Tuesday, November 13, 2007

Amores Impressos, cap. 2

Continuo. Não desistam, só porque eu não uso a técnica cheia de ganchos do Dan Brown... Depois fica mais engraçado. Brigadim, André, pelo incentivo.

Capítulo II

Chegar a Veneza de trem pode parecer um contra-senso, mas é a melhor maneira de mergulhar diretamente na atmosfera da cidade. A estação agitada, os carregadores gritando suas frases longas e cantadas, o painel de avisos mudando frenéticamente os dizeres, com um ruído característico de placas de metal se entrechocando, estonteiam os viajantes e os deixam despreparados para a primeira visão da cidade, obtida ao sair do prédio datado de meados do século XIX. Com sua luz característica, a cidade parece um cenário pintado do outro lado do cais movimentado, onde toda a Europa parece convergir numa tentativa infrene de ocupar os hotéis que, dependendo de sua localização, podem cobrar tarifas de mais de mil dólares por noite.

Foi nesse burburinho que desembarquei, vinda de Milão, depois de atravessar quase meio globo terrestre de avião e de superar as barreiras linguísticas numa estação de trem hostil, ainda estonteada pelo jet-lag. As cinco horas que me foram retiradas do dia haviam se transformado em cobras, que invadiam meu cérebro e se compraziam em espremer a delicada massa pensante, até retirar dela toda e qualquer coerência. Irritada com o extravio de minha bagagem, com o rosto devastado pela falta de sono, as pernas inchadas, e precisando desesperadamente de um banho, que me devolvesse a sensação de pertencer a uma sociedade civilizada, estava determinada a ignorar os encantos que a cidade lagunar tinha a oferecer, e a ir direto para o hotel, onde recuperaria minha humanidade.

Veneza era uma adversária mais poderosa do que havia julgado.A cidade me recebeu com um sol primaveril, que desmaiava ainda mais as cores desgastadas dos palácios e das paredes descascadas das vilas e igrejas. Era uma sensação diferente, pois, mesmo brilhando e desenhando caprichosamente os ornamentos excessivos dos prédios, o astro não irradiava calor. Estremecendo ligeiramente, aconcheguei meu agasalho insuficiente, e me indaguei quanto tempo levariam minhas malas para me alcançar. Com otimismo pensei que talvez não precisasse gastar o dinheiro da diária, comprando um desnecessário casaco em euros.Corajosamente, enfrentei a fila do vaporeto que havia de me levar até as proximidades de meu hotel. Imprensada entre pessoas de todas as idades, algumas parecendo caricaturas, tentei respirar o menos possível enquanto estivesse dentro do barco, para escapar dos fortes odores que tornavam o ar do recinto irrespirável. Em nenhum momento pensei que o cheiro talvez se desprendesse de mim mesma, há mais de vinte e seis horas sem banho.

Foi com alívio que escutei o nome da Piazza de San Marco, e reconheci, das muitas fotos e quadros que havia examinado, a esguia coluna, no alto da qual o leão, símbolo da antiga república , se empertigava. A maré cheia havia coberto toda a praça com a água salobra dos canais. Meus sapatos foram incapazes de manter sua integridade, e eu sentia a água gelada molhando minhas meias, insinuando-se por entre os meus artelhos. Antes mesmo de passar pela frente da catedral, eu já havia começado a espirrar.

O hotel em que me haviam hospedado ficava numa viela por trás da arcada da praça. Programada que ia para escrever uma história de amor, estava com a cabeça cheia de histórias românticas que revisitara em velhos filmes e livros. Uma delas era “um quarto com vista”, história passada em outro ícone do romantismo italiano: Florença. As histórias que conhecia e que eram ambientadas em Veneza, eram todas trágicas, ou grandes farsas. Shakespeare, por exemplo, tinha adoração pela Itália, e por Veneza em especial. Mas suas histórias não me serviam como modelo. Os ciúmes excessivos de Otelo, sua incapacidade em confiar na mulher amada, e a facilidade com que acreditava em qualquer insinuação do amigo, me irritavam. Ou as artimanhas de trocas de sexo e os artifícios usurários de Shylock e companhia, ao invés de me fazerem rir, levantavam questões que incomodavam minha modernidade politicamente correta.

Ali estava eu, caminhando com os pés encharcados por uma ruela estreita e úmida, onde o cheiro de mofo suplantava meus próprios odores, e, nas circunstâncias, dando graças a Deus por não estar carregando a minha mala. Olhei para a placa onde as figuras de Arlechinno e Colombina dançavam entre as letras que anunciavam: Albergho della Commedia. Não sei como criei coragem para enfrentar a porta manchada e a escada gasta que me levariam ao meu quarto, que, sem dúvida nenhuma, não tinha vista para nada. E era ali que passaria os próximos trinta dias de minha vida.


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