Friday, December 17, 2010

Conto de Natal


Já há alguns anos que tenho feito um conto de Natal para a Histórias Possíveis, revista virtual com a qual contribuo desde que surgiu. Este ano, não vamos ter especial de Natal. Mas resolvi escrever meu conto natalino e publico aqui, com votos de que meus leitores queridos tenham Boas Festas e um excelente 2011, de boas leituras e muitas realizações.
Peço também desculpas pelo sumiço, mas fiquei doente na pior altura do ano: às vésperas das festas e da chegada da família.
E aqui vai meu conto, com carinho, para todos:

A árvore

Lúcia Bettencourt

Montar a árvore era coisa que se fazia no dia 1 de dezembro. Era preciso arranjar tempo, depois do trabalho, do trânsito engarrafado que alongava a cada tarde seu caminho de volta. De manhã, a correria do dia a dia não permitia. Era acordar e já começar com a lide: dar uma esticada na cama, correr para o banheiro antes que os outros acordassem e, depois do banho corrido, com o corpo quase úmido, vestir a roupa que já começava a grudar no corpo, pois o calor principiava logo aos primeiros raios de sol.

O trabalho era extenuante. Chefe novo, desejoso de mostrar serviço, não permitia nem mesmo que alguém sentasse um pouco nos banquinhos que serviam como escada para se chegar aos brinquedos pendurados nas paredes. Seus pés inchavam, com o calor e as longas horas de pé. Suas costas doíam, como se alguém, durante o dia, tivesse se entretido em enfiar agulhas em seus rins. A comida engolida às pressas aumentava sua sensação de desconforto, provocando-lhe gases e azia. Talvez o que mais incomodasse, porém, fosse a sede. Sem água gelada, era obrigada a engolir aqueles copos mornos e sempre insuficientes, isso quando já estava quase sem saliva, com os lábios ressecados. Mas era preciso racionar os líquidos, pois, se bebesse demais, precisaria usar o banheiro, o que fatalmente desgostaria o chefe, que anotava cada ida ao banheiro.

Este ano o dia 1º caía numa quarta-feira. Era o pior dia da semana. Depois de trabalhar segunda e terça, já cansada, ela nem sequer conseguia imaginar o descanso semanal de domingo, ainda tão distante que parecia uma miragem. Na volta para casa, não conseguiu lugar sentada na condução. Seus pés ardiam como se tivessem pisado em brasas. Os últimos passos até a casa quase lhe pareceram uma impossibilidade. Foi arrastando as pernas e os pés que conseguiu chegar ao portão, onde se apoiou para vasculhar a bolsa à procura da chave, nervosamente, assustada com a solidão escura da rua, um chamariz para assaltantes.

Finalmente em casa, atirou-se na cadeira meio bamba, descalçou os sapatos e esticou as pernas por alguns momentos. Depois, com os sapatos na mão, foi tratar de preparar uma comida: macarrão com sardinha, outra vez. Não tinha tempo nem ânimo para outra coisa. A toalha de plástico sobre a mesa de Fórmica, os pratos desirmanados, talheres, copos de geléia. No entanto, hoje aquilo não lhe parecia tão lúgubre como de costume. No congelador havia gelo, o que a entusiasmou a preparar uma limonada. Quando o marido chegou, a comida estava pronta, a limonada suava os copos de geléia, e o jantar, com a TV ligada mostrando cenas de novela em que até os pobres como ela ousavam sonhar e se divertir, alimentou seu corpo e sua fantasia.

Mas era preciso armar a árvore. Subir na cadeira meio bamba e buscar a caixa guardada na parte mais alta do armário. Lá estava ela, com seus tesouros de papel e brilhos, as bolas frágeis de seu tempo de menina, acondicionadas em algodão, para não se partirem. A árvore, esquálida, estendia braços quase pelados, sobre os quais ela acomodou o algodão em rama, já muito usado e encardido. Dosou as poucas bolas que lhe sobravam de uma infância mais próspera. Amarrou os laços que ia juntando, no decorrer dos anos, sempre que ganhava um presente mais bem arrumado. Aos pés da árvore o papai Noel de pelúcia, barbas amareladas pelo tempo, ficou sorrindo sem direção. Dois pássaros que ela tentou equilibrar nos galhos em posições naturais, mas que, desequilibrados, enfiavam os bicos no algodão. No ninho, dois ovinhos quebrados, que ela havia laboriosamente colado, mas que revelavam suas cicatrizes. A árvore estava pronta. Agora só faltavam as luzes e a estrela do topo. Mas a estrela estava partida. E as luzes não acenderam.

Desapontada, seus olhos se encheram de lágrimas. Aquela árvore era tão importante, era o que transformava o mês de dezembro numa época mágica. Os sonhos que acalentava avivavam suas cores iluminados pelas pequenas lâmpadas acendendo e apagando ao ritmo de seu coração. Como reabastecer sua esperança na vida, sem sua árvore? De ombros curvados e rosto desapontado, foi escovar os dentes e trocar a camisola. A casa às escuras, ela seguiu tateando até o banheiro.

Ao abrir o armário em busca da pasta de dentes, viu um vulto na sala. Assustada, virou-se e viu seu marido, que se levantava, o corpo banhado por luzes coloridas, um sorriso raro no rosto que a barba crescida sombreava.

Você esqueceu de ligar as luzes, – ele disse, como se se desculpasse. – Fica bonita a árvore assim, iluminada. Você não quer sentar aqui na sala um pouco, antes de dormir? Está entrando uma brisa. E a gente podia conversar um pouco.

Era Natal. Era preciso acreditar em milagres.

Thursday, December 02, 2010

O bestseller do momento

Nestes tempos de questionamento à literatura, vejo-me com apetites mudados: estou comprando meus presentes de amigo oculto e como sempre achei que livros são os melhores presentes do mundo, tenho andado à caça de alguns. Mas, acreditem, a única coisa que me apetece ler, no momento, são as cartas que aparecem nas mãos da polícia e dos repórteres da TV. Quantas folhas, quantos desabafos, quantas denúncias. Creio que ali se encontra um tesouro para as editoras que, unindo-as, mesclando-as, editando-as, poderão fornecer o livro mais importante para o conhecimento dessa Terceira Margem do Rio a que foram forçadas tantas pessoas. Caladas, entre tráfico e a sociedade civil, esmagadas entre descaso e violência, essas pessoas conseguiram resistir e agora escrevem longas cartas, ou curtos bilhetes, onde cada palavra possui o peso das toneladas que a todos admiram.
Ler essas cartas, analisá-las, classificá-las, isso talvez nos ensine alguma coisa a respeito de nós mesmos. A mim, o que está ensinando, no momento, é que a escrita é aquilo que nos mantém humanos, quando tudo e todos tentam nos provar que não somos nada. Uma folha de papel escrita com maior ou menor clareza, um depoimento cheio de esperança, um grito de socorro.
Que a gente nunca se esqueça destas mãos que traduziram dor, medo e revolta. E que a gente respeite e leia com unção as cartas que um dia nos chegarem aos olhos!