Wednesday, February 29, 2012

Carolina, Manzano e Vik Muniz


Recebi o pedido de uma amiga, aqui está a palestra feita por mim em Kentucky, em abril de 2011.
Bom proveito, Danielle. Sucesso com seu trabalho.
Carolina de Jesus, Juan Francisco Manzano e Vik Muniz: subtextos e subversões.
Negra, mulher e favelada foram os adjetivos que pautaram a campanha de uma candidata ao governo do Rio de Janeiro, há alguns anos atrás. Um slogan político forte, que lhe deu a vitória. Estas palavras, no entanto, já haviam servido como identificadoras de uma autora, Carolina Maria de Jesus, que teve suas memórias publicadas sob o título de Quarto de despejo, nos idos de 1960.
Seu livro, trabalhado pelo jornalista Audálio Dantas, causou um enorme interesse e foi sucesso de público e de crítica. Como, afinal de contas, numa sociedade como a brasileira, onde as mulheres dependiam do casamento para alcançarem legitimidade social, e quando eram poucas aquelas que “trabalhavam fora”, como, repito, sobrevivia esta mãe  solteira, de pele negra, sem outra fonte de renda que a obtida catando papel?
Um refugo da sociedade, vivendo num quarto de despejo e sobrevivendo do lixo teria direito a ter sua própria voz? A originalidade de uma catadora de papel, semi alfabetizada, que escrevia suas memórias nos pedaços de papelão que reunia, chamou a atenção do jornalista que editou o diário de Carolina para transformá-lo num livro. Esta obra mereceu a atenção de toda a sociedade brasileira e foi traduzida em mais de uma dúzia de idiomas, tendo provocado o exame crítico de acadêmicos de diversas nacionalidades. Segundo as informações de Robert M. Levine and José Carlos Sebe Bom Meihy publicadas em The Life and Death of Carolina Maria de Jesus (Albuquerque, University of New Mexico Press, 1995.) Carolina foi “descoberta”  por Audálio Dantas que, ao fazer uma reportagem sobre um parque público, ouviu a catadora de papel brigar com arruaceiros e bêbados, ameaçando que os colocaria em seu “livro” caso não se comportassem. A palavra “livro” despertou o interesse do jornalista que descobriu os escritos de Carolina e conseguiu a publicação de seu diário. Apesar de todo o sucesso alcançado por sua obra de estreia, as publicações seguintes não tiveram êxito {Casa de Alvenaria (1961), Provérbios e Pedaços da Fome (1963) e Diário de Bitita (1982 - edição póstuma pela casa editora francesa A. M. Métailié)}. Carolina Maria de Jesus caiu no esquecimento. Pobre, morreu na casa em que morava com o filho mais velho, no bairro de Parelheiros, em São Paulo, no dia 13 de fevereiro de 1977.
Seu livro chama a atenção para a fome e a miséria. Dia após dia listam-se as parcas refeições, os choros frustrados das crianças, seus filhos, que precisam ir para a cama sem comer. Apesar de brutalizada pelas condições de vida, a autora, porém, consegue manter um lado de humanidade que dá ao texto um encanto que os relatos sociológicos jamais poderiam revelar. Carolina manteve sua humanidade. Era mulher e, como tal, mantinha sua vaidade, seus sonhos. Feia, maltratada, ela “não se enxergava” como tal. E, como se não bastasse, ainda tinha a coragem de fazer ouvir sua voz.
O sucesso transformou Carolina numa “estrela”. Ela foi exibida como uma curiosidade. Foi recebida em palácio pelos presidentes brasileiro e uruguaio. Foi levada a recepções. Deu entrevistas a jornalistas estrangeiros, através de intérpretes. E, para cada um destes compromissos, foi paramentada, enfeitada, tendo recebido, –dados ou emprestados –, vestidos, sapatos e jóias. Seus cabelos foram penteados, suas mãos manicuradas, seus pés tratados. Como uma boneca, Carolina foi exibida nas recepções, fotografada nos eventos. Num perverso movimento, a sociedade que a rejeitara e marginalizara, ao ver que ela tomava voz e surgia como pessoa, tratou de transformá-la através de sua “bondade” (o termo é de Carolina). As mulheres da sociedade, “tão boas”, fizeram dela um manequim e conseguiram,insidiosamente, mais uma vez, relegá-la à margem. Depois de brincarem com sua boneca nova, abandonaram-na e foi assim que, outra vez na miséria, Maryvonne Lapouge e Clélia Pisa a foram encontrar, quase totalmente esquecida, para uma entrevista pouco antes de sua morte. Carolina, que, nos seus dias de glória tinha sido assunto em destaque nos principais periódicos do mundo, tais como Paris Match e Realité, além de revistas e jornais nacionais, vivia afastada, cheia de memórias amargas e de algumas desilusões, sem conseguir editor para sua produção, que se acumulava em cadernos escolares guardados em caixas de papelão com cheiro de mofo, conforme nos informam suas entrevistadoras. (Uma caixa contendo trinta e sete cadernos, com mais de cinco mil páginas com sua letra característica. Ali, Carolina deixou poemas, contos, quatro romances e três peças de teatro, conforme foi levantado posteriormente)
Esta mulher, em seus escritos, desenvolveu estratégias narrativas que davam vozes aos “afônicos” – outro termo usado por ela, que, apesar de poucos estudos e de uma falta de consciência política, podia perceber que havia uma camada enorme da sociedade brasileira que não tinha direitos e, portanto, não  tinha voz. Mesmo através da filtragem da edição, seus textos ainda levantam aspectos que merecem reflexão, e é por isso que propomos uma releitura de sua obra para resgatar sua legitimidade e seu direito de representação. Fazendo uma “cartografia de espaços degradados, relacionados a restos, a desordem, a coisas que ninguém mais quer.” (Site Itau Cultural) Carolina representa sua experiência de vida através do reaproveitamento do lixo, do refugo da nossa sociedade que cada vez se baseia mais no insaciável “ter” do que no “ser”. Ao fazer isso, uma crítica se revela: ao reaproveitar o que um grupo social considera “imprestável”, é possível criticar esta sociedade e revelar que, em seus “refugos” existe toda uma economia que apenas começa a ser reconhecida embora ainda não esteja sendo valorizada integralmente. Ao usar os restos, as coisas que ninguém mais quer como materia prima, elabora-se uma (sub)versão da sociedade que descarta, sem piedade, coisas que possuem algum tipo de valor mas que o consumo desenfreado descarta e destrói.
Recentemente, Vik Muniz, artista nascido no Brasil, mas radicado nos EUA, “descobriu” o Aterro de Gramacho, o maior aterro sanitário do mundo. Nesta área de dimensões ciclópicas, há uma multidão de pessoas que passam seus dias em condições insalubres, fazendo do lixo seu meio de vida. Trabalhando e se alimentando no que é conhecido como “lixão”, estas pessoas estão esquecidas e sem assistência. Descartadas. Até bem pouco tempo, menores de idade também trabalhavam ali, em permanente perigo para sua saúde e integridade física. São Carolinas modernas, mais degradadas ainda que a favelada dos anos 60.
Vik chegou com uma proposta interessante: recriar, com lixo, obras canônicas da história da arte. Os próprios catadores seriam envolvidos na coleta e montagem de materiais: cada um seria fotografado de acordo com a obra de arte escolhida; em seguida, num galpão, uma monumental colagem seria feita pelos próprios retratados; finalmente, essa recriação seria fotografada por Vik e o resultado seria exposto em museus e leiloado em benefício dos catadores. Tudo isso foi realizado, com inegável sucesso. Além das exposições, um livro e um documentário também foram feitos, ampliando ainda mais o alcance desta ideia, que repercutiu em vários países.
Sete foram as obras de arte escolhidas para a recriação:
Atlas, Guercino, 1646, Palazzo Mezzi Bardini, oleo sobre tela, 127x101cm. Personificado por Carlão.
Portadora de oferenda, c.1981-1975 a.C., The Metropolitam Museum of Art, Madeira, gesso  e tinta. 112x16,50x46,50 cm. Interpretada por Irma. (A carregadora)
Mulher passando roupa, Pablo Picasso, 1904, Guggenheim NY, oleo sobre tela, 116,20x73cm. Personificada por Ísis.
Albanesa, Camille Corot, 1872, Brooklyn Museum, oleo sobre tela, 74,10x65,60cm. Interpretada por Magna.  (Cigana)
Marat assassinado, Jacques Louis David, 1793, Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, oleo sobre tela, 165x128cm. Personificado por Tião.
Madonna com criança, Giovanni Bellini, 1510, Pinacoteca de Brera, oleo sobre tela, 85x118cm. Interpretada por Suellen (Mãe e filhos)
O semeador, Jean François Millet, c.1865, coleção particular, pastel e lapis sobre papel, 36x43cm. Personificado por Zumbi.
Não estão explícitas as razões que levaram à escolha destas determinadas obras, assim como não se revela o critério de seleção das sete pessoas em questão, dentre um universo de cinco mil catadores. Acontece que a adequação do modelo à obra, uma vez escolhidos uns e outras, se revela muito apropriada. A enormidade do saco que obriga Carlão a uma posição recurvada, e sua expressão de olhos enviezados, desafiadores, o aproximam do titã castigado, carregando o mundo sobre os ombros. A força e a firmeza de Irma, com sua cesta sobre a cabeça, seu rosto sereno e escultural, refletem a tranquila posição da estatueta egípcia, oriunda de um mundo quase mítico, de tão distante. A fragilidade de Isis, que, no entanto, não desanima e pressiona o ferro de passar com o peso de seu próprio corpo, para que aquilo que faz não saia de seu controle, expressa sua feminilidade que, ao invés de se expandir, a deixa acabrunhada sobre o trabalho. Já Magna, orgulhosa, levanta o rosto e olha confiante e desafiadoramente, tal como a albanesa atraente de Corot. Sebastião, o Tião, que lidera a organização dos catadores, por sua própria atividade política aproxima-se de Marat, mas, se este se mostra exangue, o brasileiro conserva sua vitalidade, mesmo quando surpreendido num momento de abandono, como se fosse o descanso do guerreiro. A jovem Suellen, retratada com seus filhos como se fosse uma Madonna, é aquela que se vê “aceitando” sua posição de indefesa. Ela se define pela maternidade, e pela submissão àos designios impostos a ela por uma vontade externa (Faça-se em mim segundo a sua vontade…). Finalmente Zumbi, o semeador, é aquele cujo sonho é a construção de uma biblioteca. Ele é quem salva os livros do lixo e os acumula e compartilha, semeando ideias e sonhos.
O livro publicado, Lixo extraordinário, se apresenta também como uma releitura: a de Os sertões, de Euclides da Cunha. Dividido em partes intituladas A terra, O homem e A luta, ele acrescenta mais um aspecto a esses: A arte. Se Euclides escreveu seu grande livro numa tentativa de compreender e explicitar a estrutura da recente república brasileira, Vik Muniz e Alexei Bueno se debruçam sobre as condições dos brasileiros, dos terceiromundistas, frente a um mundo onde as fronteiras e sentimentos nacionais se encontram cada vez mais diluídos graças aos interesses da sociedade capitalista que se dissemina pelos quatro cantos do globo. Na seção O homem, Alexei chama a atenção para “a lógica normal do capitalismo num país de Terceiro Mundo, no qual a desqualificação empurra o indivíduo a situações extremas para sobreviver”.  O tempo passado entre Carolina e os personagens de Vik Muniz não amenizou o alarmante abandono a que pessoas sem qualificações podem ser relegadas numa sociedade capitalista cada vez mais selvagem. Mas a consciência moderna procura refletir sobre este descarte. O lixo gerado no mundo conta a história da destruição do próprio mundo. A (sub)versão que a arte cria ao examinar os detritos e resgatá-los aponta para um subtexto que é a história dos próprios participantes do projeto.
Encontrando esses indivíduos “desfocados” no meio de tanto detrito, Vik Muniz consegue resgatar a individualidade de alguns, destacando-os e monumentalizando-os em imagens enormes, imponentes.  Ao mesmo tempo que ele “eleva” esses indivíduos, ele dessacraliza obras canônicas, ao reconstruí-las com lixo. Mas, tal como ele pensa, “preconceito e arte não combinam, visto que a experimentação deve ser plena”.  Recriando as obras icônicas a partir do lixo, e dando a esses catadores um perfil reconhecido e admirado, ele está funcionando como  “uma espécie de filtro, de tradutor do mundo”.
Nesta alquimia que transforma lixo em luxo (arte) envolvem-se vários aspectos dignos de nota. Podemos começar mencionando a questão do tempo: o lixo, o aterro sanitário, é um local onde o tempo precisa ser interpretado de maneira diferente da usual. Ao invés de passagem de tempo, temos ali a presentificação (degradada) do passado. Como o artista ressalta, neste local, onde todo o lixo da cidade do Rio de Janeiro se acumula há quatro décadas, uma pessoa de quarenta anos, ao fazer um corte no aterro, corre o risco de encontrar suas próprias fraldas! Mas existe, também, uma questão de linguagem, pois surpreende-se uma impossibilidade de definição. Tudo, todas as coisas estão quebradas, mas nada daquilo está integrado ao que normalmente consideramos “substância”, revela o artista. Tudo se descaracteriza e se reduz resistindo a ser apreendido como “Natural”. Ao mesmo tempo, a percepção se desenvolve de modo fora do usual, uma vez que “tudo é simultaneamente focal e periférico, enquanto somos bombardeados por cheiros, gostos, temperaturas insuportáveis, durante todo o tempo em que ali permanecemos”.
Refletindo sobre seu projeto, Vik Muniz revela que o que mais o sensibilizou foi “o tamanho do nosso preconceito”, mas, esperançoso e otimista, ele afirma que “a arte muda as pessoas, não só pelo convívio, mas também pelo engajamento, pela produção”.
O mundo que acolheu e depois rejeitou Carolina Maria de Jesus teria se transformado? Inegavelmente, existe uma tomada de consciência e uma busca de cidadania entre estes ‘habitantes do planeta lixo’. Lutando para se organizarem como classe; conscientes da existência do preconceito que os marginaliza até mesmo entre os outros desfavorecidos, repugnados pelo odor que se impregna em suas pessoas; eles recuperam sua dignidade através de sua capacidade de conhecer-nos ‘pelo avesso’, pelo nosso excesso. Tudo aquilo que nos sobra e que consideramos inservível, ao chegar às suas mãos, se vê insuflado de valor e significação. Capazes de ler o lixo como um texto, eles comentam as vidas miseráveis de mulheres solitárias e de homens sozinhos, cuja fome de amor se sacia nos cuidados com o próprio corpo ou com a contemplação de revistas eróticas. Eles conhecem o que está por trás da imagem cultivada pela sociedade de consumo, veem o vazio de nossas embalagens fúteis e nos leem por aquilo que realmente produzimos: excesso e futilidade. Mas, ao contemplar a obra de Vik Muniz, procuramos conhecê-los um pouco melhor. O que será destes indivíduos que se singularizaram em obras de arte, que foram convidados a espaços de cultura, como museus e casas de leilão, mas cuja realidade não mudou, ou, pior ainda, está com data marcada para desaparecer? (Gramacho está com os dias contados e o próximo aterro sanitário não permitirá a presença de catadores em suas instalações). Numa espécie de auto crítica, durante o documentário, ao ser provocado por uma colaboradora, que lhe indaga se seu projeto não é apenas uma tentativa de abafar sua “má consciência”, Vik Muniz responde que  se ele estivesse numa situação de extrema penúria e alguém lhe desse a oportunidade de sair desse ambiente e viver dias de Cinderela, mesmo com um prazo de validade curto, ele preferiria ter a chance de viver esse sonho do que passar a vida sem conhecer “o outro lado”.  Numa crônica que publiquei na revista Continente, concordo com isso. Acho que todos nós optaríamos por ter nosso momento Cinderela, ao invés de passarmos a vida como meras Borralheiras. Concretizar um sonho, mesmo fugazmente, ainda assim é uma realização.
É importante notarmos, porém, que essas subversões criadas por Carolina e por Vik têm uma vida própria. Mesmo sem se manter nos lugares mais destacados e festejados, o livro de Carolina segue até hoje sendo lido e estudado. Existem celebrações de sua memória, adaptações para o teatro, exposições, seminários voltados para sua obra que acabou sendo publicada após sua morte, em diversas edições. A “afônica” transformou-se em arauto, e é inegável que hoje seus livros têm relevância nacional e servem de paradigma para estudos específicos. Cremos que a obra de Vik Muniz encontrará o mesmo tipo de permanência, e que a subversão que ele propõe encontrará reverberações em muitos trabalhos. Para começar, essa interpretação “pós-moderna” de obras consagradas, reconstruídas através do lixo (extraordinário ou não), começa por propor a questão do valor do cânon, da dessacralização da obra, do simulacro. São muitos os aspectos a serem explorados nesta série, que ainda precisa ser acompanhada de forma social e política. O lixo que expressa uma civilização e que a traduz, cria uma voz dissonante que se junta ao coro dos afônicos, num apelo de mudança e de revalorização ética e material. Olhando para seu trabalho, somos chamados por um apelo ético, que já existia em Carolina, mas que ficou amordaçado por uma sociedade que priorizava o desenvolvimento material em detrimento do humano. Estávamos na época dos “slogans” cinqüenta anos em cinco, e coisas do gênero, queríamos o desenvolvimento econômico, desejávamos abandonar a pecha de subdesenvolvidos, e o caminho era chegar à sociedade de consumo, mesmo que para isso fosse necessário consumir os próprios seres humanos. Hoje, já cientes de que o consumo desenfreado nos destrói, examinamos aquilo que deixamos para trás, nosso lixo, nosso refugo, e questionamos até a própria arte, consumida como um bem, precificada, comercializada em bolsas e leilões.
Os caminhos aqui apontados são o início de um questionamento, ao qual gostaríamos de acrescentar o trabalho de Juan Francisco Manzano, o escravo que escreveu sua autobiografia (Autobiografia de un esclavo) e contribuiu para a causa de seu “protetor”, o poeta abolicionista Domingos Del Monte. Seu texto revelava o lado “sem voz” da sociedade escravocrata. Curiosamente, sem estar ainda dentro de uma sociedade de consumo, o escravo era um bem de consumo, um objeto, e é revolucionar o gênero autobiográfico dar o direito de ser sujeito a quem se vê forçado a ser objeto.  Propomos que, ao escrever, Carolina e Manzano se apropriram de um sujeito, mesmo que apenas gramatical, e com isso conseguiram se resgatar mesmo que por tempo limitado, durante um período de suas vidas. Foram silenciados e descartados, após terem sido oferecidos em espetáculo pelo mundo afora. Apos sua morte, no entanto, seus textos foram redescobertos e revalorizados, num processo semelhante ao de reciclagem, poderíamos dizer…
Refletindo sobre as narrativas dos “afônicos” (“Os pobres têm que ser afônicos” – Carolina, 1986, p. 201) e procurando aquilo que foi silenciado dentro de seus textos podemos ensaiar mostrar como esses silêncios permitem a construção de uma obra que, ao mesmo tempo, desconstrói aqueles que tentam se constituir como sujeitos. Os catadores de Vik, também “afônicos”,  conseguem, através da justaposição de suas imagens sobre imagens sacralizadas e veneradas, revelar um espaço critico que é de responsabilidade do artista plástico. No entanto, com a perspectiva educativa que existe em todos os casos aqui citados, é possível acreditar que a “releitura” dos descartados pode ainda nos levar a uma sociedade mais justa, inclusiva, e consciente.

Sunday, February 26, 2012

Horário de verão

Acabou o horário de verão e eu me sinto um pouquinho triste. Sou uma das pessoas que adoram esse horário que nos prolonga o dia em tardes claras, que permite que se passeie à beira mar depois do trabalho, refrescando cabeças e corpos. Hoje fui me despedir do entardecer. De agora em diante ele vai acontecer cada vez mais cedo e eu vou me amortalhar no escuro e ficar angustiada como a criança nervosa do romance de Proust, esperando o beijo de boa noite que já não mereço mais. O tempo passa, amortece as dores, mas elas continuam vivas, na expectativa, para nos atacarem ao primeiro descuido. Outro dia, conversando com o Breno, meu querido e distante amigo, ele me falou de sua "alegria morna". Entendo perfeitamente, pois minhas alegrias, minhas emoções, estão todas assim. Sinto que nunca mais serei genuinamente feliz. Nada mais me deixa radiante, nem mesmo o reencontro com uma amiga de anos, de quem sempre gostei muito, mas que já não via há décadas. Na hora, sim, me alegro, fico entusiasmada. Mas, aí, volto para a casa e sei que não tenho ninguém a quem contar a novidade. Minha vida ficou assim, pela metade. Só posso me alegrar no instante do fato. Depois, a não ser que fique como a maluquinha da Margaret Thatcher, não tenho com quem comentar e relembrar coisas. Já que mencionei a personagem, comento o filme, do qual gostei muito. Mesmo pintando a todo-poderosa agora em sua doença, eles não a ridicularizaram, não roubaram a sua dignidade. E eu morri de inveja daquela loucura que trazia o marido morto para o seu lado, com suas tiradas engraçadas, com seu apoio, e até mesmo com suas recriminações. Pois estas são muito necessárias. Não tenho mais ninguém para me puxar as orelhas quando fico horas jogando paciência ou fazendo quebra-cabeças. Não tenho mais ninguém para me distrair a atenção de algum problema que me parece insolúvel e que me angustia até as lágrimas. Não tenho alguém para me tirar para dançar, ou para me dar um abraço reconfortante, que faz o mundo parecer um lugar seguro e confortável. Estou cansada. Estou triste. Mas sigo em frente, e com um sorriso. Não reclamo não. É só o sentimento do irrecuperável que me deixa assim, de farol baixo…

Friday, February 24, 2012

Vida de Balzac

Estive em Angra, meu paraíso particular. Cada um tem o paraíso que merece, e o meu ainda precisa de alguns ajustes, para não ficar como o conto do Agualusa. Na história dele, Borges morre e vai para o paraíso, mas acontece algum engano e ele se descobre no paraíso de Jorge Amado, entre palmeiras e mulatas, sol e Carnaval. O que para Amado era o Paraíso, para ele era um Inferno. Meu paraíso fica a meio termo entre Borges e Amado. Quero sol, palmeiras, dispenso as mulatas e o samba. Mas quero livros, telefone e internet. E TV, para assistir a DVD's. Por enquanto, meu paraíso está meio estropiado nas comunicações, mas em breve darei um jeito nisso.  Os livros eu levo comigo. Levo o computador e o celular, na esperança que…Mas não tenho linha, creio que devido à minha operadora, pois os telefones dos outros funcionam. Internet? Nem pensar! Já tenho TV, e portanto, pude assistir a Vida de Balzac, que levei comigo, estrelada pelo Gerard Depardieu e pela Fanny Ardant e Jeanne Moreau. Chego à conclusão que as pessoas que filmam as biografias dos escritores para a TV não são muito amigas dos biografados. Ou é mesmo uma tarefa difícil fazer a vida de um escritor virar um assunto interessante. O que é que a gente faz, afinal? Escreve. Enquanto um vai ser terrorista e bombardeia as Torres Gêmeas, a gente fica em casa e escreve sobre o episódio. Enquanto uns vão percorrer o mundo para encontrar os caminhos para as Índias, o que é que um escritor faz? Fica em casa e escreve sobre essa aventura. Sejam escritores atuais ou imortais, são raríssimos os que fizeram alguma coisa emocionante na vida. Escreveram coisas emocionantes, sem dúvida.  Mas sentados em suas casa, batucando em suas máquinas, lambuzando os dedos de tinta nas suas penas antiquadas, ou queimando os olhos na frente de um computador, a vida do escritor é isso mesmo: uma sucessão de páginas, de cadeiras mais ou menos confortáveis, de devaneios. Como contar isso? Balzac, Hugo, Eugène Sue e Stendhal (Henri Beyle?) desfilam nesta mini-série sem muito o que mostrar. Sue se limita a mostrar que não aprecia Balzac, pois este parece sujo, glutão, grosseirão. Hugo, magnânimo, reconhece o gênio do escritor da Comédie Humaine, desde o príncípio. Balzac aprecia o gênio de Stendhal, que se lamenta que sua Chartreuse e seu Le Rouge et Le Noir não tiveram mais que cem leitores. Para dar uma gracinha à vida de Balzac, só mesmo recorrendo às mulheres de sua vida. Sua amante mais velha, Mme. Laure de Berny, representada por uma ainda lindíssima Virna Lisi, volteia a seu redor, carinhosamente, como uma borboleta. Enquanto isso, Balzac, que no filme parece um ogro, se gaba de ser capaz de conquistar as mulheres graças à sua habilidade de derrubar os quadros das paredes, com sua risada. Com um mau gosto atroz, vestido como um bufão, ele se dedica à conquista de Laure Junot, duquesa de Abrantes, que, o filme nos dá a entender, havia dormido com toda a corte napoleônica. Mas as duas principais femmes fatales do filme são Mme Hanska, com quem ele acaba se casando depois de mais de 20 anos de, digamos, namoro, e sua mãe, Charlotte Laure, que nunca lhe deu amor suficiente.  Um duelo entre as duas grandes atrizes, que se cruzam numa única cena e trocam olhares de tamanho ódio que a gente sente que aquilo ultrapassa a própria tela. Fanny Ardant, e Jeanne Moreau, sem dúvida excelentes. Assisti uma peça com a Fanny, em que ela representava Sarah Bernhardt. Acho que a beleza da Fanny prejudica sua atuação. E, aliás, acho que ela nem estava tentando atuar muito. Ela só desfilou a beleza, madura, mas sem os sinais de decadência que o papel exigia: por exemplo, a personagem reclamava de sua artrite, mas Fanny corria, flexível, pelas planícies cobertas de neve, demonstrando um desembaraço que me fez pedir a Deus que, se um dia me fizer sofrer de reumatismo, que seja deste tipo! E a Jeanne Moreau, com sua voz rouca, seu olhar queixoso, sua elegância e firmeza, manteve-se todo o tempo fria e distante, mas, na cena final, faz uma declaração de amor ao filho, arrependida… Acho que a direção do seriado foi muito fraquinha, sinceramente. Dos romances, a gente não aprende muita coisa. Quem conhece a obra de Balzac, reconhece os títulos mencionados, mas a impressão que se tem é a de que ele era um escritor prolixo, muito interessado em dinheiro, muito vulgar, muito despreparado e cuja principal atividade foi fugir do cobrador que lhe batia em todas as portas como um inexorável Javert. Será que foi assim que Victor Hugo encontrou sua inspiração?
O que eu mais gostei do filme? A ideia, não sei se do próprio Balzac, ou se uma liberdade tomada pela ficção, de, na falta de quadros, desenhar espaços vazios na parede e anunciar : Aqui um quadro de Rembrandt, aqui um David, etc. Posso fazer isso: escolho e escrevo na parede: Ceci n'est pas un Manet (penso nos aspargos, proustianos até dizer chega!); Ceci n'est pas un Picasso (aquele Arlequim azul, que tanto cobiço). Já tive posters de Matisse, de Modigliani, de Miro espalhados nas paredes de minha casa, nos EUA. Mas não favoreço muito esse tipo de coisa. Gostei mais da ideia do Balzac. O espaço demarcado preenchido por palavras e sonhos. Quadros de escritor…

Friday, February 17, 2012

Uma cesta de café da manhã!

Vejam que maravilha! Acordei e logo em seguida entregaram aqui em casa uma linda cesta de café da manhã. Gulodices maravilhosas do Talho Capixaba, fartura e beleza, mas… nenhum cartão! Minha primeira reação foi achar que não era para mim. Depois de hesitar um pouco, lembrando do aniversário que se aproxima, achei que era minha sim, e venho aqui agradecer em coletivo, pois não sei bem que príncipe ou princesa terá mandado este presente tão carinhoso e inesperado. Obrigada!
Ontem à noite meus filhos me levaram num restaurante do Claude Troisgros, onde comemos um "menu confiance". Coisa boa, deixar a responsabilidade da escolha para o chef e comer coisas gostosas que nos surpreendem, como numa verdadeira festa. Vou contar o menu, para meus leitores ficarem com água na boca, e começo pelo couvert. Biscoitinho polvilho (sabor pimenta!), pão e manteiga. Um amuse-bouche de rocambole de salmão com caviar de tapioca. A entrada fria era salada de peras, endívias e nozes, com um caramelizado de balsâmico. Camarão empanado com creme de castanha de caju foi a entrada quente. Um prato de peixe perfeito: pargo, com uma crostinha fina e crocante de pão sobre tomates confit. (Fiquei me perguntando de onde foi que tirei a ideia de que comer sashimi é bom - a perfeição do cozimento do peixe, os sabores delicados do tempero, isso é que é bom!). O prato de carne foi um filé ao ponto com mini legumes e um creme de marron glacê e feijão branco. Uma festança, ç'est vrai! Mas as porções não eram grandes, e foi possível comer tudo sem a sensação de estar comendo demais. Alguns ainda tiveram ânimo de atacar a sobremesa. Eu não. Mas vieram tantas delícias para acompanhar o café, que não resisti. Eram "patifarias" como dizia a Mira, minha querida amiga. Crocantes de chocolate, salame de chocolate, maria mole com coco queimado, suspiro com nozes. Tudo perfeito. Marcello escolheu o vinho que tomamos, Bourgone, Pinot Noir, suave como gosto. Se harmonizou perfeitamente com o que comemos? Não faço ideia, mas eu gostei. E acho que isso é o importante. Dou nota dez a esse jantar. Foi o máximo!

Thursday, February 16, 2012

Divagando…

Quase Carnaval, e eu aqui divagando. Olho o mar, de longe, e penso como seria bom estar mergulhando nas águas que de longe parecem perfeitas. Muito calminho, ele hoje não rodeia as ilhas com um friso de espuma, está ali, com seu tracejado impressionista, exibindo, para meu deleite, uma traineirinha que se desloca colorida e feliz.
O céu também se mostra calmo, com nuvens difusas, esfumadas. Tudo me parece pintura. Até o desenho das sombras das varandas do edifício em frente, desenhadas com perfeita geometria. No outro, que se apresenta ensacado, a luz se reflete, sem piedade. Uma tela em branco, um pintor sem inspiração…
Penso em coisas que podem ser feitas, enquanto sentamos numa poltrona. Ler. Escrever. Assistir a filmes ou peças teatrais. Comer. Conversar. Bordar. Ouvir música. Mandar e receber mensagens. Pintar. Dormir. Namorar. Ver a vida passar.
Lembro-me do apartamento que não comprei. Um ótimo apartamento, onde um velhinho, aparentemente muito doente, se sentava a uma janela, vendo o mar. Os filhos estavam vendendo o imóvel e iam colocar o velhinho num asilo.
Não comprei o apartamento. Não pude suportar a ideia de contribuir para tirar o velhinho da sua janela.
Penso na mãe de uma única filha que foi convencida pela mesma a sair de seu lindo apartamento e a ir para um asilo longe do mar, e meu coração perde um compasso, assustado. Não quero o exílio, não quero o silêncio e o barulho dos grilos. Não quero a solidão.
Digo isso, mas, no entanto, sou uma especialista em viagens ao fim do mundo. Volta e meia estou indo a algum lugar denominado "fim do mundo". Já fui ao Nord Kap. Já fui à Patagônia. Já fui a Finisterra. Já cheguei a muitos extremos norte, sul, leste e oeste. Em todos esses lugares, um impressionante sentido de solidão nos envolve. Mesmo no meio de excursões, com muitos ou poucos amigos, em dia de sol radiante ou envolta na neblina mais espessa, a solidão aperta nosso coração, e a nossa alma aflita nos faz olhar ao longe, procurando algo, alguém, no vazio.
Uma vez, em Búzios, peguei uma boia dessas que voltaram à moda, feita de câmara de ar de caminhão e, deitada, me deixei levar pelas águas, de olhos fechados. Era bem cedinho, o sol não maltratava, e a água transparente parecia benfazeja. Não queria saber para onde estava indo, me entreguei ao embalo das ondas e me deixei levar. Naquele momento não senti solidão. Foi um momento de beleza, de encantamento, de harmonia como talvez nunca mais chegue a experimentar. Acho que, na hora, não pensei no verso de Drummond que agora sempre acompanha esta minha lembrança: "o silêncio pânico do mundo"… Pânico, de Pan, aquele deus grego tocador de flauta, que representa o "homem natural".
Talvez sentado, olhando o mar, envolto nas brumas da doença, aquele velhinho estivesse ali usufruindo o prazer de ainda continuar respirando, de ainda poder olhar o azul, e nele se perder. Talvez ele não estivesse procurando algo, nem ninguém. Estava encontrando a si mesmo, indiferente a tudo o mais.
Nestas divagações melancólicas, o sol se esconde entre as nuvens e deixa o dia menos nítido, mais poético. Os limites perdem sua nitidez. E a alegre traineira foi substituída pela vela de um barquinho lento, sem pressa, totalmente entregue aos caprichos do mar.

Sunday, February 12, 2012

horóscopo chinês

Transmitimos a nossos filhos muito mais do que suspeitam as vãs filosofia e genética. Também legamos simpatias e superstições; preferências; manias, coisas que não pretendíamos transmitir, mas que vão passando sem que a gente atente nas próprias fraquezas ou qualidades.
No meu caso, passei o legado de minha simpatia pelo horóscopo chinês. Descobri o tal horóscopo com uma amiga meio mística, que me deu um livrinho de presente com as previsões de um ano longínquo. Me achei muito parecida com o perfil do meu signo chinês, e guardei o livrinho, que depois me foi "emprestado" quando morava nos EUA, por uma outra amiga mística. Fui viajar para a China, uma viagem inesquecível, e lá descobri a história dos 12 animaizinhos convidados para a festa no céu. Num livro para crianças, me encantei com os desenhos lindos, com a alegria e espontaneidade dos animais, com suas qualidades, suas interpretações. Lembrei-me de meu livrinho sumido e senti saudades. Muitos anos depois encontrei o mesmo livrinho num sebo aqui no Brasil. O exemplar estava mais cuidado que o meu, que tinha sido muito manuseado, e não resisti ao apelo de todos aqueles bichinhos rococó, embolando-se numa roda alegre, de festa. Embora o ano já estivesse longínquo, comprei o livro assim mesmo, e de vez em quando o abro, curiosa. Só que eu acreditava que essa minha simpatia era coisa disfarçada, dissimulada pela minha cultura e racionalidade. Rá! Estava era enganada, e descobri isso ontem quando minha filha, na Travessa, em vez de comprar um livro daqueles imperdíveis comprou foi o de horóscopo chinês. A partir da compra, já não tivemos mais a companhia dela, embrenhada na leitura das previsões para este ano do dragão. Gosto dos animais desse horóscopo. Cães e ratos, porcos e cabritos, o imponente búfalo, na sua domesticidade e alegria todos eles estão representados na minha família; o tigre de Borges –pelo menos eu o considero borgiano –, a sábia serpente, podem ser assustadores em tese, mas estão entre meus amigos dos mais carinhosos e atentos. Macaquinhos e cavalos também estão entre os amigos. Talvez eu tenha algum galo, ou coelho conhecido mas assim de cabeça não consigo lembrar. Meu predileto, porém, é o mitológico dragão. Destaca-se, no horóscopo, por ser o único animal mitológico,  o que vive na fantasia, e não no mundo real. Claro que tinha que ter minha preferência. E estamos no ano do Dragão, o mais festejado na China.
Ocidentais, consideramos o dragão um bicho assustador, sinônimo mesmo de feiúra. Na China o dragão é considerado uma beleza: forte, protetor, brilhante, um encanto. Fico com esse Dragão sinuoso. Ou com o gentil dragão da história infantil, The Neverending Story. Ou com o sapeca dragãozinho lilás de Epcot, o Figment, simbolizando a criatividade.
Minha filha comprou o horóscopo chinês, e vou entrar na fila para descobrir o que o dragão de 2012 traz para mim. Mas, talvez na esperança de estar gravando, subliminarmente, outra mensagem na mente dela, comprei para mim um livro do Oswald, contando suas memórias. Quem sabe, daqui a tempos, quando eu já nem estiver mais aqui, ela não encontre um livro de Oswald e o compre, lembrando de sua mãe?

Sunday, February 05, 2012

E aí?

Biquini novo, chapéu novo, filtro solar, toda pronta para a praia e a pessoa vem para cá, para a frente do computador… Pode? Deve poder, pois aqui estou eu, preferindo contemplar minha nesguinha de azul, de longe, a suar em pleno sol. Já fui mais animada, mas acho que sofri tanto com as proibições de sair que acabei me convertendo, genuinamente, à vida contemplativa. No entanto, admiro essas pessoas que levam a vida fora de casa, ativas, incansáveis, numa animação a toda prova. Vejam os exemplos com que me deparei ontem: depois de ir almoçar com uma amiga, fiquei com pena de voltar para casa, num dia tão lindo e…fui para o cinema! Claro, ia fazer o que, na rua, sozinha? Me enfiei, com a sessão começando, no cinema geladinho e fui escutar e ver Tom Jobim. No final, depois de todos os créditos lidos, pois eu ignorava ou não lembrava quem eram aqueles cantores todos que apareciam na tela e os diretores não acharam que deviam identificá-los durante o filme, vou saindo quando vejo uma senhora, não aparentando muita idade, mas com uma dificuldade enorme de locomoção, sendo ajudada pela acompanhante para sair do cinema. Aquilo mexeu comigo, me fez valorizar a capacidade de caminhar e a benção que é ter independência. Até porque o pé, que ainda me doi um pouquinho, me deixa mais sensível a estas coisas. Pois vinha refletindo sobre isto quando me encontro com um fiapo de bloco, na esquina de Ataulfo com Artigas. Alguns músicos, uma bailarina em pé naquelas inexplicáveis bolinhas colocadas na passagem de quem pretende atravessar a rua, chamando com gestos os passantes para dançar e… animadíssima, uma senhora toda fantasiada se agitando numa cadeira de rodas, feliz com a festa! De tão admirada com ela, nem reparei em quem a empurrava, se homem ou mulher, filha ou empregada. Só sei que devia ser uma pessoa animada também, pois ia coreografando ziguezagues pela calçada.  Voltei para casa, e escutei um grupo de rapazes falando sobre um concurso que pretendiam fazer. Um deles, em voz mais alta do que teria se a cerveja que estivesse na mão ainda fosse a primeira, dizia que era preciso dar o "c*". "Tem que dar o c*!", ele bradava, e parecia que estava fazendo um manifesto. Não fosse o sinal estar vermelho, eu teria ficado com a impressão de que era isso mesmo, um aficcionado conclamando, tal como a bailarina da outra esquina,  as massas para compartilharem de seu prazer.
Se eu fosse subir num palanque para conclamar alguém a fazer alguma coisa, acho que minha opção seria um convite à leitura. Leiam! Entreguem-se a este prazer que também vicia (qual o prazer que não vicia? perguntem aos ratinhos da experiência!), mas que alimenta e dá um maior carinho pelo mundo. Pois a leitura nos leva à compaixão (no sentido de compartilhamento de emoções) e à empatia (capacidade de entender o ponto de vista alheio). E também nos devia tornar mais atentos ao mundo que nos cerca, mas ando cada vez mais desatenta. Somente hoje viro a página da folhinha, que este ano tem quadros de Van Gogh. O que ilustra o mês de fevereiro, que costumo chamar de meu, pois é o mês de meu aniversário, retrata um par de botinas velhas. Um sentimento contraditório me invade: acho pouco apropriado, mas, depois, reflito que são mais apropriadas do que podem parecer. Ainda estou sob o signo do pé machucado, por exemplo. Botinas é o nome de um antigo paraíso particular, que agora abandonei por conta de estar sendo muito frequentado, as ilhas lá de Angra, adoráveis. Escrevo sobre Rimbaud e falo sobre suas botinas constantemente, alternando com suas sandálias de vento. E existe sapato mais confortável que aquele velhinho, já acomodado a nossos pés, amaciado, domesticado, que nos leva, sem reclamar, aonde precisarmos de ir?
Portanto, vivam as botinas de fevereiro! Que elas me levem longe!

Thursday, February 02, 2012

Leitura de mentes

O jornal me encanta com essa novidade: pesquisas para realizar a leitura de mentes e possibilitar a comunicação com quem sofreu algum acidente que o impeça de falar. Este sempre foi um fantasma que me assustou: a síndrome do encarceramento, como um dia foi chamada, e que está magistralmente registrada no livro O escafandro e a borboleta. Na verdade, não li o livro, só vi o filme, mas dou sempre preferência ao texto – talvez por vício do ofício. E assim me lembro da coluna do meu querido Francisco Bosco que ontem falava sobre adaptações. Proust é inadaptável, diz ele, e, no entanto, não são poucos os cineastas ambiciosos que voltam suas câmeras para esse extraordinário romance. Ele mesmo citou o filme do Ruiz, que tem momentos geniais e citações a outro filme (pelo menos é o que eu acho), nunca realizado, mas longamente acalentado pelo Visconti, que chegou a escrever o roteiro. E possuo cópias de Um amor de Swann, um filme antigo de Volker Schöndorff, com Alain Delon e Jeremy Irons, de uma adaptação de A prisioneira, La captive, da diretora Chantal Akerman. Também vi num festival um filme cujo título original em italiano era Le intermittenze del cuore (Fabio Carpi, 2003), uma das seções do livro e que tratava de um cineasta (ainda Visconti?) que planejava filmar o romance proustiano mas que morre (?) ou tem um ataque cardíaco antes  de conseguir realizar seu intento. E agora mesmo não vi, pois não tenho TV5, a adaptação mais recente, para a televisão, feita em dois "capítulos", mas uma amiga tem uma tia que prometeu que ia gravá-los, portanto ainda tenho a esperança de ver a mini-série. Voltando ao filme do Ruiz, um amigo meu, Luis Miranda, fez um documentário genial sobre o lendário argentino que fez a iluminação do filme em questão. Ricardo Aronovich (?) avec mes yeaux de dinossaure. O cineasta foi professor dele e o documentário é simplesmente excelente, nos ensina muito sobre essa arte que nos parece secundária, mas que tem importância fundamental para a narrativa cinematográfica. A iluminação explica, realça, valoriza, é preciso assistir ao documentário para entender melhor o que digo. E para rever algumas cenas do Tempo Redescoberto, coisa que sempre vale a pena. Para terminar, ouso dizer que os iluminadores (os bons, é claro) já faziam essa leitura de mentes, captavam nuances e as transformavam em imagens que podemos decodificar sem o uso de palavras. Sensibilidade, arte e, agora, o computador, cada vez mais a mente vai revelando seus segredos. E eu me pergunto: o que faria Freud com todos esses novos recursos para o conhecimento da mente? E quanto devemos a ele, para chegarmos a essas novas "narrativas"?