Friday, December 17, 2010

Conto de Natal


Já há alguns anos que tenho feito um conto de Natal para a Histórias Possíveis, revista virtual com a qual contribuo desde que surgiu. Este ano, não vamos ter especial de Natal. Mas resolvi escrever meu conto natalino e publico aqui, com votos de que meus leitores queridos tenham Boas Festas e um excelente 2011, de boas leituras e muitas realizações.
Peço também desculpas pelo sumiço, mas fiquei doente na pior altura do ano: às vésperas das festas e da chegada da família.
E aqui vai meu conto, com carinho, para todos:

A árvore

Lúcia Bettencourt

Montar a árvore era coisa que se fazia no dia 1 de dezembro. Era preciso arranjar tempo, depois do trabalho, do trânsito engarrafado que alongava a cada tarde seu caminho de volta. De manhã, a correria do dia a dia não permitia. Era acordar e já começar com a lide: dar uma esticada na cama, correr para o banheiro antes que os outros acordassem e, depois do banho corrido, com o corpo quase úmido, vestir a roupa que já começava a grudar no corpo, pois o calor principiava logo aos primeiros raios de sol.

O trabalho era extenuante. Chefe novo, desejoso de mostrar serviço, não permitia nem mesmo que alguém sentasse um pouco nos banquinhos que serviam como escada para se chegar aos brinquedos pendurados nas paredes. Seus pés inchavam, com o calor e as longas horas de pé. Suas costas doíam, como se alguém, durante o dia, tivesse se entretido em enfiar agulhas em seus rins. A comida engolida às pressas aumentava sua sensação de desconforto, provocando-lhe gases e azia. Talvez o que mais incomodasse, porém, fosse a sede. Sem água gelada, era obrigada a engolir aqueles copos mornos e sempre insuficientes, isso quando já estava quase sem saliva, com os lábios ressecados. Mas era preciso racionar os líquidos, pois, se bebesse demais, precisaria usar o banheiro, o que fatalmente desgostaria o chefe, que anotava cada ida ao banheiro.

Este ano o dia 1º caía numa quarta-feira. Era o pior dia da semana. Depois de trabalhar segunda e terça, já cansada, ela nem sequer conseguia imaginar o descanso semanal de domingo, ainda tão distante que parecia uma miragem. Na volta para casa, não conseguiu lugar sentada na condução. Seus pés ardiam como se tivessem pisado em brasas. Os últimos passos até a casa quase lhe pareceram uma impossibilidade. Foi arrastando as pernas e os pés que conseguiu chegar ao portão, onde se apoiou para vasculhar a bolsa à procura da chave, nervosamente, assustada com a solidão escura da rua, um chamariz para assaltantes.

Finalmente em casa, atirou-se na cadeira meio bamba, descalçou os sapatos e esticou as pernas por alguns momentos. Depois, com os sapatos na mão, foi tratar de preparar uma comida: macarrão com sardinha, outra vez. Não tinha tempo nem ânimo para outra coisa. A toalha de plástico sobre a mesa de Fórmica, os pratos desirmanados, talheres, copos de geléia. No entanto, hoje aquilo não lhe parecia tão lúgubre como de costume. No congelador havia gelo, o que a entusiasmou a preparar uma limonada. Quando o marido chegou, a comida estava pronta, a limonada suava os copos de geléia, e o jantar, com a TV ligada mostrando cenas de novela em que até os pobres como ela ousavam sonhar e se divertir, alimentou seu corpo e sua fantasia.

Mas era preciso armar a árvore. Subir na cadeira meio bamba e buscar a caixa guardada na parte mais alta do armário. Lá estava ela, com seus tesouros de papel e brilhos, as bolas frágeis de seu tempo de menina, acondicionadas em algodão, para não se partirem. A árvore, esquálida, estendia braços quase pelados, sobre os quais ela acomodou o algodão em rama, já muito usado e encardido. Dosou as poucas bolas que lhe sobravam de uma infância mais próspera. Amarrou os laços que ia juntando, no decorrer dos anos, sempre que ganhava um presente mais bem arrumado. Aos pés da árvore o papai Noel de pelúcia, barbas amareladas pelo tempo, ficou sorrindo sem direção. Dois pássaros que ela tentou equilibrar nos galhos em posições naturais, mas que, desequilibrados, enfiavam os bicos no algodão. No ninho, dois ovinhos quebrados, que ela havia laboriosamente colado, mas que revelavam suas cicatrizes. A árvore estava pronta. Agora só faltavam as luzes e a estrela do topo. Mas a estrela estava partida. E as luzes não acenderam.

Desapontada, seus olhos se encheram de lágrimas. Aquela árvore era tão importante, era o que transformava o mês de dezembro numa época mágica. Os sonhos que acalentava avivavam suas cores iluminados pelas pequenas lâmpadas acendendo e apagando ao ritmo de seu coração. Como reabastecer sua esperança na vida, sem sua árvore? De ombros curvados e rosto desapontado, foi escovar os dentes e trocar a camisola. A casa às escuras, ela seguiu tateando até o banheiro.

Ao abrir o armário em busca da pasta de dentes, viu um vulto na sala. Assustada, virou-se e viu seu marido, que se levantava, o corpo banhado por luzes coloridas, um sorriso raro no rosto que a barba crescida sombreava.

Você esqueceu de ligar as luzes, – ele disse, como se se desculpasse. – Fica bonita a árvore assim, iluminada. Você não quer sentar aqui na sala um pouco, antes de dormir? Está entrando uma brisa. E a gente podia conversar um pouco.

Era Natal. Era preciso acreditar em milagres.

Thursday, December 02, 2010

O bestseller do momento

Nestes tempos de questionamento à literatura, vejo-me com apetites mudados: estou comprando meus presentes de amigo oculto e como sempre achei que livros são os melhores presentes do mundo, tenho andado à caça de alguns. Mas, acreditem, a única coisa que me apetece ler, no momento, são as cartas que aparecem nas mãos da polícia e dos repórteres da TV. Quantas folhas, quantos desabafos, quantas denúncias. Creio que ali se encontra um tesouro para as editoras que, unindo-as, mesclando-as, editando-as, poderão fornecer o livro mais importante para o conhecimento dessa Terceira Margem do Rio a que foram forçadas tantas pessoas. Caladas, entre tráfico e a sociedade civil, esmagadas entre descaso e violência, essas pessoas conseguiram resistir e agora escrevem longas cartas, ou curtos bilhetes, onde cada palavra possui o peso das toneladas que a todos admiram.
Ler essas cartas, analisá-las, classificá-las, isso talvez nos ensine alguma coisa a respeito de nós mesmos. A mim, o que está ensinando, no momento, é que a escrita é aquilo que nos mantém humanos, quando tudo e todos tentam nos provar que não somos nada. Uma folha de papel escrita com maior ou menor clareza, um depoimento cheio de esperança, um grito de socorro.
Que a gente nunca se esqueça destas mãos que traduziram dor, medo e revolta. E que a gente respeite e leia com unção as cartas que um dia nos chegarem aos olhos!

Saturday, November 27, 2010

Apolíneos e dionisíacos

Quem, como eu, cursou a Faculdade de Letras, está familiarizado com os conceitos do título. Resumindo, muito brevemente, existem artistas ligados ao equilíbrio e racionalidade do deus Apolo e outros ligados à desordem e instinto do deus Dioníso. Este era um deus importado da Ásia, o deus do vinho, e tinha como séquito fiéis inebriados pela "seiva da terra". Apolo era o deus da Luz, que para os gregos era sinônimo de conhecimento, inventor da poesia, e, com sua lira, dava sentido ao mundo.
Estou me dividindo entre ídolos apolíneos e dionisíacos desde que julguei ter entendido os conceitos. Ora sou totalmente fascinada pelo lado apolíneo de Cabral e de Drummond, ora me deixo embarcar na embriaguês condoreira de Castro Alves. Seja eu apaixonada por Vieira ou por Machado, fique eu sob o domínio de Oswald ou de João do Rio, acontece que sou sempre inconstante e gulosa, ansiando pela ordem na desordem ou pela paixão na lucidez.
Esta semana foi interessante, já que consegui, acidentalmente, reunir as duas "pontas da vida". Segunda feira, munida de um livro de Rimbaud, embarquei para São Paulo, para assistir ao show do Paul McCartney. Confesso: foi meu primeiro show. Nunca tinha ido assistir a nada do gênero, nunca fui ao Maracanã para ver Rolling Stones, nem ao Circo Voador para assistir Cazuza. Sou tímida. Tenho uma leve sensação de pânico em locais onde se concentram muitas pessoas. Mas era Paul McCartney, ele tinha sido um dos Beatles, e eu de repente me descobri menina e inconsequente. Lá fui eu. Na enorme e incompreensível cidade, que se recusa a desvelar sua geografia a uma carioca que se orienta pelo mar, lá estava eu, com frio, debaixo de chuva, esperando um táxi que me levasse para o Morumbi. Consertei o frio, comprando um casaco. Afinal, meu hotel era na Oscar Freire. Mas a chuva e a falta de táxis pareciam mais difíceis de resolver. Contei com a sorte, e graças a ela consegui táxi e uma hedionda capinha de chuva, daquela vendidas em sinal. Depois, já no estádio, sentada em minha cadeirinha azul, vi a chuva cessar, o estádio se encher de gente e de vendedores ambulantes que me ofereceram todos os tipos de churros. Churros? É, churros, recheados de chocolate e de doce de leite, envoltos em açúcar e canela, churros gorduchos e melados cuja visão me provocava engulhos. Cestas e mais cestas desciam as escadarias repletas e voltavam vazias, testemunhando a preferência paulista pela iguaria. Até o show começar, porém, eu me perguntava se haveria paulistas ali naquela plateia. No avião que fui para SP as camisas estampavam o rosto de Paul, sozinho ou acompanhado por seus ex parceiros. Estariam eles comendo churros?
Quando o show começou, percebi que Paul deve ser o único roqueiro apolíneo que conheço. Impecável, arrumadinho, simpático e inteligente, ele comandou o show com eficiência matemática. Cantou o que quis, como quis, fez as homenagens que julgou devidas, tirou o paletó e lá ficou ele com sua camisa branca, suas calças seguras por um suspensório, sua peculiar maneira de marcar o ritmo com as pernas juntas. Regeu a platéia em improvisos, revelou uma forma física invejável para sua idade. Aguentou uns quinze minutos de palco sozinho, com um violão e sua voz. Pirotecnia? Teve aqueles manjados fogos de artifício quando ele cantou Live and let die. Digo que são manjados porque até em kick-off de empresa eles são utilizados. Mas fazem efeito, sobretudo numa noite paulista.
A plateia me convenceu de que era mesmo paulista. Ao meu lado, ninguém dançou, ninguém deu gritos histéricos e os que cantaram, estavam um pouco mais afastados. Resultado: encabulada, eu também não dancei, não perdi a voz gritando nem mesmo cantando. Cantarolei baixinho, sorri muito para minha vizinha, Vera, que me perguntou se eu tinha assistido o outro show que ele tinha feito no Pacaembu. Eu nem sabia desse show, confessei. Ela me consolou, dizendo que eu era muito novinha para saber. Tive que concordar. Como vocês já sabem, eu estava ali com onze anos de idade apenas.
Não tenho termos de comparação, uma vez que esse era meu primeiro show de rock. Mas nada do que eu esperava aconteceu. Nenhum excesso. Nenhuma confusão. Tudo absolutamente ordenado e era o próprio deus Apolo que cantava com suas muitas liras no palco. Nunca vi tanta guitarra junta. Era a tradicional, que parece um violino de cabo comprido. Era uma com florzinha. Era outra de duas cores, era violão, era triangular… perdi as contas. Teve piano. Teve teclado psicodélico. E imagens, muitas imagens projetadas no telão, para que alguém pudesse ver alguma coisa dele. E para que todos pudessem relembrar os instantes de loucura do passado. A distância deixava todos (e tudo) minúsculos.
Mas adorei o show. Pode parecer que não, devido à minha perplexidade com essa ordenação toda. No entanto, adorei.
Só que, não esqueçam: fui para SP com um livro de Rimbaud. E existe poeta mais dionisíaco que Rimbaud? Apregoando o desregramento total de todos os sentidos, desafiando tudo e todos, o adolescente Rimbaud me fascina, principalmente por seu contraste com o Rimbaud posterior, o comerciante taciturno, o doente terminal sofrendo dores atrozes, mergulhando mais uma vez na paz da morfina. Altos e baixos. De um lado o "príncipe feliz", de outro "o mais infeliz dos poetas". Sangro com Arthur, o jovem cujo talento só foi reconhecido tarde demais. Sofro com o envelhecido Rimbaud, amargo e seco, cuja vida se extinguiu em meio a tantos sofrimentos. E escuto a voz forte e educada de Paul McCartney, me maravilho com sua musicalidade, com sua disciplina, e me pergunto: a quem pertence o mundo, afinal? Apolo ou Dioniso? Devemos embarcar com um ou alçar voo nas asas do outro?
Mas, será que precisamos escolher?

Saturday, November 20, 2010

Raios de sol

Um sábado (quase) de sol, que alegria! O Rio fica tão mais lindo, com sol, parece outra cidade. Perdão por repetir chavões, mas é impossível resistir. Comparo o Rio chuvoso e o Rio ensolarado com a TV, preto e branco e colorida. Se existe charme e encanto em assistirmos alguns filmes em preto e branco, olhar diariamente para o mundo sem cor acaba nos cansando.
Mas não vim escrever sobre isso, e sim sobre raios de sol metafóricos, que invadem nossas vidas e nos iluminam e aquecem. Hoje, por exemplo, vibrei de alegria ao ver que o livro Ficções do Desassossego, da Lucia Helena, foi resenhado no Prosa e Verso. Essas resenhas são "certificados de batismo" dos livros que escrevemos. Muitos seguem seus caminhos pagãos, outros são abertamente muçulmanos ou judeus, ou até budistas. Na verdade, nenhum livro depende dessas "certidões" para desenvolverem suas vidas saudáveis e longas, ou breves e fúteis. Mas que pai, ou mãe, não vibra com a cerimônia de batismo, de apresentação ao templo, de seja lá qual for o rito de pajelança, budista, taoísta, de candomblé, muçulmano ou judaico de sua tradição? É uma festa, mais ou menos modesta, mais ou menos concorrida, e é sempre uma alegria. Parabéns à autora e à sua resenhista.
Mais raios de sol? São muitos para comentar. Ontem fui ao lançamento do livro do Claufe Rodrigues e me diverti com a brincadeira que ele propôs: fomos gravados, usando adereços e fantasias, lendo um poema de seu livro. Um garotinho, de peruca black power e óculos metálicos, leu, tropeçando um pouco, um dos poemas do amigo da mãe. Esta, com uma peruca chanel rosa shocking e óculos de estrela, sem esquecer de uma tiara de princesa, leu o seu poema revelando uma voz educada e treinada, coisa de artista. Cada qual com sua fantasia: um poeta colocou um chapéu de cowboy dourado (suponho que pertencesse – o chapéu – ao set de Brokeback Mountain). Uma romancista apelou para longos cabelos cor de rosa. Eu optei por um boá vermelho. Os óculos são os meus, obrigada que sou a usá-los. Depois fui embora, pois as amigas queriam conversar e lá no estúdio improvisado era proibido.
Muitas manifestações de carinho e de saudade, um jantar embalado por conversas interessantes, foi uma noite de raios de sol refletidos na bela lua que enfeitava o céu.
Mas, ainda tem mais. Segunda-feira vou a SP, ver o show do Paul McCartney. Consegui o ingresso, comprei passagem de ida e volta e… mais nada. Ontem me dei conta de que vou precisar de um hotel para pernoitar. Claro que, nos que ficam próximos ao estádio, não consegui lugar. Vou, após o show, atravessar toda a cidade de SP. Isso se conseguir um táxi. Ou ônibus. A pé sei que não chegarei lá. Fui ver no google a distância e percebi que precisaria de uns dois dias e meio para chegar ao meu destino, por isso rumarei, caso não consiga condução, diretamente para o aeroporto. Mas acham que me preocupo? Quem vai ver show de Paul McCartney tem a idade mental de seu encantamento. Na segunda voltarei aos meus tenros 11 anos. Duvido que ele cante She loves you yeah, yeah, yeah, mas, seja lá o que ele cantar, eu saberei a letra. Foi assim que aprendi inglês, me esforçando para aprender as letras dos Beatles. Infelizmente, não vi o grupo junto. Mas verei o Paul, que espero não apareça no palco numa cadeirinha de rodas. Verei o Paul com os meus olhos de 11, de 12, de 18 anos. Foi um longo amor. 8 anos de devoção, de procura por recortes em revistas nacionais e estrangeiras que terminou com a violência por parte de minha mãe, que aproveitou uma viagem minha e esvaziou o armário. Lá se foram discos e recortes dos Beatles, meus livros do Príncipe Valente e a coleção de histórias que ganhei num prêmio de redação na escola. Até hoje sangro ao falar nisso. Imaginem, todos os seus tesouros roubados! Mas eia! Os raios de sol bailam no meu pensamento, e ainda tenho mais coisas iluminando meu fim de semana: Woody Allen e Lanternas Vermelhas. Amigas e família acompanhando. E uma história se desenvolvendo no computador, me entusiasmando.
Para terminar, ouvir uma amiga, falando de seu romance, me divertindo já que mostrava a ficção se construindo face à realidade. Obrigada. Estou ansiosa para lê-lo. Assim que sair, aviso a vocês, meus queridos leitores.

Sunday, November 14, 2010

Pequeno Nicolau, grande Saramago

Sessão dupla de cinema, na Laura Alvim. O pequeno Nicolau, que me provocou algumas boas risadas e me fez lembrar Mon Oncle, de que o Guilherme tanto gostava. E depois, José e Pilar, o documentário sobre a "quase" viagem de Saramago. O que mais me surpreendeu? a casa em Lanzarote. A própria ilha de Lanzarote. Varrida pelos ventos, coberta de nuvens, aparentemente desabitada, com aquela casa tão angulosa, tão despida, tão diferente da linguagem quase barroca do Saramago. Aquela casa é muito mais Pilar que José. Ou talvez muito mais um projeto para depois da "viagem". As patas do elefante.
Mas há belos momentos no filme, sobretudo quando a câmera nos oferece close-ups dos olhos de Saramago: uma mistura de medo e de sonho. Inteligentes, os dois cônjuges nem sempre nos encantam pelas suas tiradas. Na verdade, as palavras "inteligentes" o são muito pouco. Quando a gente fala com a emoção – e Doña Pilar que me perdôe – diz coisas mais belas, mais relevantes. Pode ser que mais piegas também, admito. Mas é muito mais relevante assistir a emoção de um autor vendo seu filme ser exibido e se emocionando com isso que assistir a senhora consorte a reclamar para si a palavra presidenta. Falta-lhe um pouco de sensibilidade linguística… Imaginem termos que passar a dizer a amanta, ao invés de a amante. Perde-se a tesão e o único resquício do particípio presente, o que tiraria a constância desse amor. Por isso humildemente me oponho a essa violência linguística. E isso para não falar nada da sua defesa da Hilary, e das pequenas grandes faltas de delicadeza que ela esbanja pelo filme.
Quem cresce ali é o Saramago. Em sua derrocada, ele vai crescendo, demonstrando uma força e uma elegância que nos admiram. E sua grande compaixão, qualidade que julgo encontrar nos escritores que mais admiro. O respeito pelo leitor e pela verdade que julgamos descobrir nos detalhes insuspeitados. Foi uma bela tarde.

Friday, November 12, 2010

Veredas…



De volta ao Rio, com fotos e novidades:
Começo com as fotos ao lado, tiradas no dia 10, pouco antes de meu embarque de volta ao Rio. Passear no Central Park no outono, num dia como anteontem pode ser uma das melhores coisas a se fazer em NY. A beleza das árvores, o contraste com os prédios, o friozinho que nos deixa meio elétricas, exigindo que nos movimentemos para aquecer um pouco, é um prazer que se sente com corações e mentes. Mas, principalmente, depois de ter, na noite anterior, tido o prazer de assistir Al Pacino no palco, representando o Shylock de Mercador de Veneza. Um grande ator (não em tamanho, que ele era o segundo mais baixo no elenco) exibindo, sem frescuras nem grandiloquências, sua arte. Ele estava tão perfeito que, por muitas vezes, me perguntei se ele não seria mesmo judeu. A expressão corporal era impressionante, ele parecia traduzir no corpo a essência do judaísmo. E era tão humano, seu "pathos" era tão legítimo, que fez que todos os outros personagens se tornassem artificiais, vazios, irritantes. Senti, com ele, as dores do preconceito, a raiva e o desespero, o desprezo. Seu último gesto na peça, depois de ser batizado à força, é levantar sua Kipah (como é que se escreve o nome do chapeuzinho usado pelos homens?) e, depois de limpá-la, recolocá-la em sua cabeça, não sem antes lançar um olhar expressivo, para os homens que se afastam, achando-se "os vencedores". Neste olhar havia tanta dor, tanta revolta, tanto orgulho, tanta sinceridade que, por mais que eu escreva aqui falando sobre ele, não conseguirei dizer tudo. Foi um pequeno flash, ele estava cabisbaixo, amparado por seus amigos, apenas recolheu a kipah (perdoem-se se escrevo errado) sacudiu-a e, ao levantar a cabeça para colocá-la de volta, olhou para os "bully" que se afastavam. Era o olhar de uma vítima de estupro. Foi impressionante. E depois ele saiu do palco e a peça continuou com o brilho das frases de Shakespeare, mas senti uma impaciência, era como se, depois de um drama, estivesse sendo obrigada a ver uma peça de jardim de infância onde nenhuma das crianças fosse minha conhecida. Acho que esse meu sentimento foi compartilhado. As pessoas na platéia se entreolhavam, como se se perguntassem: que erro foi esse de Shakespeare, continuar a peça depois que ela se acabou? Pois, na verdade, o Antônio se acaba ali naquele julgamento e a bela Porcia, tão inteligente, mostra que bem merece seu Bassanio: são dois fúteis! São visões do futuro, esses dois personagens, gente que se preocupa com fama e riqueza, e nada mais. O amor entre eles é muita atração sexual e cálculo, sentimento Zero!
Mas nem só de Broadway se faz uma NY, embora eu tenha feito a quase proeza de assistir 3 espetáculos desta vez: Além do Pacino, fui assistir Rain, o musical dos Beatles, que me fez regressar a um tempo em que todos os sonhos pareciam possíveis. E também Fella, sobre o líder africano do mesmo nome, com impressionantes danças negras que mostram as afinidades entre Bahia e África. Rita, baiana, ao meu lado, curtiu muito toda a coreografia.
Os museus foram apenas 3: Metropolitan, Natural History e o Discovery Center, onde estava a exibição de Tut Ankh Amun. Decomponho o nome na tentativa de recordar os significados que aprendi no cartucho, mas, de cabeça, só lembro do Ankh, o símbolo da imortalidade, quase irónico num faraó que morreu aos 19 anos de idade. Cheio de artefatos e de filmes, a exposição consegue criar a mesma expectativa da época, com a abertura da tumba do Rei Tut. Vamos sendo levados pelo Egito e acompanhamos os passos da descoberta da tumba: o jovem carregador de água que, ao cavar um buraco na areia dá com os degraus que levam à tumba, o encontro da primeira câmara, Lord Carnavon e sua filha correndo para o local, para a abertura da última câmara, o brilho da parede de ouro, que tira nossa respiração, a imensa presença do sarcófago e os seguintes, que acabam por revelar a extraordinária máscara de ouro do rei. Finalmente, a reprodução, em bronze, da múmia, a única no Egito que permanece em seu túmulo, que foi preparado cientificamente para preservá-la. E o filme da extração do DNA do faraó, que tem respondido a tantas questões da história. Para finalizar, um filme em 3D sobre Ramsés II, sua vida e o processo de mumificação. Adorei. Sem falar no convite para passar a mão no crânio do rapaz, também reproduzido em bronze.
São muitas as histórias. Ficam para depois.
Agora só falo do prazer de pegar o jornal de hoje e ler as notícias da parte científica: a leitura modificando nosso cérebro, o pensamento que pode nos levar à infelicidade, a impagável foto do Obama: ainda é muito bom ler o jornal em papel! E ler os livros em papel, também… Pois não resisti e comprei um monte ( na verdade, só uns quatro) E mais dois audiobooks, para escutar no carro (adoro!) Em resumo, a gente pensa que as viagens nos modificam, mas elas só nos tornam mais iguais a nós mesmos. Aqui estou de volta, mais Lúcia do que nunca!

Saturday, October 30, 2010

Encontros e desencontros

Roubo o título da cineasta para falar de meus últimos dias: fui e voltei e já estou indo outra vez. Fui: para Ribeirão Preto e Araraquara. Terras quentes e férteis, com gente solar, agradável. Fui recebida com carinho e atenções delicadas. Mas a viagem teve um custo alto: presa num avião com uma sinfonia de espirros e tosses, cheguei em Ribeirão carregada dos vírus que colhi no caminho e que espero não ter espalhado por aí. A agenda de entrevistas teria me deixado até algum tempo livre para explorar as cidades que visitei, mas a febre me tirou o ânimo e não cheguei a ver o "Salto Grande", nem sequer dei uma volta pelos arredores de Ribeirão. Mas o céu, enorme, azul, e os campos cultivados com capricho me encantaram. E o canto dos pássaros, em Araraquara, fizeram a minha delícia. A UNESP fica dentro de um bosque, e eu tinha vontade de sair, como louca, cantando estrofes do hino nacional: nossos bosques… Mais flores…Mais vida…nossos encantos, patria amada salve, salve! Ainda bem que não cantei. Até porque a voz que tinha se acabou de tanto falar, não sei de quê! Em Ribeirão, respondi a muitas perguntas. Em Araraquara, falei, assim, meio sem compromisso, inspirada, talvez, pelos passarinhos, pulando de galho em galho de assunto. Nos dois lugares conheci gente interessantíssima, adorei os papos públicos e privados. E, vou ter de falar, pois me sinto ainda com o peito estufado de orgulho: fui entrevistada na chácara onde Mário de Andrade escreveu Macunaíma! Com que emoção entrei ali, com que cuidado pisei naquele chão… Agora, finalmente entendo a letra do samba "pisar nesse chão devagarinho". Estava entrando no que, para mim, é um santuário. E, como meu adorado e adorável Mário tinha que ser diferente, foram logo me apresentar a banheira onde – diz-se – ele escreveu sua obra prima.
Ainda estou com a cabeça recheada de algodão, por causa da gripe, e nem posso transmitir direito minha emoção. Mas, amanhã já vou bater asas outra vez. Um pouco de NY, um pouco de Dallas. Sempre a caminho, numa tentativa de me encontrar (ou, no melhor dos casos, de me perder). Se a gripe permitir, vou a teatros e museus. Se estiver mal, pelo menos vejo amigos queridos. Então, até breve.

Wednesday, October 20, 2010

Vergonha

Às vezes me envergonho de sangrar tão fácil.
Estou me despedindo de Rimbaud, terminando com minhas alunas a leitura de Rimbaud, o filho de Pierre Michon. Um livrinho curtinho e denso que nos serviu de base para explorar a poesia e a vida do poeta. Por conta disso, fui ler as cartas que ele escreveu e que estão publicadas pela Topbooks, na tentativa, tantas vezes ensaiada por tanta gente boa e má, de compreender seu inexplicável silêncio. Claro que não faço ideia da razão de seu silêncio. E lendo suas cartas, escritas de seu "exílio" na África me admiro: por que escrever cartas depois de escrever os poemas que tinha escrito? Por que voltar a ser homem depois de ser um semideus? Mas, aquele que escreve poemas e palavras geniais pode ser considerado outra coisa que não um ser humano comum? Não precisa ele viver num corpo de carne e osso, tendo que alimentá-lo, banhá-lo, vesti-lo de maneira adequada? Poeta e gênio, não precisa ele de ganhar a vida, de manter a vida, de pensar na velhice, ou preocupar-se em aprender uma nova língua, em sobreviver entre pessoas que são regidas por leis tão diferentes das que o governam?
Cartas discutindo o preço, pleiteando pagamentos, tentando escapar de prejuízos e regularizar situações me incomodaram. Mas o que me fez escrever aqui no blog é ler suas últimas cartas, nas quais descreve os males que o afligiram e o levaram à morte.
Sangro fácil, qualquer coisa me fere, mas eu não sou Rimbaud. Imagino, então, esse alguém, com uma sensibilidade tão maior que a minha, sofrendo provações tão superiores às minhas. Medos, injustiças, dores insuportáveis e a necessidade de se aceitar como um ser vivo. Sua última viagem pelo deserto, carregado numa liteira que ele mesmo teve que desenhar, donde não pode sair nem para ir ao banheiro. Depois, já com a perna amputada, seu desespero com as muletas, seu medo de ser derrubado por alguma pessoa descuidada… Só lendo as cartas!
Abandonar a última esperança, abdicar dos últimos sonhos. Fazer a vontade da irmã carola e confessar-se, e talvez até crer, com a intensidade com que fez tudo na vida.
Tenho vergonha de sangrar tão fácil! Minhas dores me transpassam como as espadas que atravessam a imagem de N. S. das Dores e provocam sangramentos hemofílicos que não estancam, que me debilitam. Mas talvez a minha dor seja, afinal, comparável com a de Rimbaud, e com a de todos os outros sofredores: é a dor de estar viva.

Thursday, October 14, 2010

Luto

Acabo de ler O tempo envelhece depressa, de Antonio Tabucchi. Na epígrafe, a frase " Seguindo a sombra, o tempo envelhece depressa", retirada de um fragmento dos pré-socráticos.
Vou fazer uma resenha, mas meu tempo está solidificado numa pedra, que pesa sobre meu coração, há cinco anos. Minhas mãos estranham a ausência das mãos que com elas se mediam. Perdidos, tempo e afeto, só as memórias. Mas as memórias são sempre mais novas, são sempre de um tempo mais novo…
Uma citação: " Sentiu-se como aquele menino que de repente se via com um balão vazio nas mãos, como se alguém o tivesse roubado, mas não, o balão ainda estava lá, tinham somente retirado o ar de dentro."
Na minha infância aprendi muito com os balões: inflados, eles ansiavam por subir, e era necessário mantê-los à força, amarrados com nós bem dados, seguros por dedos firmes e sempre atentos. Ao menor descuido, eles se iam, sem nem ao menos se despedir. Por algum tempo era possível ficar olhando-os subir, ainda dava para se distinguir, no céu cada vez mais imenso, o pontinho de cor. Depois, era apenas um sinal, a cor contraída num ponto negro e dolorido. E, apesar dos esforços, até esse ponto desaparecia, só nos sobrava a memória da dor.
Havia outros que mantínhamos por mais tempo junto a nós. Mas esses também iam escapando devagar. Já sem forças para libertarem-se, seu voo era apenas uma afirmação de leveza, e eles exibiam seus rostos tristes e enrugados, sua superfície cada vez mais opaca, cada vez mais próximos de nossas mãos. Até que murchavam, amarrados a uma corda que era, para os balões apagados, sua condecoração.
Balões eram tristes, na sua beleza efêmera. Mas a gente só sabia que eles eram tristes no momento da perda. A gente não sabe da vida a metade…

Friday, October 08, 2010

Boas lembranças

Há alguns livros que são inesquecíveis. Talvez uns o sejam pelo conteúdo, outros pelo elevado de suas mensagens, e outros porque tenham sido presentes de uma pessoa amada. Há livros cujas ilustrações nos transportam a um mundo paralelo, livros que nos comovem até às lágrimas, livros que nos fazem rir. Tenho recordações de muitos, em todas essas categorias. Mas preciso confessar meu encantamento com alguns livros de Mário Vargas Llosa.
Começo por um que me deslumbra, embora talvez não seja a melhor coisa que o autor escreveu: Pantaleão e as visitadoras. Muito antigo, já não me lembro bem de quando ele é. Mas só sei que saiu ainda muito próximo dos tenebrosos anos da censura, em que até o Ballet de Moscou foi censurado. Imaginem, censurar um ballet. Imaginem, censurar! Pois eis que vem a prelo um livro em que os militares (os peruanos, é verdade) são alvo de zombaria e irreverência. Mas uma zombaria e irreverência de tal maneira construída que nos provocava risadas, muitas risadas. Quem não leu, corra para encontrar o romance, todo escrito em cartas e memorandos, numa variedade de "discursos" que esbanja conhecimentos de retórica e cuja "seriedade" e excelente performance de seu protagonista, tão certinho, na desordem da selva, no Carnaval do sexo e nos desvairios da religião nos divertem até às lágrimas.
Fizeram um filme, chatinho... Mas o romance é nota dez! Com certeza não foi este o romance que deu o Nobel ao Mário, mas que ajudou, lá isso ajudou.
Gosto também de um outro, picante que só ele, e que não lembro se são Os cadernos de Dom Rigoberto ou se se trata de Elogio à Madrasta. Cheio de erotismo, descreve quadros entre Dom Rigoberto e sua amada, jogos sexuais em que encontramos perversão, malícia e sensualidade. (Olhando para trás, julgo reconhecer neles alguma coisa de meu bem amado Felisberto Hernández, que quase ninguém conhece no Brasil, e que merecia ser traduzido. Las Horténsias é uma obra prima!)
Gostei de tudo o que li de Vargas Llosa - coisa que nem sempre acontece. Nem Virginia Woolf, nem mesmo Proust escapam de minhas críticas. Mas, Vargas Llosa, por diferentes que sejam seus romances, todos os que li me agradaram. Até do opúsculo que ele escreveu, dando conselhos a um escritor, gostei. Mas, até hoje não consegui ler as Travessuras da menina má, livro que vive se escondendo de mim. Comprei-o antes mesmo que fosse traduzido, em español, lá na Argentina. Pois coloquei-o na mala, e não pude continuar a leitura que tinha iniciado ainda no hotel. E, ao chegar aqui, o livro foi direto para a estante, e se perdeu na indisciplina de minha biblioteca. Tenho esperanças de que agora, com ela domesticada por meu Dédalus/Guilherme, o poeta das classificações, o livro seja facilmente alcancável. O que me falta agora é tempo.
Volto então para o Rimbaud, de quem pretendo falar na segunda. Preparo minhas aulas com carinho, e renuncio ao prazer da leitura de nosso querido premiado. Renúncia que não é custosa, pois deixo de ler um mestre da prosa para mergulhar na embriaguês dos barcos-poema, que me transportam ao encantamento.
Então, feliz prêmio Nobel para todos: os que já o receberam, os que agora são premiados e os que sonham com ele, no futuro…

Friday, October 01, 2010

Jabuti Silvestre

E eis que um amigo ganha o prêmio Jabuti.
Suponho que o nome do prêmio tenha sido escolhido em homenagem ao livro de Mário de Andrade, Clã do Jabuti, que resultou de sua viagem de "descoberta" do país. Pois o Brasil é um país que ainda está por se descobrir, se conhecer. Somos 300, somos 350, múltiplos, diversos, espalhados e antagônicos, solidários e individualistas. O que nos une? Um "certo instinto de nacionalidade", que o bruxo do Cosme Velho percebeu mas não soube explicitar. Mas é esta coisa que se acende dentro de nós e nos aquece na torcida, seja de Copa do Mundo, seja de premiação.
Na lista de finalista de romance, suponho que dez ótimos livros. Não li todos, mas os que li confirmam minha suposição. Livros de autores admirados, livros de amigos queridos, livros de pessoas a descobrir. Torci, queria que os amigos ganhassem, é claro, mas o que todos desejamos sempre, a cada ano, é que o prêmio mantenha seu prestígio e descubra nosso talento, afirmando-o com orgulho.
Quem vence o Jabuti tem uma responsabilidade com nossas letras, a responsabilidade de zelar pela nossa cultura, sem demagogias nem estrelismos, mas reconhecendo e ensinando nosso valor cultural. Quem vence o Jabuti, na verdade, somos nós, os leitores, que todos os anos vemos a grande produção cultural de nosso país receber a atenção e reconhecimento. Quem vence o Jabuti representa, entre tantos irmãos, nosso esforço e dedicação às letras, ao pensamento, à invenção de uma nação.

Thursday, September 30, 2010

Vidinha morna

Leio o jornal que me anuncia um planeta onde a vida é possível. Nomezinho difícil de guardar, 581 g, circulando em volta de uma anã vermelha, continuo a leitura para saber que, uma vez que ele insiste em mostrar sempre a mesma face para a anã Gliese, a vida ali se desenvolveria na região da penumbra, com temperaturas amenas. Uma vidinha morna, no lusco-fusco, acho que muitos de nós já encontramos isso por aqui. Mas acho que todos nós procuramos alguma coisa além desse ramerrão estrelar. Mesmo aqui na Terra, nosso lindo balão azul, tem gente vivendo nos locais mais improváveis de todos. E bicho! Lá na Antártica os pinguins nos dão lições de responsabilidade, as focas, de persistência, e até o bicho homem já anda se metendo por lá, mesmo sem ser chamado. No deserto, se a gente cavucar, acha alguma cobra, algum escorpião, às vezes até um bicho de sangue quente. E homens, cavucando para encontrar bichos, ou água, ou petróleo, ou apenas passando por ali, como quem não quer nada. No alto da montanha ou no fundo do mar, lá onde a gente achava que podia ficar sossegado – nada disso: homens e bichos, plantas e insetos, alguma coisa sempre se adapta e adota o lugar, por mais inóspito, como moradia. Mas tem gente que quer mesmo essa vidinha quieta, nem sol nem chuva, sem paixões nem emoções. Daí que não duvido nada que, daqui a algum tempo, esses nossos irmãos se reúnam nalguma astronave e partam para Gliese 581g, que até lá já deverá ter mudado de nome, para alguma coisa do tipo Promenade Espacial ou Elysées Stars, ou Resort do Meio. No entanto, antes de esses tipos chegarem, uma turma de inquietos exploradores já terá ido fazer contato, com suas caravelas espaciais Glenda, Maga e Circe, homenageando heroínas de Cortazar, só porque Cortazar me parece surreal o bastante para explorar o espaço com suas personagens. E, lá chegando, depois de mandarem notícias animadoras para seus patrocinadores na Terra, se dispersarão, procurando ou o eterno dia de "581" ou a fria noite de "g", onde algum já terá a suspeita de encontrar um palácio de diamantes, numa cidade de habitantes de ouro cujas peles, de tão polidas e brilhantes, dispensa um brilho que supre a falta do brilho do sol… Dos habitantes originais de Gliese 581g, poucos sobrarão, dizimados por alguma epidemia de gripe suína que os transformarão em porcos que servirão de alimento aos novos colonizadores. E, muito em breve, algum líder barbudo estará anunciando a prospecção de petróleo, ou algum líder careca estará avisando da necessidade de controle de imprensa e de pensamento: em Gliese, só será permitido o pensamento positivo, e todos aqueles que pensarem diferente deverão ser executados, ou transferidos para os campos de trabalho nas regiões de clima adverso e:…
Acho que a gente já conhece essa história, por isso não vou repeti-la. Fico aqui, desejando a todos um feliz dia das Secretárias (de Borges e de todo o mundo), Feliz dia de Santa Teresinha de Lisieux, feliz aniversário, feliz casamento, feliz viagem intergalática!

Sunday, September 26, 2010

Be Stupid

No último post, falei do anúncio do ônibus, atrás do qual estava engarrafada. Hoje me lembro da propaganda idiota que vi antes de viajar, de uma marca dessas de griffe, ali no São Conrado Fashion Mall. Be stupid. Redundância, né? Os bobões que se espremem todos para entrar nas roupas de griffe, depois de espremerem suas contas bancárias para pagar essas marcas, não precisam da ordem "be stupid". Antes de continuar, deixe-me avisar aos que não falam inglês, que, apesar das semelhanças com estúpido, stupid seria melhor traduzido por burro. Ou idiota. Uma besta quadrada… enchendo de dinheiro os espertinhos da marca em questão. Que estão se achando ainda mais espertinhos por terem contratado (e provavelmente por uma estupidez de dinheiro) uma empresa de propaganda cujos "artistas" devem estar achando que, ao contrário do que ensinava Churchill, é possível enganar todo o mundo, todo o tempo. Menos os irremediáveis "smart", que insistem em pensar…
Mas, estupidamente, digo: DANEM-SE as bestas e os espertos! Tenho mais o que fazer. E, de tal maneira me resguardei dessa bobagem que agora, de volta de viagem, nem sei se a propaganda continua sendo feita. Passei por aí e, se vi, não notei mais. Essa é uma das minhas qualidades: consigo desligar grande parte das coisas que não me interessam. Nem tudo. Mas uma boa parte.
Mas guardo no coração e na memória as coisas que me emocionam. E, generosamente, me agrada compartilhar essas emoções e belezas que vou encontrando pelo mundo afora ou, às vezes, bem pertinho de mim: hoje descobri um amigo do meu amado Gui que faz parte de uma corrente de leitores. Amigos que compartilham livros e que, ao final da corrente, "esquecem" o livro em algum lugar público, frequentado por pessoas que gostem de ler, com uma dedicatória para o leitor desconhecido que, ao terminar sua leitura poderá optar por "esquecer" ou mesmo guardar o livro. Costumo fazer isso em aeroportos, em agradecimento a um livro que encontrei, uma vez, esquecido numa poltrona. Estava esperando um voo atrasado, num aeroporto de uma cidade pequena dos EUA, que não tinha nem uma banquinha de revista, por incrível que pareça. E eu estava sem nada para ler, desolada, sozinha, com frio e fome, esperando que as condições atmosféricas melhorassem. Aquele livrinho esquecido salvou minha vida. Ou, pelo menos, manteve minha sanidade naquela ocasião. O livro era um thriller qualquer, tenho uma vaga lembrança de uma estória de assassinato passada numa cidade do meio oeste americano. Nada que me desse vontade de guardá-lo depois. Aprendi a deixar livros para trás ali. Agora, sempre deixo livros e revistas nos aeroportos por onde ando. Mas essa coisa sistemática da corrente me encantou. Ainda mais porque fiquei salivando ao saber que eles esquecem coisas como Pynchon e outros piteus… Vou passar a ser mais generosa e levar para os aeroportos alguns livros que merecem ser apreciados, ao invés de deixar apenas best-sellers. E com uma dedicatória: "Don't be stupid. Be kind."

Saturday, September 25, 2010

Tempus fugit


Quase uma semana… Produzi algumas coisinhas: revisão da tradução da Secretária de Borges, que sai dia 1 de outubro na WWB, aulas, início da palestra para Juiz de Fora, atendi alguns compromissos pessoais, até mesmo fui ao cinema e ao teatro. Nestas andanças, fiquei engarrafada atrás de um ônibus que anunciava mais um desses livros milagrosos: Pense e fique rico.
Sim, eu sei, fui criada numa família que me garantia que a maior riqueza era aquilo que aprendíamos, que ouro e riqueza desaparecem, mas o que aprendemos fica para sempre… Agora, já avistando o fim da linha, sei que não é bem assim. Até o conhecimento se esvai, infelizmente. Mesmo quando não somos acometidos por doenças avassaladoras, que nos comem metade, ou mais do cérebro (e isso em qualquer idade, uma amiga foi fazer uma cirurgia boba, remoção de um quisto, pegou uma infecção hospitalar, e lá se foi sua memória, levada por alguma bactéria. Esqueceu do namorado, dos estudos, dos colegas de trabalho, das viagens… muito, muito triste!) Mas, mesmo quando não se trata de uma doença, nosso próprio conhecimento se transforma em coisas obsoletas. Por exemplo: de que me adianta ter aprendido a usar um videoK7, se hoje eles já nem existem mais? Para que me serve o conhecimento dos CDs, se agora só usamos MP3? Num livro infantil, a Casa de Ninoca (nada assim tão antigo), perguntei ao meu parceirinho de leitura, onde estava o telefone. Criança inteligente, ele não soube me mostrar. Fiquei admirada, e apontei o desenho, perguntando: Isso aqui o que é? Ele não sabia. Insisti, mostrando o desenho tão claro, com o corpo sólido onde o dial ostentava sua roda de números equilibrando um fone que parecia um alteres: Não é esse o telefone? Ele olhou para mim, exclamando: Claro que não! Telefone é assim!, e mostrou o microscópico telefone sem fio, equilibrado em sua base, que estava sobre a mesa da sala. E esse era o telefone fixo, quase do tamanho do celular, totalmente diferente daqueles telefones do passado, onde aguardávamos, com paciência, que o giro dos números discados se completasse corretamente, enquanto os músculos de nossos braços se fortaleciam, passando o pesado fone de uma mão para outra. "Colocar o fone no gancho" é uma frase de época, vejam só!
Mas há lugares onde o tempo parece seguir um ritmo menos agitado. Parece que os dias se solidificam nas pesadas pedras dos monumentos, ou nas preguiçosas águas de um rio dourado pelo sol.


A bela Firenze, em alguns relances, nos parece imutável. No burburinho das ruas, no entanto, logo mudamos de opinião. Há mudanças, é certo. Mas o tempo resiste, entrincheirado nas pontes, nas ruelas estreitas, nas igrejas silenciosas. Sim, ainda existem dessas igrejas sombrias e quietas. Mesmo assim, algumas já sofrem as marcas do tempo: Por exemplo, a "igreja de Dante", um pequeno templo feioso, a dois passos do museu que afirma ser "a casa de Dante", ostenta cartazes e fios de alarme, tudo por causa da violência cometida contra o pobre Cristo Crucificado. Acabados os tempos da delicadeza, onde os pais ensinavam aos filhos que não se devia bater em quem não pudesse se defender, o crucificado virou alvo fácil, dentro de uma igreja vazia, pouco frequentada. Somente eu apareci por lá, e parei por um momento frente ao túmulo de Beatriz, uma laje tosca, sem embelezamentos, onde alguém depositou flores de plástico. Quis recitar de memória um versinho… não lembrei de nenhum em que ela fosse o eixo. Imperfeita como sou, favoreço a história de Francesca, desencaminhada por um livro. Afinal, é nesse inferno que minha alma se consome…
Anteontem à noite, a lua me deixou maravilhada: Lua cheia, inaugurando a primavera… Ontem à noite, a lembrança da Lua me fez sentir saudades do tempo em que me aninhava entre braços amorosos. Ao invés de perdição, porém, a salvação veio na memória de um livro: recordei os versos de Drummond: "mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo". Passou. E lá fui eu ao teatro, ver como a vida pode ser chata. Com a lua escondida e o espírito embotado pela peça, voltei para casa e dormi. Não sem antes pensar no nome do livro indicado pelo ônibus. Pense e fique rico. Nos tempos de minha infância, as coisas eram diferentes. O ditado popular rezava: "pensando morreu um burro…"




Sunday, September 19, 2010

Diário de viagem


Tenho fotos e lembranças para compartilhar, mas não tenho tempo para selecionar e escrever! A vida é sempre assim, uma negociação. Se viajo, trago muitos assuntos, mas os trabalhos se acumulam, e, na volta, tomam todo o tempo em que poderia estar escrevendo. Mas, vamos lá, vou roubar um pouquinho de tempo das tarefas. Afinal, hoje é domingo, e preciso me dar algum prazer…
Falar um pouquinho da Itália, para não deixar a viagem cair no esquecimento, vamos começar por aí.
Em primeiro lugar, por que voltar a Itália? Tinha ido lá em maio… É verdade, mas não me perguntei isso na hora de requisitar a passagem. As milhas estavam lá, dando sopa. Não tinha passagem para Paris, mas havia para Milão. Fechei os olhos e lembrei do Duomo, belo e branco, imponente em sua praça enorme, em suas infinitas espirais. Voltei, e fiz muito bem de ter voltado. Mas agora tomei algumas decisões, ciente de que decisões são tomadas para depois serem revistas: Não vou mais viajar assim de impulso. Gosto de ir aos lugares com a expectativa de fazer programações culturais que aqui são muito raras ou impossíveis. Então, agora, só viajarei quando houver temporada de ópera, peças de teatro, ballets estreando, concertos que prometem ser inesquecíveis. Desta vez, Milão não tinha Scala - mas tinha Fórmula 1: não é a minha praia, mas deixou a cidade absolutamente vibrante, como há muito tempo não via uma cidade tão festiva. As ruas de Milão pareciam festas, um enorme coquetel para o qual todos os habitantes e turistas tinham sido convidados. Resultado: as pessoas mais lindas circulando, os sorrisos mais belos enfeitando faces já belas. As vitrines estonteantes, vendedores esfalfados, mas pacientes, longas filas nos caixas, mas sempre um lugar nos bares e restaurantes onde a gente se deixava ficar até tarde, esperando o crepúsculo que tardava a chegar. A gente esperava, o corpo refrescando junto com o dia, e, de repente, sem que conseguíssemos perceber quando, a noite tinha chegado. O céu ainda estava iluminado, mas as silhuetas se recortavam escuras contra aquela luz, que já não iluminava. E logo aparecia uma estrela, como um cão, inquieta, cintilando muito. Depois se aquietava e adormecia, entre outras estrelas chegadas mansamente, como gatos. Na falta de lua, eram elas que indicavam nosso caminho, depois das taças de vinho que deixavam nossos olhos sonhadoramente embaciados. No hotel, os lençóis, tão macios, abafavam nosso suspiro de cansaço, ao nos acolher para a noite, que só durava um instante. Logo chegava o sol para nos chamar lá para fora.
Além de Milão, ainda tive Florença, Roma e Veneza. Destas três irmãs, Veneza é a que se desencaminhou. Gasta, prostituída, abastardada em uma paródia de si mesma, mesmo assim ela me recebeu bem: a grande regata histórica, o festival de cinema, ela bem que tentou me seduzir. Mas suas ruas superlotadas de turistas de quinta, seus camelôs abarrotados de tesouros venezianos "made in China", seus músicos descuidadamente desafinados e o tempo frio e chuvoso fizeram que ela fosse preterida em favor das outras cidades irmãs, exibindo suas belezas gloriosamente banhadas de sol. No entanto, para que não digam que briguei com a cidade, a foto do início mostra o lado sem andaimes da Piazza de San Marco. A catedral proustiana e os mouros carpentierianos, juntos na mesma foto…
Volto em breve, com fotos e mais comentários.

Saturday, September 04, 2010

O verbo viajar

Este deve ser o verbo que mais conjugo: estou sempre viajando! Desta vez, sem computador, nao tenho conseguido atualizar o blog. Este post eh soh para que meus leitores do coracao saibam que estou por aqui, na Italia, e que daqui a mais uma semana voltarei a escrever. Aqui nao me animo, pois alem de os computadores nao terem acento, fico ansiosa para sair para passear... Vou andar por aih. Mas volto em meados de setembro. Prometo!

Tuesday, August 10, 2010

Inveja de Bartleby

Das muitas coisas que já li, uma das que mais me incomodaram foi Bartleby. Sabem por quê? Por que sofro de uma inveja doentia deste personagem que tem a coragem de dizer que prefere não fazer. E não faz! Ele resiste, determinado. Não se dobra às argumentações.
Desde pequena que fui obrigada a fazer aquilo que os outros queriam: ser bem comportada era minha única opção. Não sei como me convenceram a ficar assim tão "amestrada", se foi pela persuasão ou por espancamento (sim, isso se usava em minha casa), não sei o que resultou em me dar essa segunda natureza que, muitas vezes, amaldiçoo, mas da qual não consigo me livrar. E assim vou fazendo aquilo que esperam que eu faça. Nem mesmo o direito à minha timidez eu tenho: se eu dizia que "tinha vergonha", aquilo parecia ser uma senha para que todos os olhos se voltassem para mim e todas as vozes reverberassem, altíssimas, me censurando. Em resumo, a vergonha de ter vergonha se tornou mais forte que o desejo de uma proteção que nunca me foi dada. Pois se tentava me esconder atrás de uma saia, ou de pernas adultas, era puxada, empurrada, até que me pusessem, desamparada, a descoberto. Tantos anos passados, ainda sofro com a evocação dessas cenas.
Mas um dia, tardio, com certeza, li Bartleby. Confesso que li sem entender direito, minha psiquê não permitia que eu me identificasse com aquele ser que estava morto dentro de mim mesma. Preferiria não fazê-lo, se me fosse possível dar essa resposta. Mas, uma vez começada a leitura, tinha que terminar. E, lido o livro, tinha que pensar sobre ele. Bartleby até hoje me assombra. A cada vez que faço algo contra a minha vontade, ele me olha de seu cantinho escuro e ri, sardônico. Não diz nada, mas o riso que atravessa sua boca é um relâmpago que ilumina, impiedoso, a minha falha.

Friday, August 06, 2010

Texto do JALLA

A pedidos, aqui fica publicado o texto que li hoje no JALLA, sobre Mário de Andrade. E a indicação do blog absolutamente andradiano, do meu amigo Cesar Cardoso é Patavinas cesarcar.blogspot.com Indo lá vocês verão que o espírito de Mário continua vivo no César.
Agora o texto. E bye-bye, pois vou à Flip!
Mais uma última coisa: peço perdão pela bibliografia incompleta… depois trato disso.

Ensaiando e provando o gosto do outro

Lúcia Bettencourt – Universidade Federal Fluminense (UFF)

No capítulo IV do livro de sua autoria, Mundialização e cultura (1994), Renato Ortiz começa por citar a pequena parábola de Enzensberger, falando da estranheza do executivo alemão enviado à China, e do seu alívio ao chegar a Hong Kong, sentindo-se outra vez em casa. Isso ocorreu antes de 1985, época em que a China ainda era um território fechado às influências do mundo globalizado. O executivo em questão não sabia falar chinês, e seus hospedeiros desconheciam sua língua, ou mesmo o inglês e o francês. Não havia automóveis em que ele pudesse circular e o quarto de hotel, modesto, em que estava hospedado, era forçosamente compartilhado com outro viajante qualquer. Mas, ao chegar a Hong Kong, lugar tão longínquo quanto o que acabara de deixar — e tecnicamente parte do mesmo país —, o executivo se sente outra vez à vontade, “sente-se em casa”, como ressalta Ortiz.

Esse reconhecimento se deve ao fato de que o viajante volta a se encontrar entre “coisas de sua vida prosaica” (ORTIZ, 1994, p. 107). Esses objetos, porém, não são alemães, nem americanos, nem de uma ou de outra origem geográfica. Essas “coisas” pertencem “ao anonimato de uma civilização que minou as raízes geográficas dos homens e das coisas” (ORTIZ, 1994, p.108). Estamos vivendo em meio ao que o autor chama de uma cultura internacional popular onde os objetos se criam a partir da união de pedaços oriundos de diversas regiões aleatórias do planeta. Um carro popular vendido no Brasil pode ter sido projetado na Itália, e, mesmo montado no Brasil, seus vidros podem ter vindo do Chile, os assentos da Bolívia, o carburador da França e o seu motor do México. E, no entanto, este carro pode ostentar a marca Made in Brasil, tal qual uma novela da Globo, com cenários italianos, atores portugueses, produção peruana, montagem argentina! Não há como precisar sua origem. Os objetos e criações estão voltados para o “mercado”, que interliga regiões e transforma as relações de trabalho em escala mundial. O fenômeno em questão desterritorializa não apenas os produtos como a própria arte, que perde suas fronteiras geográficas e temporais.

Na sua constante busca de expressão, artistas, arquitetos e escritores, ao se rebelarem contra a massificação e a padronização de formas estéticas, procuram no passado os elementos que lhes pareçam mais próprios à pureza de seus conceitos. Buscando em aspectos da tradição européia e ou das culturas autóctones elementos para enriquecer suas produções, as releituras dos traços oferecidos pelo passado nos fazem, hoje, estranhamente contemporâneos a este. Globalizamos tempo e espaço, e cultuamos a simultaneidade. Com isso, desenraizamos as referências culturais para ficarmos apenas com o produto, que deixa de ser valorizado pelo seu “hic et nunc” e passa a ser estimado como simulacro “perfeito”.

Refletir sobre mundialização de cultura é, necessariamente, questionar o valor de uma cultura nacional. Embora alguns autores acreditem que uma cultura mundializada seja impossível, já que se trataria de uma “cultura sem memória”, pode-se, não obstante, pensar numa “memória permeada pelo consumo”, numa “memória cibernética” e numa “memória internacional popular”. Esse tipo de memória reconhece que, no interior da sociedade de consumo se reconhecem referências culturais mundializadas. Com uma base de dados construída a partir das lembranças desterritorializadas que nos permitem reconhecer, em qualquer parte do mundo, as referências a Avatar e a Humphrey Bogart,; que tornam a Escrava Isaura reconhecível na Rússia; que nos capacitam a entender citações a Greta Garbo num filme de Almodóvar; e a aceitar como África, ou Oceania, ou o mundo de Guerra nas Estrelas, os simulacros oferecidos nos parques da Disney, nossas fronteiras se tornam cada vez mais abstratas e universais.

Em literatura, a pós-modernidade aceitou como usual o uso de “intertextualidade”. Reconhecendo que os textos são sempre construídos a partir de outros textos anteriores, encara-se a literatura segundo os ensinamentos de Borges, com sua Biblioteca de Babel. Ali onde todos os livros estão contidos, tudo o que vier a ser escrito terá de ser, necessariamente, uma combinação de elementos pré-existentes dentro do universo da Biblioteca. Portanto, abre-se a porta para textos que não são necessariamente os textos canônicos, uma vez que na Biblioteca de Babel, Dante convive com o rap, e as histórias em quadrinho convivem com o discurso político demagógico. E um enriquece o outro, pois os livros (bem como as obras de arte) dialogam com as manifestações da cultura de mercado. Citar uma propaganda de cerveja, que não foi exibida na TV aqui no Brasil, mas que está disponível na internet, não só é possível, como inteligível. Reconhecer na tela modernista o paradigma clássico não é mais tarefa de pesquisador, e sim brincadeira de videogame.

Essas práticas que nos parecem essencialmente pós-modernas, em verdade vêm-se repetindo desde muito tempo. Em 1928 aparece a primeira edição do livro de Mário de Andrade, Macunaíma. Nesta obra, o herói sem caráter, cheio de ambiguidades, parido por uma índia, nascido com pele negra, branqueando-se através de um mito é um viajante por terras do Brasil e da América Latina. Livro-saga que canibaliza outros textos, colocando-os em diálogo com os romances brasileiros anteriores a si mesmo, ele prefere ser rapsódia, e assim assumir seu caráter musical, oral e popular. Deste modo, em diferentes movimentos, vamos percorrendo os caminhos e descaminhos do Brasil e da América Latina. Inspirado, como admite, pela leitura de Vom Roraima zum Orinoco, de Koch-Grünberg, Mário de Andrade ignora as fronteiras tradicionais do país e incorpora as lendas das diversas regiões do continente. E ignora os parâmetros do romance para incorporar diferentes formas de expressão.

Macunaíma, uma espécie de "Ulisses crioulo", carrega consigo um séquito. Seus dois irmãos, um negro e um índio são mais do que irmãos, são partes de sua identidade. Só assim se explica o completo domínio que o "mano mais novo" exerce sobre os outros dois "manos". Sua primeira viagem é uma viagem de exploração das terras americanas. Para empreendê-la ele necessita deixar sua consciência resguardada na Ilha de Marapatá. Depois viaja pelos mitos brasileiros e hispano-americanos, demonstrando uma afinidade maior do que a geralmente admitida entre as duas tradições. Em seguida, abandona seus domínios e se aproxima de uma civilização que não reconhece como sua, mas da qual imediatamente, ou quase, se apropria. Neste novo cenário ele se enfrenta com um gigante meio europeu meio hispano-americano que deseja comê-lo seja literalmente, seja em sentido metafórico.

A obra se revela um livro único: breve, alegre, variado e eruditamente entremeado de críticas. Em Macunaíma -- considerado como a expressão novelística das proposições do "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade -- saboreamos uma excelente "refeição literária", que consiste em pratos rústicos e de sabores definidos na simplicidade do folclore, em pratos mais pesados e de elaboração intrincada pela retórica; que finaliza com delicadezas de sobremesas de sabor decadentista ou com o caráter agridoce de frutos tropicais nas modinhas e aforismos, e deixa no ar um aroma a cafezinho, servido por uma burguesia insegura, com medo de se sujar na graxa das máquinas das primeiras fábricas brasileiras.

No final de sua vida, Mário de Andrade oferece a seus leitores ainda mais uma substanciosa refeição. Seu último projeto literário foi uma série de crônicas publicadas sob o titulo de "O Banquete" na Folha da Manhã. Esta série foi interrompida por sua morte, e cerca de 30 anos depois foram publicadas no seu conjunto, num livro compilado e prefaciado por Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas, mantendo o titulo original da série. Este conjunto de crônicas que o autor pretendia organizar em livro é uma meditação sobre as possibilidades da música -- por metonímia , da arte -- numa sociedade marcada por contradições. Mentira, a "simpática cidadinha da Alta Paulista", é um microcosmos que concentra características peculiares a um pais colonizado. Ressente-se de vários problemas, um dos quais, talvez o maior deles, seja sua relação com a tradição artístico cultural, cujo modelo importado satisfaz ao anseio de inserção dos "mentirosos" numa tradição cultural por eles admirada, mas que também os exclui, pois não tem espaço para aceitar o folclórico e pitoresco quando digeridos e transformados em novas propostas.

O Banquete não pode ser considerado um romance. O conjunto de crônicas viria a dar, eventualmente, um diálogo de características filosóficas, que trataria não apenas da estética, mas da ética artística. A compilação das crônicas efetivamente publicadas e dos projetos das que se seguiriam, nos permite ver a abrangência pretendida por seu autor. Infelizmente, a morte o surpreendeu a meio do caminho:

Redisponho assuntos do “Banquete”. Passo a manhã toda reestudando com meia angústia as notas e fichas. Com o desenvolvimento, à medida que escrevia os artigos, embora tivesse um sumário geral, tudo ficou caótico e superlotado. Só consegui de mais eficiente esta manhã fixar 5 assuntos gerais, pra 5 capítulos . Sinto que com a ebulição de tanta leitura, podia, neste momento, fixar o sumário do capitulo Salada, mas me sinto fatigado. Deixo pra amanhã.

Com essa entrada em seu diário no dia 18 de fevereiro de 1945, Mário de Andrade refere-se à mencionada série de artigos que vinha publicando na coluna de sua responsabilidade do Mundo Musical. Sete dias depois a morte o surpreendeu e seu projeto quedou-se incompleto. Tal como dele temos noticia, O Banquete ressente-se de todos os males de uma obra inacabada. "Caótico" e "superlotado" nas palavras do próprio autor, é, entretanto, uma obra que merece respeito pelas importantes reflexões crítico-estéticas nela veiculadas. O titulo escolhido traz à memória o famoso diálogo socrático, e não é possível ignorar as ressonâncias do texto grego existentes na obra andradina. Se as reflexões de Mário não se pretendem um pastiche do filósofo e se os temas propostos diferem, ainda assim é licito procurar os pontos em comum entre as duas obras. É o próprio Mário, em cartas a Guilherme de Figueiredo, quem nos autoriza a aproximação ao texto grego. Num primeiro momento, no final da carta datada de 10-II-44, Mário informa seu amigo quanto ao projeto que trazia em mente e rejeita a aproximação:

Creio que vou fazer um "Banquete" musical, que se chamará decerto, "O Almoço" pra não imaginarem que estou querendo concorrer com o de Platão e demais banquetes antigos. Mas é um jeito bom de ter vários rodapés encadeados e não andar na angústia de cavar assuntos, acho que vou fazer. Será um almoço de domingo com cinco personagens, o compositor Janjão, o politiqueiro Felix de Cima, a milionária que ainda não tem nome, a cantora Siomara Ponga e um moço estudante de direito, não sei, meio surrealista, que diz as verdades, talvez nordestino, mas que está me saindo bastante simpático. Janjão será o personagem "dramático". Os outros três esculhambativos. E o moço será a mocidade. Mas não sei ainda, tá tudo muito vago. E não vai ser nada de trabalho, coisa para encher rodapé, descuidadamente. (ALG, p. 88)

Vemos que o que se iniciara como um modesto projeto, e cujo título devia passar a ser almoço para evitar comparações com uma tradição de diálogos filosóficos, se assume, mais tarde, como projeto de seriedade, merecedor do nome em questão visto tratar-se de obra "de combate". Em 6 de agosto Mário já se refere ao projeto como algo que vai dar em livro e que é “escrita clara e definitivamente participante desse nosso mundo escuro, e mesmo obra de combate”. É no próprio O Banquete que Mário esclarece o que seja uma "obra de combate", obras que "maltratam, excitam o espectador e o põem de pé". Para construí-la, são necessárias as técnicas do inacabado:

Toda obra de circunstância, principalmente a de combate, não só permite mas exige as técnicas mais violentas e dinâmicas do inacabado. O acabado é dogmático e impositivo. O inacabado é convidativo e insinuante. É dinâmico, enfim. Arma o nosso braço (BQT, p. 62)

O nome banquete, com suas alusões semânticas ao ato de ingerir, está também ligado ao importante movimento do modernismo brasileiro: a antropofagia. Preocupados em proclamar a independência da arte brasileira no ano em que se comemoravam os 100 anos da independência política do pais, o grupo de jovens que organizou, em São Paulo, a Semana de Arte Moderna não cessou aí suas movimentações. Continuando um processo cada vez mais abrangente, em 1928, Oswald de Andrade publica o "Manifesto Antropófago" e se propõe a reconhecer um processo de mão dupla na arte brasileira. As influências estrangeiras propunham-se inegáveis e até mesmo desejáveis num mundo que se fazia cada vez menor.

Acompanhando as idéias de Oswald de Andrade, os modernistas procuram pensar os processos de criação dos artistas brasileiros e tentam encontrar seus caminhos próprios, nacionais. Mário de Andrade percebe que o regionalismo exótico e pitoresco era um recurso imposto de fora para dentro, que era necessário repensar. A arte brasileira -- e toda a arte americana, por extensão -- sobreviveria e floresceria, pensava Mário, de acordo com a antropofagia, desde que houvesse uma digestão de tudo aquilo que ela cobiçasse como seu. Uma escola européia, uma idéia filosófica, um comportamento aborígene, tudo cabia nas produções novas, desde que “comidos”, digeridos. Isso porque seria impossível apagar os anos de educação burguesa e os séculos de influência do pensamento artístico (e também filosófico, cientifico e político) ocidental.

A literatura, dessa maneira, pode ser representada como um grande banquete, onde as iguarias se multiplicam e o “gosto” literário da nova arte permite a escolha entre pratos tradicionalmente apetecíveis e pratos tabus que se totemizam conforme a pregação do "Manifesto Antropófago". Nada mais apropriado, na hora de reavaliar esse pensamento de sua juventude, que Mário de Andrade resolva fazê-lo num banquete, tão antropofágico quanto platônico.

O Banquete de Mário de Andrade deseja fazer uma reflexão séria sobre a arte de sua escolha -- a música -- e a sociedade de seu tempo. Praticando o que propõe, tal como Sócrates em seu banquete, Mário assume a critica. Melhor ainda, Mário preocupa-se em definir uma critica que funcione como instigação ao processo de "parturição no belo". As tradições devem necessariamente se relativizar de acordo com os valores sócio-temporais. E, para que a arte possa florescer, será preciso abandonar conceitos “puros” e assumir as diferenças, as heterogeneidades. Incorporar, aceitar, mesclar, açambarcar, colecionar, fazer simulacros é o caminho que ele aponta na já remota primeira metade do século XX.

Segundo Silviano Santiago, “a maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza” (SANTIAGO, 1978, p. 18). Rasgando os véus dos discursos imperialistas e das justificativas do Deus Mercado, Santiago chama a atenção para a necessidade de uma critica que compreenda que as influências são dinâmicas e que ocorrem a partir de qualquer vetor. Uma critica voltada apenas para o passado, para a origem, despreza o valor do presente e subestima a capacidade artística do futuro.

Nas refeições apresentadas, onde as personagens merendam e se digerem, debate-se a questão das influências. Entre as iguarias, o que se destacam são as transgressões cometidas. Longe de se interessar apenas “pela parte invisível do texto, pelas dívidas contraídas pelo escritor” (SANTIAGO, 1978, p. 28) os textos nos revelam que é preciso descondicionar o leitor e ensiná-lo a aceitar o jogo do texto — aquilo que nos faz desejar continuar como participantes do jogo, mas que nos permite, também, observar com olhos críticos as imposições a que a sociedade de consumo nos submete:

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão, — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino americana. (SANTIAGO, 1978, p.28)

Com este brilhante final, Silviano Santiago revela o entrelugar do discurso latino americano, porém, o que testemunhamos hoje, é que esse “entrelugar” passou a pertencer não apenas aos países submetidos às influências econômicas das metrópoles, mas às próprias metrópoles.

Como aponta Lívia Reis, “a partir da década de 60, a cultura da América Latina assume a heterogeneidade de sua identidade e convive, de forma também heterogênea e complexa, com a globalização internacional” (REIS, 2009, p.103). Vivendo numa era de cada vez maior penetração midiática e de extrema instabilidade econômica, as novas necessidades das leis de mercado preferem apagar os traços “nacionais” para criar apenas uma nação, o “consumo”. Curvados a essa necessidade de precisar ser produto para ter valor, os escritores já não se angustiam mais com a legitimidade, mas com sua legibilidade ou palatabilidade. Nos caminhos da literatura encontramos, agora, textos que já não podemos mais reconhecer como brasileiros, somalis, ou franceses, nem sequer pela nacionalidade de seus autores. Os mais recentes ganhadores de prêmios Nobel e Goncourt nos revelam essa dificuldade de catalogação: Marie Ndiaye, John Coetzee, Le Clézio, a que nicho cultural pertencem? A que tradição se filiam? E qual o gênero em que escrevem?

Nos ensaios, gênero que volta à moda em nosso novo século, os autores podem se permitir uma voracidade maior. Nas obras romanescas dos autores citados encontramos trechos que, claramente, pertencem ao gênero ensaístico e que confundem os leitores que se inquietam, sem saber se estão lendo obras de ficção ou textos de estudo critico ou mesmo ensaios políticos, ou até denúncias. Mas, consumidores bem adestrados, nos submetemos ao estranhamento e embarcamos na leitura destas obras com uma aguda consciência de jogo, entregando-nos à possível “fruição”, se não nos é possível encontrar o mais fácil “prazer do texto” (BARTHES, 1987). Afinal, se não podemos passear pela África, podemos enganar nossa sede de aventura com um novo videogame ou com um simulacro de safári num parque Disney. O importante é estarmos antenados e capacitados a reconhecer que, vivendo num mundo cada vez mais globalizado, nosso entrelugar agora se situa no “não lugar “ (ORTIZ, 2006, p.105-106) das marcas e produtos, encruzilhada dos espaços e do tempo.

Referências:

ANDRADE, Mário. O banquete. (1974)

––––––. Contos Novos.(1947)

–––––––. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.(1928)

ANDRADE, Oswald. “Manifesto antropófago”.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987. Col. Elos.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. 7ª reimpressão.

REIS, Lívia. Conversas ao Sul. Niterói: EdUFF, 2009.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva : Secretaria da

Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.

TROUCHE, André Luiz Gonçalves. America: história e ficção. Niterói: EdUFF, 2006.

VASCONCELOS, José. Ulises Criollo.

Tuesday, July 27, 2010

De Lua.

A casa se esvaziou e com ela a minha cabeça. Trabalhei, inspecionei, me emocionei e depois entrei numa espécie de limbo, como se a vida tivesse parado. Resultado, esqueci. Esqueci compromissos, esqueci o que tinha que fazer, esqueci onde coloquei os achados, esqueci de olhar, esqueci. Por isso não fui ao concerto, não fui ao lançamento, coisas que estavam marcadas na agenda. Por isso não escrevi no blog esta semana. Por isso fiz coisas inesperadas. Revi ballets, fui ao teatro, encontrei amigas que moram em outro país… Mas tudo me parece feito por uma outra pessoa, não pela Lúcia certinha que sou. Procuro me centrar, de novo. Me reencontrar. Me organizar.
Em primeiro lugar, dirijo-me logo à T.T., que tem sido assídua em suas leituras: Achei fotos nossas: você, papai e eu. Achei e já perdi de novo, guardadas que foram num cantinho de meu quarto de guardados. Mas em agosto, depois da Flip, pretendo arrumar tudo aquilo e aí te chamo para vermos as fotos juntas, sim?
Depois converso (virtualmente, como sempre) com os leitores. Como a T.T. tem lido posts antigos e comentado, sou obrigada a revisitá-los. Então me surpreendo, acho que a qualidade das coisas que postava era melhor antigamente. Agora tenho sido tão banal… falo de mim e das pequenas misérias cotidianas, coisas absolutamente sem graça. Peço desculpas a todos. Minha intenção é melhorar. Depois de hoje tentarei voltar a ser um pouco mais interessante. Vou procurar comentar as coisas que alimentam meu espírito e não as banalidades que preenchem meus dias.
Posso dar um exemplo: comentar a foto da lua cheia, estampada no jornal de hoje. Será que podemos acreditar na foto? Será que a lua apareceu assim enorme, espetadinha nas cruzes do alto das torres da igreja da Penha? Há muitos anos atrás, quando ainda lia fotonovelas (uma forma de arte que infelizmente desapareceu), li que nas Bahamas a lua aparecia muito maior que em qualquer outro lugar do planeta, e por isso lá era o lugar ideal para se passar Lua de Mel. Eu, que achava que a lua era um satélite bem comportado, me admirei com isso. Seria possível? Passei a prestar mais atenção na Lua, que se apresenta de maneira diferente no hemisfério Norte. E que tem belezas insuspeitadas em certas épocas do ano. Nosso inverno, sem dúvida, nos proporciona noites mais belas que as de verão. No casamento da Luíza, em Santa Teresa, assistimos ao nascimento da Lua, saindo com trajes de ouro de dentro das águas da baía de Guanabara, como uma esponja que tivesse crescido de tamanho ao absorver um pouco do mar. Depois, imperceptivelmente, ela foi secando, ficando cada vez mais prateada e brilhante, subindo aos céus, mas deixando, generosa, um rastro luminoso que fazia do mar uma estrada de luz. Foi uma cerimônia linda, de ficar na memória de todos. Todos? Quem sabe? Ficou na minha memória, mas talvez eu tenha sido a única a guardar alguma lembrança da Lua naquele dia. Outros lembrarão do sapato apertado, outras, da dança com o namorado. Um lembrará do gosto do beijo da amada, outro, do gosto dos canapés. Talvez eu tenha sido a única a desviar meus olhos do casal que jurava amor eterno enquanto durasse, para ver a Lua que desfilava sua mutável beleza.
Porque somos assim, nossa memória é pessoal e intransferível. Converso com amigas que têm irmãos e irmãs e que me contam que as memórias deles são desiguais, conflitantes, até. Eu não tenho nada disso. Ninguém para corroborar ou corrigir meu passado. Pais mortos, avós mortos, só me sobraram as fotos. Algumas se repetem, insistentes. Cinco ou mais cópias do mesmo instantâneo ou da mesma pose que alguém achou por bem mandar fazer. Um álbum de fotografias que pretende organizar o passado em ordem cronológica, mas que se perde com as fotos soltas que, aos poucos, foram subvertendo aquela organização. Fotos quase apagadas e fotos retocadas, que modificam e endurecem sorrisos espontâneos, ou suavizam caras amarradas.
Não devemos confiar nas imagens, que nos enganam já que desejamos ser enganados por elas. A Lua que não vi em minha Lua de Mel estará sempre presente nas minhas recordações, prateando meu passado. A Lua equilibrada nas torres da Igreja da Penha talvez reapareça em alguma história que eu conte, pois, mesmo duvidando de sua autenticidade, a beleza da foto me faz ficar refletindo sobre ela.
Tudo vai depender da memória, e essa, como todo mundo sabe, é tão inconstante como a Lua.

Saturday, July 17, 2010

Quatro anos?

Nossa! por conta de alguma bobagem que fiz por aqui, houve queixas de que os comentários não estavam sendo publicados. Tentei consertar, não sei se consegui. Mas, como tive que prestar atenção nos posts, percebi que iniciei este blog em novembro de 2006! Naquela época não entendia nada de blog e até hoje continuo entendendo praticamente o mesmo de antes. Desculpem os amigos. Vou ver se descubro um curso para blogueiros iniciantes, para ver se melhoro um pouco meu desempenho.
Acho que foi no ano passado que, em algum instante de iluminação, descobri um contador de visitas para colocar no blog. Pois já conto com mais de 17 mil visitas desde que marquei o contador. Obrigada a todos!
Em novembro, no aniversário do blog, vou ver se tenho alguma ideia genial para animar isso aqui. Festa virtual! Será que existe videoblog? Seria legal, não?

Lá se vão os dias…

Quando vejo que meu último post foi no dia 9 de julho, me assusto. Onde foram os dias? Tão ocupada ando que nem percebo que o tempo vai passando, sem se deter. No entanto, sinto como se tivesse caído num daqueles bolsões do passado: fotos, antigos documentos, retratos e lembranças. Quem era este aqui? Sabe que não sei? Fico na dúvida se seria um ou outro dos meus filhos, atordoada por revê-los tão pequenininhos, do tamanho de botões… Não sei como eles cresceram, se transformaram, e, no entanto, continuam os mesmos. E daí que nem prestei atenção nas datas: 9 de julho - festa argentina; 14 de julho - festa francesa (será que esse ano dançaram o cancan no forte Copacabana?); segunda seria meu aniversário de casamento; no dia seguinte é o aniversário de meu filho… E eu assim alheada a tudo, correndo para cima e para baixo, abrindo malas aqui, vendo apartamentos ali, desmontando definitivamente o palácio onde vivi minha vida de princesa muito amada, mas sem pena, sem dores, com a esperança de que a próxima habitante da casa seja tão feliz quanto eu.
Peço desculpa aos leitores e amigos, que porventura passem por aqui para dois dedos de prosa. Depois escrevo com mais vagar. Agora fico tentando me organizar no meio do vórtice e sucumbo.
Obrigada a todos os que têm chegado aqui e deixado mensagens. Tenho ficado feliz com suas palavras, encantada com suas visitas. Obrigada, T.T., pela paciência de percorrer estes escritos do passado. Um beijo virtual em cada um de vocês!