Wednesday, November 14, 2007

Esse é melhor que o último

Sinceramente, o segundo capítulo é só para mostrar que a heroína é meio chatinha e convencional em sua escrita. Nos diálogos ela é bem mais interessante. Acho que é porque ela tem estímulo, troca. Quando a gente "reparte", ganha mais do que dá. A solidão além de ser meio brochante, também é estéril. Porisso agradeço muito os comentários (obrigada, Vera Helena, parabéns para sua mãe!) por que eles me orientam. Antes de lerem este novo capítulo, que é mais divertido, alegrem-se comigo pois recebi meus livros da Galiza. Vou ter muito o que ler nos feriados, viva! E, como eu suspeitava, o nome do livro do Manuel Rivas é Que me queres, amor? Tic-tac é mesmo do Suso de Toro. Depois conto das minhas leituras para vocês. Agora vamos à novela:

Capítulo III

Que horas são aí?

Cedo.

Muito cedo?

Muuuiiito cedo.

Desculpe, mas se não ligasse ia ficar doida! Já faz dois dias que não falo outra coisa que não seja “prego” e “burro”.

Então vai falando enquanto eu durmo mais um pouquinho...

Não brinca, cara. Estou na pior mesmo. Mas, se você quiser, ligo mais tarde.

Não, agora tá bom. Tinha que acordar cedo, mesmo. E assim é melhor, pois posso falar sem interrupções. A mala chegou?

Chegou.

Você tem escrito?

Um pouco.

O que é que você tem feito?

Andado por aí. Já visitei a Catedral, a Igreja de Santa Maria della Salutte, dois museus, Murano, Rialto, mais vinte e cinco outras igrejas cujos nomes já confundi.

Passeou de gôndola?

Passeei.

E o gondoleiro? Não te inspirou?

Ele tinha a cara de meu tio Alfredo. E o mesmo olhar sacana prás minhas pernas!

Não dava para escolher outro?

O outro tinha a cara do jornaleiro lá da Rio Branco. Aquele que está sempre mau-humorado.

Poxa! O que aconteceu com aqueles gondoleiros bonitões que a gente vê nos filmes?

Estão todos fazendo figuração nos filmes americanos passados em Veneza. Só esta semana vi cinco sets de filmagem diferentes. Para onde a gente olha vê uns panos esticados para tirar o reflexo das luzes. Nunca vi uma luz para tremer tanto como aqui em Veneza. Deve ser da água.

E os palazzi? Já visitou algum?

Ainda estou esperando o convite do Doge... Mas já visitei as masmorras. E passei pela ponte dos suspiros...

Você está chorando?

Devia?

Faz o seguinte: vou te dar uma tarefa: Vá de novo a Murano e compre um presente para mim. Mas não quero tacinha, copinho, bichinho... Você está encarregada de comprar uma coisa inusitada. E não pode custar mais de cinco euros.

Missão impossível II.

Qual é a um?

Escrever uma história de amor. Eu não sei amar! Sou racional demais, descrente demais, velha demais, deprimida demais.

Ah, bom. Deprimida eu até acredito. O resto descarto.

Mas não devia. Você alguma vez me viu apaixonada? Até no dia do meu casamento, me diz, eu estava apaixonada?

Acho que você pensava que estava.

Pois é. Pensava. Pensava mas não estava. Aquela coisa morna e burguesa que foi o meu casamento não tinha nada a ver com paixão.

Talvez não. Mas acho que era amor.

Ah, Fábio. Estou cansada. E com fome. Com vontade de comer bife, de comer comida de casa. E me sentindo gorda, entupida de massa e de tiramisu, de café e de sorvete.

Então,quando você voltar, eu não te levo a nenhum restaurante prá comer escondidinho, viu?

Sabe qual é o problema com você? Você sempre acha que pode resolver minhas aflições com suas brincadeiras. Você não entende o que é uma mulher se sentindo gorda e solitária num fim de mundo!

Que fim de mundo? Você está em Veneza, porra! E aposto que não está gorda. Deve ser só retenção de líquido, não é isso? E eu, que te conheço tão bem, sei que você não é do tipo solitário. Você tem essa coisa de repórter, que te faz sentir em casa logo à primeira olhada. Você olha e já sabe a quem perguntar, com quem conseguir a entrada, quem é que vai render boa história...

Por falar em história...

Que é que tem?

Você leu?

Leu o quê?

O texto que eu te mandei por e-mail. Você não disse nada, nem que recebeu. Mandei as páginas para você e foi o mesmo que mandar numa cápsula para a Lua!

Li, assim, por alto. Não tive tempo de ler muito bem.

O que é que você achou?

Tá legal... informativo.

Legal? Informativo? Como é que você pode usar esses adjetivos para uma história de amor?

Bem, acho que não entendi. Ou não li tudo. O que você mandou não era seu diário de viagem? Aquele texto tá parecendo um trecho de diário. Híbrido de guia de viagem. Assim, meio Peter Mayle, sacou? Experiências pessoais com dicas úteis e engraçadas. Ou tristes, no caso.

E pensar que eu liguei para você para me animar! Você arrasou com o meu texto, cara!

Arrasei não. Disse que está legal.

O que você disse é que é um híbrido – híbrido, meu Deus! – de diário com guia de viagem.

E daí? Disse que é meio Peter Mayle, e eu adoro Peter Mayle.

E desde quando eu quero ser comparada com Peter Mayle? A proposta dele é outra, totalmente diferente. E estou escrevendo uma história de amor!

Me desculpe, mas não tem nem uma gotinha de amor naquele texto. A não ser que você conte as figuras de Arlequim e Colombina...

Arlequim? Colombina? Você surtou? Onde é que você viu esses dois no meu texto?

Bem ali na placa do seu hotel.

Mas isso é placa, não é personagem. Não falei nada de Arlequim e Colombina.

Pois é, se tivesse falado, talvez já tivesse engrenado numa história de amor. Você só falou de avião, estação de trem, essas coisas. E usou uma linguagem... Como é que você pode pensar em usar uma frase como “ruído característico de placas de metal se entrechocando” dentro de uma história de amor? E: “onde toda a Europa parece convergir numa tentativa infrene...” Você acha que leitor de história de amor vai querer pegar dicionário para descobrir o que é infrene? Aliás, você sabe o que é infrene?

Acho que quer dizer o mesmo que desenfreada...

E sua insistência em falar de odores corporais? Quem é que ama sem se lavar primeiro?

Napoleão.

Quê?

Napoleão. Você não perguntou quem? Eu respondi. Dizem. Na verdade, não dizem, existem as cartas dele para a Josefina, para provar.

Provar o que?

Provar isso. Ele avisava que estava voltando, e que era para ela não se lavar... O tal do “odor di femina” o excitava.

Isso é verdade?

Tá nas cartas dele para ela. Se ela se lavava ou não, isso não sei. Vai ver que foi por isso que ele acabou se separando dela. Preferiu a austríaca, com seu cheirinho de chucrute. Josefina, como boa crioula, devia tomar banho todos os dias.

Josefina era crioula?

Crioula de nascimento. Nasceu aqui nas Américas, numa possessão francesa. Quem nascia nas Américas, branco ou não, era crioulo.

Deve ser o feromônio.

Agora quem tem que ir para o dicionário sou eu.

É um chamativo sexual que existe nos cheiros das pessoas. Quanto mais a pessoa solta feromônios, mais atraente ela é considerada.

Tá. Então vou desligar, e escrever uma história cheia de feromônios. Quem sabe não consigo publicá-la numa revista de Medicina? Deve ser muito melhor do que meu “híbrido”, não é assim? Entre híbrido e feromônio... Olha aqui, tchau! Tenho mais que fazer do que ficar escutando bobagens.

O que é que você vai fazer?

Escrever outro texto, né? Ou você acha que aquele tem alguma esperança?

A situação era boa. Um suspense: Chegada a Veneza, hotel chinfrim, porta descascada... Cria um suspense.

A porta não é descascada. É manchada. E não estou escrevendo conto de suspense. Estou, supostamente, escrevendo um romance de amor. E é o que vou fazer. Mas antes vou sair e comer alguma coisa. Estou faminta.

Então checa os garçons. Quem sabe tem algum que se aproveite?


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