amor, o espertinho do arcipreste de Hita, a quem atribuem a autoria da história, vai revelando quais os "maus amores" que devemos evitar. Claro que aí vai se sucedendo uma série de situações que deixaria as pornochanchadas para trás. Para citar uma delas, o narrador pretende se afastar do mundo e virar um ermitão. Nas montanhas encontra uma "pastora" que, isolada, há muito tempo não vê um homem por aquelas alturas. Apiedada do estado de fraqueza do narrador ela o alimenta e aquece para, logo em seguida, usá-lo como objeto sexual. O que começa por deleitá-lo, mas depois o deixa exausto, esgotado, e ele tenta fugir e essas são as cenas mais hilárias de todas. Pois hoje, tentando escapar dos blocos que tomaram o Leblon, me senti vivendo uma dessas histórias medievais. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Quando se acaba de tomar um banho e passar perfume, colocar uma roupinha levinha e descontraída, existe coisa pior do que encontrar um bloco cheio de gente suada e bebendo cerveja? E todos com espírito de confraternização? Foi o que me aconteceu hoje, quando ia encontrar com a família para almoçar. Incauta, cruzei com o tal do Imaginou? Então amassa! Por conta de não conseguir nem imaginar, dei longas voltas até chegar a meu destino, e ainda agradeci aos céus por estar a pé, pois de carro teria ficado presa por horas no trânsito. Depois, esquecida da emoções do almoço, peguei uma carona para voltar para casa. Achei que a Dias Ferreira já estava liberada, mas, qual o quê! Ao virar a esquina descobri que a rua estava tomada por um bloco que parece ter estacionado para sempre aqui ao lado de casa. Não sei o nome, mas é o bloco com os músicos mais desafinados da história do Carnaval. Os caras do cavaquinho estão tocando sempre a mesma coisa, não importa o que o pessoal do bloco cante e o ritmo que a bateria imprima às canções. Eles tocam como se tivessem aprendido a tocar fazendo acompanhamento para karaokê. Sabe aquelas frases musicais que não combinam com nada nem dão ideia do que está sendo tocado? Ficam naquele barulho apressadinho do cavaquinho, e deixam a todos zonzos. Muito chato isso. Leio Marques Rabelo e descanso com Lillian Hellman. Dois livros de memórias, tão diferentes como suco de uva e água. Como homem e mulher. Como faca e garfo. Mas cada qual com seu valor e utilidade. E combinando em minha cabeça, me mostrando um mundo desaparecido, que teve seus encantos e seus horrores. O bloco dos desafinados me dá a deixa para terminar, com a linda música do Gonzaguinha, que eles vão assassinando sem piedade: Viver e não ter a vergonha de ser feliz! A vida é bonita, concordo com o compositor. Só que às vezes cansa…