Thursday, January 11, 2018

A menor mulher do mundo

Memórias de Leitura (1)
Lúcia Bettencourt

“A menor mulher do mundo” (Clarice Lispector)
Há um conto de Clarice que tem insistido em voltar à minha memória, ultimamente. É a história de uma mulher cujo diminuto tamanho (45 cm) assombra não apenas o explorador que a descobre, no coração da África, mas também a todos que recebem a notícia de sua existência, pelo jornal de domingo.
As descrições de Clarice são sumárias. Além de seu tamanho sabemos que ela é “madura, negra e calada” (a voz do explorador, caçador e homem do mundo, Michel Pretre esclarece que ela é “escura como um macaco”). Ela aparece no alto de uma enorme árvore, na companhia de seu “concubino”, como se fosse um fruto. E está grávida. A “coisa humana menor que existe”, uma mulher.
Cheguei no ponto que tem me incomodado. Nessa “coisa humana menor que existe”, que é humana, sim, mas diminuta, frágil, sem voz, alvo de interpretações. Ninguém lhe pergunta nada. Impõem-lhe um nome. Planejam o que fazer com ela. Conforme suas sensibilidades, uma quer que ela lhes sirva à mesa; outro quer fazer dela uma boneca. Uma quer sufocá-la de ternura. Outro corre o risco de matá-la de amor. Uma se apieda, vê tristeza. Outra vê apenas um animal. Outros veem apenas um bocado a ser saboreado.
E o explorador, caçador e homem do mundo olha para a “coisa rara”, que já perdeu sua humanidade, e se sente mal com o riso que não consegue classificar. Pois ela ri porque não está sendo devorada, e, no entanto, ele sabe que ela está sendo consumida, apropriada, violada, mesmo que seja em efígie.
A “coisa humana menor que existe”, transformada em “coisa rara”, passa a fazer sentido porque o que a faz rir, segundo o explorador, é a certeza de que “é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir”. Aquele riso que poderia significar “ser”, transforma-se em “ter”. Aquilo que poderia traduzir-se em (bem)-estar no mundo provoca mal-estar. A menor mulher do mundo, apesar de seu tamanho, não conseguiu escapar das redes que a aprisionaram e a objetificaram. Ela sucumbe frente a nossos olhos espantados.
E por que é que isso tem me incomodado? Porque vejo as semelhanças entre o que andamos discutindo ultimamente, nesta história de assédio...
As mulheres, ao elevarem suas vozes contra procedimentos masculinos de violência sexual, produzem discursos que imediatamente são apropriados, reificados, engessados, isolados e reinterpretados. Continuamos sendo “a coisa humana menor que existe”. Não importa se escapamos e conseguimos chegar vivas até aqui. Ainda há muita gente tentando nos transformar com seu “amor”, sua “ciência”, seus “desejos”. Somos, e ainda podemos sorrir. Mas, até quando?