Thursday, November 29, 2007

Confusões

Não desanimem com a minha imperícia: na novelinha, ou novela, como vocês querem, os personagens de Mariana são Paula e Francesco, mas ela baseou os dois no casal Paolo e Francesca, que estão no "quinto dos infernos", como dizia meu avô, o círculo infernal dos que pecaram por amor, segundo Dante. Se algum dos meus leitores não conhece a história (ela é famosíssima entre os que estudam literatura, pois o livro aparece como "alcoviteiro") aqui vai um resumo: Francesca era filha do príncipe de Rimini ( a Itália estava toda dividida em cidades-estado) que estava em luta com o príncipe da cidade vizinha, Giovanni Malatesta. Eles fazem um tratado de paz e, para selá-lo, combinam o casamento da jovem e linda Francesca com o brutal e velho Giovanni. Só que este tinha um irmão uns 20 anos mais moço, Paolo, que se apaixona pela cunhada e ameniza a existência da infeliz emprestando-lhe livros, que passam a ler juntos. Uma tarde, quando liam sobre a infidelidade de Guinevere e Lancelot, Paolo, tremendo, roubou um beijo de Francesca, que termina sua história dizendo mais ou menos isso: "naquela tarde não lemos mais..." Não leram, digo eu, porque "escreveram" uma linda história, mas foram surpreendidos pelo furioso Giovanni de nome profético, que ficou com sua testa pior do que já estava, com o novo problema. Os amantes foram parar no Inferno de Dante, que os suplicia, segundo alguns com a indissolubilidade de sua relação: ficam juntos pela eternidade. Mariana, minha personagem, separa os amantes que ela criou. Vejam como:

Capítulo XVIII

Paula olhou o amante com tanta intensidade que seus olhos pareceram crescer e transbordar, como um mar em dia de tempestade. Ele ainda não sabia que ela havia tomado aquela decisão. Este era seu último dia juntos. Ela ia partir. Regressar ao seu mundo protegido e tranquilo. Nos poucos dias que compartilharam, eles haviam se amado de todas as maneiras. Ela abandonara todas as reservas e se entregara como uma adolescente. A cidade resplandecia lá fora, com seus pomposos dourados e suas impossíveis volutas, mas os dois se bastavam, e permaneciam no quarto atravancado de móveis exageradamente grandes. Ela havia perdido o pudor que a dominava nos primeiros encontros, e se deixava ficar nua, deitada de bruços sobre a cama de espaldar, os lençóis revoltos formando relevos sobre o colchão que curvava-se, ligeiramente, para dentro. Francesco sentava-se à mesa imprensada entre as duas janelas altas e escrevia, febril, até que ela deixasse seus dedos travessos brincar com os cachos de seus cabelos revoltos e desalinhados, ou passear pela pele sedosa de suas costas, queimadas do sol generoso da região. Quando tinham fome, tomavam um cichetti e l’ombra, algum tipo de refeição ligeira acompanhada por uma taça de vinho, chamada de “sombra” pelo hábito que os gondoleiros tinham de guardar na sombra uma garrafinha de vinho para se refrescarem.

Paula havia desabrochado nas mãos de seu amante. Seu corpo se revelara um instrumento digno de figurar numa grande orquestra, com surpreendentes ressonâncias. Mas a enormidade de sua descoberta a assustava, e ela desejava voltar à tranqüilidade de seus dias dedicados aos livros e à contemplação da vida, protegida por trás de sua redoma. Ela precisava dizer a ele que não estava à sua altura, que não podia ser a musa de um poeta. Ela era uma mulher comum, sem nenhuma grandiosidade. Ela comia, respirava, andava e sofria como as outras, não era mais bela, nem mais alta, nem mais perfeita. Ao contrário. Ela sabia que estava cheia de pequenos defeitos e manias, que tinha hábitos arraigados que lhe custava muito abandonar para adotar uma vida em comum. Além disso, outra coisa a impelia a partir. Francesco era casado. Sua mulher e seus dois filhos deviam chegar no fim de semana, e ela não podia suportar a idéia de separar uma família. Ela não conhecia a outra, mas imaginava os filhos dele, e o que a ausência do pai provocaria.

Era preciso abrir mão de sua pele macia, do cheiro que ela já não sabia se se desprendia do corpo dele ou do seu , do carinho e do aconchego que os braços dele lhe proporcionavam. Ela era uma mulher forte. Adulta. Madura. Ela resistiria. Ela lembraria de seus comentários e de seus versos coloridos como os dias de verão que haviam passado juntos. E usaria o que ele lhe ensinara para poder olhar os desenhos das nuvens e os espaços vazios entre os quadros dos museus.

Ela levantou da cama, silenciosamente, e começou a se vestir com gestos lentos. Francesco continuava escrevendo, absorto. Um sorriso flutuava em seu rosto, um sorriso resignado e angélico, como os que perpassavam os lábios dos santos mártires nos quadros clássicos. Ela ia para o martírio de amor. Renunciaria a ele para tê-lo para sempre em um sacrário.

As batidas na porta foram suaves, quase não se fizeram ouvir. Ela não as teria escutado, se não estivesse tão junto às espessas madeiras trabalhadas da porta, já em seu caminho para fora da vida de Francesco. Atravessando a bolsa nos ombros, deixou sobre a cama o papel onde explicava sua partida. Tratava-se de uma carta confusa, cheia de repetições e argumentos que não se sustentavam logicamente. Ela deu um último passo para trás, olhando-o com tanta intensidade que se admirava que seus olhos não deixassem marcas pelos locais que percorria. Voltou-se, e abriu a porta. Paula chegou a ver o clarão que iluminou um rosto retorcido de angústia. Não escutou os ruídos que se seguiram, os gritos, o eco, o baque do corpo caindo. Só sentiu o turbilhão. Depois, o nada.

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