Thursday, December 12, 2013

Conto de Natal - 2013

Como vocês sabem, adoro escrever um conto de Natal a cada ano. Este ano não foi diferente. Comecei na semana passada, mas os compromissos de dezembro, o Facebook e o meu vício em paciência foram me atrasando, e só ontem coloquei o ponto final na história. Quando comecei a escrever, os dias eram de sol, no entanto. E espero que nosso Natal não seja chuvoso, nem triste. E que todos tenham, em seus corações, um pouco deste espírito natalino que cada vez é mais difícil de encontrar. Paz na Terra entre os seres de boa vontade!
Aqui vai ele, espero que gostem!


Wet Christmas - Natal 2013
Lúcia Bettencourt

A rua inquieta, tomada pelos carros impacientes, atrasados reluzia molhada. Vista da janela do apartamento, assemelhava-se a uma fileira de luzes natalinas, piscando: Vermelho, amarelo, verde, vermelho, vermelho…
Um ritmo se impunha. Os carros se movimentavam, depois paravam outra vez, quase no mesmo lugar. Buzinas diziam, em código, frases desaforadas. Vermelho, vermelho…
Olhos, luzes, corações, vida, tudo pulsava no mesmo ritmo. Os sinais mudavam suas cores, os carros não saíam do lugar. Outra vez as buzinas gritavam impropérios,: alguns longos, mais altos; outros roucos, cansados. Vermelho, vermelho…
As luzes de uma sirene giravam, esperançosas, mas ela reprimia seu canto. Apenas vez por outra, quando o sinal mudava de cor, ela ensaiava um gemido. Alguns carros tentaram abrir caminho, mas o espaço entre eles não permitiu manobras, e permaneceram todos nos mesmos lugares, apenas um pouco mais desalinhados. Vermelho, vermelho…
A chuva voltou a cair, violenta. Os pingos ressoavam nos tetos e davam urgência ao ritmo dos alertas e sinais. A água começou a subir, os corações aceleraram. Vermelho, vermelho…
Com a rua metamorfoseada em rio, as calçadas sumidas sob ondas sujas, a esperança de chegar em casa a tempo da ceia começou a falhar. Um relâmpago anunciou a queda de um raio e, logo em seguida, uma trovoada longa estremeceu o ar. Num estertor, as buzinas todas clamaram, mas foram engolidas pelo novo trovão, irado, acompanhando os raios que caíam próximos. Vermelho, vermelho…
Vista da janela, a rua se apagava debaixo da cortina d’água. Ali, dentro do apartamento, havia um perfume de coisas gostosas. A mesa estava posta com capricho e fartura. Os pés da dona da casa caminhavam no seco, e os saltos clicavam no ritmo da impaciência de quem percebe que os convidados irão se atrasar.Vermelho, vermelho…
A árvore de Natal piscava suas luzes. De repente, mais um clarão seguido por um formidável trovão que pareceu estilhaçar a abóboda celeste. Seguiu-se uma súbita escuridão e gritos, sustos. Vermelho, vermelho…
Na rua, os carros sustentavam a iluminação, suas luzes agora pareciam mais intensas por falta das lâmpadas dos postes e sinais. A dona de casa olhou pela janela enquanto, com dedos trêmulos, tentava acender as velas do arranjo natalino. Vermelho, vermelho…
Alguma coisa aquela luz insistente queria dizer. Era preciso fazer algo, diminuir a sensação de pânico, de tragédia. Afinal, era noite de Natal. A chuva melhorava, já era possível ver os carros, meio submersos pela rua/rio que impedia a passagem de todos. Alguns veículos tinham se apagado, mas a ambulância ainda ostentava as luzes da sirene, hipnóticas. Vermelho, vermelho…
A mulher tirou os sapatos elegantes, foi para a cozinha procurar alguma coisa que lhe pareceu essencial naquele momento. Ansiosa, abriu gavetas e armários, juntou coisas, cortou, encheu, separou. Na cozinha escura, iluminada por velas, o tempo parecia correr mais rápido, pulsando no ritmo das luzes fracas que vinham da rua. Vermelho, vermelho…
Com tudo arrumado, ela ainda lembrou de tatear embaixo da árvore de Natal, tirar as luzes da tomada, retirar as caixas dos presentes, juntar tudo num enorme saco de lixo. Lá fora a chuva já havia parado, mas as águas se agitavam em ondas. A mulher saiu do apartamento, carregada de sacolas e caixas. Começou a descer as escadas, ruidosamente. Alguns vizinhos escutaram os ruídos inusitados, abriram as portas, temerosos. Ao compreenderem o que se passava, foram se unindo a ela. Vermelho, vermelho…
As lâmpadas de emergência deixavam espectrais as faces de todos. Mas o número de pessoas descendo as escadas foi aumentando, e os sons tornaram-se risonhos, animados. Lá embaixo, os porteiros de plantão ajudavam homens, mulheres e crianças, calçando galochas e capas de chuva, equilibrando sombrinhas e embrulhos, portando lanternas, toalhas, e grandes caixas pesadas em cima de carrinhos de feira, carrinhos de supermercado, de bicicletas. Vermelho, vermelho…
As pessoas se espalharam entre os carros, e batiam nas janelas embaçadas oferecendo as coisas que traziam em  seus recipientes. As ceias de Natal repartiram-se com aquelas pessoas ilhadas, famintas, cansadas. Criancas chorosas saíam de dentro dos carros para braços solícitos que lhes davam o que beber, o que comer. Esquecida, a sirene continuava a girar: Vermelho, vermelho…
As águas se escoavam, já era possível abrir as portas dos automóveis. O movimento entre os carros se multiplicou. Pessoas de outros prédios se juntaram aos moradores do primeiro, todos os carros foram confortados com aquela celebração improvisada. Aqui e ali ouviu-se o espoucar de uma rolha, os ruídos alegres de brindes, e vozes desejando benesses. A mulher que havia iniciado o movimento chegou à ambulância, fechada e quieta, no meio da festa que se formara na rua. Lá dentro, inquietantes ruídos abafados escapavam. Vermelho, vermelho…
A mulher ficou olhando a luz da sirene, girando, inútil, como uma estrela ensanguentada. Em suas mãos, as ofertas que trazia começaram a pesar, e ela sentiu o coração aflito. O relógio marcava quase meia-noite. Outras pessoas notaram sua imobilidade frente à ambulância fechada, e agruparam-se ao redor do veículo, cuja luz pulsava revelando seus rostos preocupados. Vermelho, vermelho…
Ouviu-se um grito agoniado, quase um uivo. Depois o silêncio reinou por instantes que pareciam congelados. Finalmente, a porta se abriu, e um enfermeiro, cansado e sujo de sangue apareceu,  Vermelho, vermelho…
Nos braços ele segurava uma criança que emitia seus primeiros vagidos. Alguém começou a cantar uma velha canção, baixinho: “Noite feliz”… Logo, todos cantavam. Era meia noite.  Trocaram-se presentes, abraços foram dados, mãos apertadas, faces beijadas.  A sirene, exausta, girava cada vez mais lentamente. Vermelho, vermelho…

Ela também improvisava e se transformava numa estrela anunciando vida. Vermelha, quente, pulsando como a emoção que tomava a todos naquele auto de Natal inesperado…