Tuesday, August 10, 2010

Inveja de Bartleby

Das muitas coisas que já li, uma das que mais me incomodaram foi Bartleby. Sabem por quê? Por que sofro de uma inveja doentia deste personagem que tem a coragem de dizer que prefere não fazer. E não faz! Ele resiste, determinado. Não se dobra às argumentações.
Desde pequena que fui obrigada a fazer aquilo que os outros queriam: ser bem comportada era minha única opção. Não sei como me convenceram a ficar assim tão "amestrada", se foi pela persuasão ou por espancamento (sim, isso se usava em minha casa), não sei o que resultou em me dar essa segunda natureza que, muitas vezes, amaldiçoo, mas da qual não consigo me livrar. E assim vou fazendo aquilo que esperam que eu faça. Nem mesmo o direito à minha timidez eu tenho: se eu dizia que "tinha vergonha", aquilo parecia ser uma senha para que todos os olhos se voltassem para mim e todas as vozes reverberassem, altíssimas, me censurando. Em resumo, a vergonha de ter vergonha se tornou mais forte que o desejo de uma proteção que nunca me foi dada. Pois se tentava me esconder atrás de uma saia, ou de pernas adultas, era puxada, empurrada, até que me pusessem, desamparada, a descoberto. Tantos anos passados, ainda sofro com a evocação dessas cenas.
Mas um dia, tardio, com certeza, li Bartleby. Confesso que li sem entender direito, minha psiquê não permitia que eu me identificasse com aquele ser que estava morto dentro de mim mesma. Preferiria não fazê-lo, se me fosse possível dar essa resposta. Mas, uma vez começada a leitura, tinha que terminar. E, lido o livro, tinha que pensar sobre ele. Bartleby até hoje me assombra. A cada vez que faço algo contra a minha vontade, ele me olha de seu cantinho escuro e ri, sardônico. Não diz nada, mas o riso que atravessa sua boca é um relâmpago que ilumina, impiedoso, a minha falha.

Friday, August 06, 2010

Texto do JALLA

A pedidos, aqui fica publicado o texto que li hoje no JALLA, sobre Mário de Andrade. E a indicação do blog absolutamente andradiano, do meu amigo Cesar Cardoso é Patavinas cesarcar.blogspot.com Indo lá vocês verão que o espírito de Mário continua vivo no César.
Agora o texto. E bye-bye, pois vou à Flip!
Mais uma última coisa: peço perdão pela bibliografia incompleta… depois trato disso.

Ensaiando e provando o gosto do outro

Lúcia Bettencourt – Universidade Federal Fluminense (UFF)

No capítulo IV do livro de sua autoria, Mundialização e cultura (1994), Renato Ortiz começa por citar a pequena parábola de Enzensberger, falando da estranheza do executivo alemão enviado à China, e do seu alívio ao chegar a Hong Kong, sentindo-se outra vez em casa. Isso ocorreu antes de 1985, época em que a China ainda era um território fechado às influências do mundo globalizado. O executivo em questão não sabia falar chinês, e seus hospedeiros desconheciam sua língua, ou mesmo o inglês e o francês. Não havia automóveis em que ele pudesse circular e o quarto de hotel, modesto, em que estava hospedado, era forçosamente compartilhado com outro viajante qualquer. Mas, ao chegar a Hong Kong, lugar tão longínquo quanto o que acabara de deixar — e tecnicamente parte do mesmo país —, o executivo se sente outra vez à vontade, “sente-se em casa”, como ressalta Ortiz.

Esse reconhecimento se deve ao fato de que o viajante volta a se encontrar entre “coisas de sua vida prosaica” (ORTIZ, 1994, p. 107). Esses objetos, porém, não são alemães, nem americanos, nem de uma ou de outra origem geográfica. Essas “coisas” pertencem “ao anonimato de uma civilização que minou as raízes geográficas dos homens e das coisas” (ORTIZ, 1994, p.108). Estamos vivendo em meio ao que o autor chama de uma cultura internacional popular onde os objetos se criam a partir da união de pedaços oriundos de diversas regiões aleatórias do planeta. Um carro popular vendido no Brasil pode ter sido projetado na Itália, e, mesmo montado no Brasil, seus vidros podem ter vindo do Chile, os assentos da Bolívia, o carburador da França e o seu motor do México. E, no entanto, este carro pode ostentar a marca Made in Brasil, tal qual uma novela da Globo, com cenários italianos, atores portugueses, produção peruana, montagem argentina! Não há como precisar sua origem. Os objetos e criações estão voltados para o “mercado”, que interliga regiões e transforma as relações de trabalho em escala mundial. O fenômeno em questão desterritorializa não apenas os produtos como a própria arte, que perde suas fronteiras geográficas e temporais.

Na sua constante busca de expressão, artistas, arquitetos e escritores, ao se rebelarem contra a massificação e a padronização de formas estéticas, procuram no passado os elementos que lhes pareçam mais próprios à pureza de seus conceitos. Buscando em aspectos da tradição européia e ou das culturas autóctones elementos para enriquecer suas produções, as releituras dos traços oferecidos pelo passado nos fazem, hoje, estranhamente contemporâneos a este. Globalizamos tempo e espaço, e cultuamos a simultaneidade. Com isso, desenraizamos as referências culturais para ficarmos apenas com o produto, que deixa de ser valorizado pelo seu “hic et nunc” e passa a ser estimado como simulacro “perfeito”.

Refletir sobre mundialização de cultura é, necessariamente, questionar o valor de uma cultura nacional. Embora alguns autores acreditem que uma cultura mundializada seja impossível, já que se trataria de uma “cultura sem memória”, pode-se, não obstante, pensar numa “memória permeada pelo consumo”, numa “memória cibernética” e numa “memória internacional popular”. Esse tipo de memória reconhece que, no interior da sociedade de consumo se reconhecem referências culturais mundializadas. Com uma base de dados construída a partir das lembranças desterritorializadas que nos permitem reconhecer, em qualquer parte do mundo, as referências a Avatar e a Humphrey Bogart,; que tornam a Escrava Isaura reconhecível na Rússia; que nos capacitam a entender citações a Greta Garbo num filme de Almodóvar; e a aceitar como África, ou Oceania, ou o mundo de Guerra nas Estrelas, os simulacros oferecidos nos parques da Disney, nossas fronteiras se tornam cada vez mais abstratas e universais.

Em literatura, a pós-modernidade aceitou como usual o uso de “intertextualidade”. Reconhecendo que os textos são sempre construídos a partir de outros textos anteriores, encara-se a literatura segundo os ensinamentos de Borges, com sua Biblioteca de Babel. Ali onde todos os livros estão contidos, tudo o que vier a ser escrito terá de ser, necessariamente, uma combinação de elementos pré-existentes dentro do universo da Biblioteca. Portanto, abre-se a porta para textos que não são necessariamente os textos canônicos, uma vez que na Biblioteca de Babel, Dante convive com o rap, e as histórias em quadrinho convivem com o discurso político demagógico. E um enriquece o outro, pois os livros (bem como as obras de arte) dialogam com as manifestações da cultura de mercado. Citar uma propaganda de cerveja, que não foi exibida na TV aqui no Brasil, mas que está disponível na internet, não só é possível, como inteligível. Reconhecer na tela modernista o paradigma clássico não é mais tarefa de pesquisador, e sim brincadeira de videogame.

Essas práticas que nos parecem essencialmente pós-modernas, em verdade vêm-se repetindo desde muito tempo. Em 1928 aparece a primeira edição do livro de Mário de Andrade, Macunaíma. Nesta obra, o herói sem caráter, cheio de ambiguidades, parido por uma índia, nascido com pele negra, branqueando-se através de um mito é um viajante por terras do Brasil e da América Latina. Livro-saga que canibaliza outros textos, colocando-os em diálogo com os romances brasileiros anteriores a si mesmo, ele prefere ser rapsódia, e assim assumir seu caráter musical, oral e popular. Deste modo, em diferentes movimentos, vamos percorrendo os caminhos e descaminhos do Brasil e da América Latina. Inspirado, como admite, pela leitura de Vom Roraima zum Orinoco, de Koch-Grünberg, Mário de Andrade ignora as fronteiras tradicionais do país e incorpora as lendas das diversas regiões do continente. E ignora os parâmetros do romance para incorporar diferentes formas de expressão.

Macunaíma, uma espécie de "Ulisses crioulo", carrega consigo um séquito. Seus dois irmãos, um negro e um índio são mais do que irmãos, são partes de sua identidade. Só assim se explica o completo domínio que o "mano mais novo" exerce sobre os outros dois "manos". Sua primeira viagem é uma viagem de exploração das terras americanas. Para empreendê-la ele necessita deixar sua consciência resguardada na Ilha de Marapatá. Depois viaja pelos mitos brasileiros e hispano-americanos, demonstrando uma afinidade maior do que a geralmente admitida entre as duas tradições. Em seguida, abandona seus domínios e se aproxima de uma civilização que não reconhece como sua, mas da qual imediatamente, ou quase, se apropria. Neste novo cenário ele se enfrenta com um gigante meio europeu meio hispano-americano que deseja comê-lo seja literalmente, seja em sentido metafórico.

A obra se revela um livro único: breve, alegre, variado e eruditamente entremeado de críticas. Em Macunaíma -- considerado como a expressão novelística das proposições do "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade -- saboreamos uma excelente "refeição literária", que consiste em pratos rústicos e de sabores definidos na simplicidade do folclore, em pratos mais pesados e de elaboração intrincada pela retórica; que finaliza com delicadezas de sobremesas de sabor decadentista ou com o caráter agridoce de frutos tropicais nas modinhas e aforismos, e deixa no ar um aroma a cafezinho, servido por uma burguesia insegura, com medo de se sujar na graxa das máquinas das primeiras fábricas brasileiras.

No final de sua vida, Mário de Andrade oferece a seus leitores ainda mais uma substanciosa refeição. Seu último projeto literário foi uma série de crônicas publicadas sob o titulo de "O Banquete" na Folha da Manhã. Esta série foi interrompida por sua morte, e cerca de 30 anos depois foram publicadas no seu conjunto, num livro compilado e prefaciado por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas, mantendo o titulo original da série. Este conjunto de crônicas que o autor pretendia organizar em livro é uma meditação sobre as possibilidades da música -- por metonímia , da arte -- numa sociedade marcada por contradições. Mentira, a "simpática cidadinha da Alta Paulista", é um microcosmos que concentra características peculiares a um pais colonizado. Ressente-se de vários problemas, um dos quais, talvez o maior deles, seja sua relação com a tradição artístico cultural, cujo modelo importado satisfaz ao anseio de inserção dos "mentirosos" numa tradição cultural por eles admirada, mas que também os exclui, pois não tem espaço para aceitar o folclórico e pitoresco quando digeridos e transformados em novas propostas.

O Banquete não pode ser considerado um romance. O conjunto de crônicas viria a dar, eventualmente, um diálogo de características filosóficas, que trataria não apenas da estética, mas da ética artística. A compilação das crônicas efetivamente publicadas e dos projetos das que se seguiriam, nos permite ver a abrangência pretendida por seu autor. Infelizmente, a morte o surpreendeu a meio do caminho:

Redisponho assuntos do “Banquete”. Passo a manhã toda reestudando com meia angústia as notas e fichas. Com o desenvolvimento, à medida que escrevia os artigos, embora tivesse um sumário geral, tudo ficou caótico e superlotado. Só consegui de mais eficiente esta manhã fixar 5 assuntos gerais, pra 5 capítulos . Sinto que com a ebulição de tanta leitura, podia, neste momento, fixar o sumário do capitulo Salada, mas me sinto fatigado. Deixo pra amanhã.

Com essa entrada em seu diário no dia 18 de fevereiro de 1945, Mário de Andrade refere-se à mencionada série de artigos que vinha publicando na coluna de sua responsabilidade do Mundo Musical. Sete dias depois a morte o surpreendeu e seu projeto quedou-se incompleto. Tal como dele temos noticia, O Banquete ressente-se de todos os males de uma obra inacabada. "Caótico" e "superlotado" nas palavras do próprio autor, é, entretanto, uma obra que merece respeito pelas importantes reflexões crítico-estéticas nela veiculadas. O titulo escolhido traz à memória o famoso diálogo socrático, e não é possível ignorar as ressonâncias do texto grego existentes na obra andradina. Se as reflexões de Mário não se pretendem um pastiche do filósofo e se os temas propostos diferem, ainda assim é licito procurar os pontos em comum entre as duas obras. É o próprio Mário, em cartas a Guilherme de Figueiredo, quem nos autoriza a aproximação ao texto grego. Num primeiro momento, no final da carta datada de 10-II-44, Mário informa seu amigo quanto ao projeto que trazia em mente e rejeita a aproximação:

Creio que vou fazer um "Banquete" musical, que se chamará decerto, "O Almoço" pra não imaginarem que estou querendo concorrer com o de Platão e demais banquetes antigos. Mas é um jeito bom de ter vários rodapés encadeados e não andar na angústia de cavar assuntos, acho que vou fazer. Será um almoço de domingo com cinco personagens, o compositor Janjão, o politiqueiro Felix de Cima, a milionária que ainda não tem nome, a cantora Siomara Ponga e um moço estudante de direito, não sei, meio surrealista, que diz as verdades, talvez nordestino, mas que está me saindo bastante simpático. Janjão será o personagem "dramático". Os outros três esculhambativos. E o moço será a mocidade. Mas não sei ainda, tá tudo muito vago. E não vai ser nada de trabalho, coisa para encher rodapé, descuidadamente. (ALG, p. 88)

Vemos que o que se iniciara como um modesto projeto, e cujo título devia passar a ser almoço para evitar comparações com uma tradição de diálogos filosóficos, se assume, mais tarde, como projeto de seriedade, merecedor do nome em questão visto tratar-se de obra "de combate". Em 6 de agosto Mário já se refere ao projeto como algo que vai dar em livro e que é “escrita clara e definitivamente participante desse nosso mundo escuro, e mesmo obra de combate”. É no próprio O Banquete que Mário esclarece o que seja uma "obra de combate", obras que "maltratam, excitam o espectador e o põem de pé". Para construí-la, são necessárias as técnicas do inacabado:

Toda obra de circunstância, principalmente a de combate, não só permite mas exige as técnicas mais violentas e dinâmicas do inacabado. O acabado é dogmático e impositivo. O inacabado é convidativo e insinuante. É dinâmico, enfim. Arma o nosso braço (BQT, p. 62)

O nome banquete, com suas alusões semânticas ao ato de ingerir, está também ligado ao importante movimento do modernismo brasileiro: a antropofagia. Preocupados em proclamar a independência da arte brasileira no ano em que se comemoravam os 100 anos da independência política do pais, o grupo de jovens que organizou, em São Paulo, a Semana de Arte Moderna não cessou aí suas movimentações. Continuando um processo cada vez mais abrangente, em 1928, Oswald de Andrade publica o "Manifesto Antropófago" e se propõe a reconhecer um processo de mão dupla na arte brasileira. As influências estrangeiras propunham-se inegáveis e até mesmo desejáveis num mundo que se fazia cada vez menor.

Acompanhando as idéias de Oswald de Andrade, os modernistas procuram pensar os processos de criação dos artistas brasileiros e tentam encontrar seus caminhos próprios, nacionais. Mário de Andrade percebe que o regionalismo exótico e pitoresco era um recurso imposto de fora para dentro, que era necessário repensar. A arte brasileira -- e toda a arte americana, por extensão -- sobreviveria e floresceria, pensava Mário, de acordo com a antropofagia, desde que houvesse uma digestão de tudo aquilo que ela cobiçasse como seu. Uma escola européia, uma idéia filosófica, um comportamento aborígene, tudo cabia nas produções novas, desde que “comidos”, digeridos. Isso porque seria impossível apagar os anos de educação burguesa e os séculos de influência do pensamento artístico (e também filosófico, cientifico e político) ocidental.

A literatura, dessa maneira, pode ser representada como um grande banquete, onde as iguarias se multiplicam e o “gosto” literário da nova arte permite a escolha entre pratos tradicionalmente apetecíveis e pratos tabus que se totemizam conforme a pregação do "Manifesto Antropófago". Nada mais apropriado, na hora de reavaliar esse pensamento de sua juventude, que Mário de Andrade resolva fazê-lo num banquete, tão antropofágico quanto platônico.

O Banquete de Mário de Andrade deseja fazer uma reflexão séria sobre a arte de sua escolha -- a música -- e a sociedade de seu tempo. Praticando o que propõe, tal como Sócrates em seu banquete, Mário assume a critica. Melhor ainda, Mário preocupa-se em definir uma critica que funcione como instigação ao processo de "parturição no belo". As tradições devem necessariamente se relativizar de acordo com os valores sócio-temporais. E, para que a arte possa florescer, será preciso abandonar conceitos “puros” e assumir as diferenças, as heterogeneidades. Incorporar, aceitar, mesclar, açambarcar, colecionar, fazer simulacros é o caminho que ele aponta na já remota primeira metade do século XX.

Segundo Silviano Santiago, “a maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza” (SANTIAGO, 1978, p. 18). Rasgando os véus dos discursos imperialistas e das justificativas do Deus Mercado, Santiago chama a atenção para a necessidade de uma critica que compreenda que as influências são dinâmicas e que ocorrem a partir de qualquer vetor. Uma critica voltada apenas para o passado, para a origem, despreza o valor do presente e subestima a capacidade artística do futuro.

Nas refeições apresentadas, onde as personagens merendam e se digerem, debate-se a questão das influências. Entre as iguarias, o que se destacam são as transgressões cometidas. Longe de se interessar apenas “pela parte invisível do texto, pelas dívidas contraídas pelo escritor” (SANTIAGO, 1978, p. 28) os textos nos revelam que é preciso descondicionar o leitor e ensiná-lo a aceitar o jogo do texto — aquilo que nos faz desejar continuar como participantes do jogo, mas que nos permite, também, observar com olhos críticos as imposições a que a sociedade de consumo nos submete:

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão, — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino americana. (SANTIAGO, 1978, p.28)

Com este brilhante final, Silviano Santiago revela o entrelugar do discurso latino americano, porém, o que testemunhamos hoje, é que esse “entrelugar” passou a pertencer não apenas aos países submetidos às influências econômicas das metrópoles, mas às próprias metrópoles.

Como aponta Lívia Reis, “a partir da década de 60, a cultura da América Latina assume a heterogeneidade de sua identidade e convive, de forma também heterogênea e complexa, com a globalização internacional” (REIS, 2009, p.103). Vivendo numa era de cada vez maior penetração midiática e de extrema instabilidade econômica, as novas necessidades das leis de mercado preferem apagar os traços “nacionais” para criar apenas uma nação, o “consumo”. Curvados a essa necessidade de precisar ser produto para ter valor, os escritores já não se angustiam mais com a legitimidade, mas com sua legibilidade ou palatabilidade. Nos caminhos da literatura encontramos, agora, textos que já não podemos mais reconhecer como brasileiros, somalis, ou franceses, nem sequer pela nacionalidade de seus autores. Os mais recentes ganhadores de prêmios Nobel e Goncourt nos revelam essa dificuldade de catalogação: Marie Ndiaye, John Coetzee, Le Clézio, a que nicho cultural pertencem? A que tradição se filiam? E qual o gênero em que escrevem?

Nos ensaios, gênero que volta à moda em nosso novo século, os autores podem se permitir uma voracidade maior. Nas obras romanescas dos autores citados encontramos trechos que, claramente, pertencem ao gênero ensaístico e que confundem os leitores que se inquietam, sem saber se estão lendo obras de ficção ou textos de estudo critico ou mesmo ensaios políticos, ou até denúncias. Mas, consumidores bem adestrados, nos submetemos ao estranhamento e embarcamos na leitura destas obras com uma aguda consciência de jogo, entregando-nos à possível “fruição”, se não nos é possível encontrar o mais fácil “prazer do texto” (BARTHES, 1987). Afinal, se não podemos passear pela África, podemos enganar nossa sede de aventura com um novo videogame ou com um simulacro de safári num parque Disney. O importante é estarmos antenados e capacitados a reconhecer que, vivendo num mundo cada vez mais globalizado, nosso entrelugar agora se situa no “não lugar “ (ORTIZ, 2006, p.105-106) das marcas e produtos, encruzilhada dos espaços e do tempo.

Referências:

ANDRADE, Mário. O banquete. (1974)

––––––. Contos Novos.(1947)

–––––––. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.(1928)

ANDRADE, Oswald. “Manifesto antropófago”.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987. Col. Elos.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. 7ª reimpressão.

REIS, Lívia. Conversas ao Sul. Niterói: EdUFF, 2009.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva : Secretaria da

Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.

TROUCHE, André Luiz Gonçalves. America: história e ficção. Niterói: EdUFF, 2006.

VASCONCELOS, José. Ulises Criollo.