Saturday, November 27, 2010

Apolíneos e dionisíacos

Quem, como eu, cursou a Faculdade de Letras, está familiarizado com os conceitos do título. Resumindo, muito brevemente, existem artistas ligados ao equilíbrio e racionalidade do deus Apolo e outros ligados à desordem e instinto do deus Dioníso. Este era um deus importado da Ásia, o deus do vinho, e tinha como séquito fiéis inebriados pela "seiva da terra". Apolo era o deus da Luz, que para os gregos era sinônimo de conhecimento, inventor da poesia, e, com sua lira, dava sentido ao mundo.
Estou me dividindo entre ídolos apolíneos e dionisíacos desde que julguei ter entendido os conceitos. Ora sou totalmente fascinada pelo lado apolíneo de Cabral e de Drummond, ora me deixo embarcar na embriaguês condoreira de Castro Alves. Seja eu apaixonada por Vieira ou por Machado, fique eu sob o domínio de Oswald ou de João do Rio, acontece que sou sempre inconstante e gulosa, ansiando pela ordem na desordem ou pela paixão na lucidez.
Esta semana foi interessante, já que consegui, acidentalmente, reunir as duas "pontas da vida". Segunda feira, munida de um livro de Rimbaud, embarquei para São Paulo, para assistir ao show do Paul McCartney. Confesso: foi meu primeiro show. Nunca tinha ido assistir a nada do gênero, nunca fui ao Maracanã para ver Rolling Stones, nem ao Circo Voador para assistir Cazuza. Sou tímida. Tenho uma leve sensação de pânico em locais onde se concentram muitas pessoas. Mas era Paul McCartney, ele tinha sido um dos Beatles, e eu de repente me descobri menina e inconsequente. Lá fui eu. Na enorme e incompreensível cidade, que se recusa a desvelar sua geografia a uma carioca que se orienta pelo mar, lá estava eu, com frio, debaixo de chuva, esperando um táxi que me levasse para o Morumbi. Consertei o frio, comprando um casaco. Afinal, meu hotel era na Oscar Freire. Mas a chuva e a falta de táxis pareciam mais difíceis de resolver. Contei com a sorte, e graças a ela consegui táxi e uma hedionda capinha de chuva, daquela vendidas em sinal. Depois, já no estádio, sentada em minha cadeirinha azul, vi a chuva cessar, o estádio se encher de gente e de vendedores ambulantes que me ofereceram todos os tipos de churros. Churros? É, churros, recheados de chocolate e de doce de leite, envoltos em açúcar e canela, churros gorduchos e melados cuja visão me provocava engulhos. Cestas e mais cestas desciam as escadarias repletas e voltavam vazias, testemunhando a preferência paulista pela iguaria. Até o show começar, porém, eu me perguntava se haveria paulistas ali naquela plateia. No avião que fui para SP as camisas estampavam o rosto de Paul, sozinho ou acompanhado por seus ex parceiros. Estariam eles comendo churros?
Quando o show começou, percebi que Paul deve ser o único roqueiro apolíneo que conheço. Impecável, arrumadinho, simpático e inteligente, ele comandou o show com eficiência matemática. Cantou o que quis, como quis, fez as homenagens que julgou devidas, tirou o paletó e lá ficou ele com sua camisa branca, suas calças seguras por um suspensório, sua peculiar maneira de marcar o ritmo com as pernas juntas. Regeu a platéia em improvisos, revelou uma forma física invejável para sua idade. Aguentou uns quinze minutos de palco sozinho, com um violão e sua voz. Pirotecnia? Teve aqueles manjados fogos de artifício quando ele cantou Live and let die. Digo que são manjados porque até em kick-off de empresa eles são utilizados. Mas fazem efeito, sobretudo numa noite paulista.
A plateia me convenceu de que era mesmo paulista. Ao meu lado, ninguém dançou, ninguém deu gritos histéricos e os que cantaram, estavam um pouco mais afastados. Resultado: encabulada, eu também não dancei, não perdi a voz gritando nem mesmo cantando. Cantarolei baixinho, sorri muito para minha vizinha, Vera, que me perguntou se eu tinha assistido o outro show que ele tinha feito no Pacaembu. Eu nem sabia desse show, confessei. Ela me consolou, dizendo que eu era muito novinha para saber. Tive que concordar. Como vocês já sabem, eu estava ali com onze anos de idade apenas.
Não tenho termos de comparação, uma vez que esse era meu primeiro show de rock. Mas nada do que eu esperava aconteceu. Nenhum excesso. Nenhuma confusão. Tudo absolutamente ordenado e era o próprio deus Apolo que cantava com suas muitas liras no palco. Nunca vi tanta guitarra junta. Era a tradicional, que parece um violino de cabo comprido. Era uma com florzinha. Era outra de duas cores, era violão, era triangular… perdi as contas. Teve piano. Teve teclado psicodélico. E imagens, muitas imagens projetadas no telão, para que alguém pudesse ver alguma coisa dele. E para que todos pudessem relembrar os instantes de loucura do passado. A distância deixava todos (e tudo) minúsculos.
Mas adorei o show. Pode parecer que não, devido à minha perplexidade com essa ordenação toda. No entanto, adorei.
Só que, não esqueçam: fui para SP com um livro de Rimbaud. E existe poeta mais dionisíaco que Rimbaud? Apregoando o desregramento total de todos os sentidos, desafiando tudo e todos, o adolescente Rimbaud me fascina, principalmente por seu contraste com o Rimbaud posterior, o comerciante taciturno, o doente terminal sofrendo dores atrozes, mergulhando mais uma vez na paz da morfina. Altos e baixos. De um lado o "príncipe feliz", de outro "o mais infeliz dos poetas". Sangro com Arthur, o jovem cujo talento só foi reconhecido tarde demais. Sofro com o envelhecido Rimbaud, amargo e seco, cuja vida se extinguiu em meio a tantos sofrimentos. E escuto a voz forte e educada de Paul McCartney, me maravilho com sua musicalidade, com sua disciplina, e me pergunto: a quem pertence o mundo, afinal? Apolo ou Dioniso? Devemos embarcar com um ou alçar voo nas asas do outro?
Mas, será que precisamos escolher?

Saturday, November 20, 2010

Raios de sol

Um sábado (quase) de sol, que alegria! O Rio fica tão mais lindo, com sol, parece outra cidade. Perdão por repetir chavões, mas é impossível resistir. Comparo o Rio chuvoso e o Rio ensolarado com a TV, preto e branco e colorida. Se existe charme e encanto em assistirmos alguns filmes em preto e branco, olhar diariamente para o mundo sem cor acaba nos cansando.
Mas não vim escrever sobre isso, e sim sobre raios de sol metafóricos, que invadem nossas vidas e nos iluminam e aquecem. Hoje, por exemplo, vibrei de alegria ao ver que o livro Ficções do Desassossego, da Lucia Helena, foi resenhado no Prosa e Verso. Essas resenhas são "certificados de batismo" dos livros que escrevemos. Muitos seguem seus caminhos pagãos, outros são abertamente muçulmanos ou judeus, ou até budistas. Na verdade, nenhum livro depende dessas "certidões" para desenvolverem suas vidas saudáveis e longas, ou breves e fúteis. Mas que pai, ou mãe, não vibra com a cerimônia de batismo, de apresentação ao templo, de seja lá qual for o rito de pajelança, budista, taoísta, de candomblé, muçulmano ou judaico de sua tradição? É uma festa, mais ou menos modesta, mais ou menos concorrida, e é sempre uma alegria. Parabéns à autora e à sua resenhista.
Mais raios de sol? São muitos para comentar. Ontem fui ao lançamento do livro do Claufe Rodrigues e me diverti com a brincadeira que ele propôs: fomos gravados, usando adereços e fantasias, lendo um poema de seu livro. Um garotinho, de peruca black power e óculos metálicos, leu, tropeçando um pouco, um dos poemas do amigo da mãe. Esta, com uma peruca chanel rosa shocking e óculos de estrela, sem esquecer de uma tiara de princesa, leu o seu poema revelando uma voz educada e treinada, coisa de artista. Cada qual com sua fantasia: um poeta colocou um chapéu de cowboy dourado (suponho que pertencesse – o chapéu – ao set de Brokeback Mountain). Uma romancista apelou para longos cabelos cor de rosa. Eu optei por um boá vermelho. Os óculos são os meus, obrigada que sou a usá-los. Depois fui embora, pois as amigas queriam conversar e lá no estúdio improvisado era proibido.
Muitas manifestações de carinho e de saudade, um jantar embalado por conversas interessantes, foi uma noite de raios de sol refletidos na bela lua que enfeitava o céu.
Mas, ainda tem mais. Segunda-feira vou a SP, ver o show do Paul McCartney. Consegui o ingresso, comprei passagem de ida e volta e… mais nada. Ontem me dei conta de que vou precisar de um hotel para pernoitar. Claro que, nos que ficam próximos ao estádio, não consegui lugar. Vou, após o show, atravessar toda a cidade de SP. Isso se conseguir um táxi. Ou ônibus. A pé sei que não chegarei lá. Fui ver no google a distância e percebi que precisaria de uns dois dias e meio para chegar ao meu destino, por isso rumarei, caso não consiga condução, diretamente para o aeroporto. Mas acham que me preocupo? Quem vai ver show de Paul McCartney tem a idade mental de seu encantamento. Na segunda voltarei aos meus tenros 11 anos. Duvido que ele cante She loves you yeah, yeah, yeah, mas, seja lá o que ele cantar, eu saberei a letra. Foi assim que aprendi inglês, me esforçando para aprender as letras dos Beatles. Infelizmente, não vi o grupo junto. Mas verei o Paul, que espero não apareça no palco numa cadeirinha de rodas. Verei o Paul com os meus olhos de 11, de 12, de 18 anos. Foi um longo amor. 8 anos de devoção, de procura por recortes em revistas nacionais e estrangeiras que terminou com a violência por parte de minha mãe, que aproveitou uma viagem minha e esvaziou o armário. Lá se foram discos e recortes dos Beatles, meus livros do Príncipe Valente e a coleção de histórias que ganhei num prêmio de redação na escola. Até hoje sangro ao falar nisso. Imaginem, todos os seus tesouros roubados! Mas eia! Os raios de sol bailam no meu pensamento, e ainda tenho mais coisas iluminando meu fim de semana: Woody Allen e Lanternas Vermelhas. Amigas e família acompanhando. E uma história se desenvolvendo no computador, me entusiasmando.
Para terminar, ouvir uma amiga, falando de seu romance, me divertindo já que mostrava a ficção se construindo face à realidade. Obrigada. Estou ansiosa para lê-lo. Assim que sair, aviso a vocês, meus queridos leitores.

Sunday, November 14, 2010

Pequeno Nicolau, grande Saramago

Sessão dupla de cinema, na Laura Alvim. O pequeno Nicolau, que me provocou algumas boas risadas e me fez lembrar Mon Oncle, de que o Guilherme tanto gostava. E depois, José e Pilar, o documentário sobre a "quase" viagem de Saramago. O que mais me surpreendeu? a casa em Lanzarote. A própria ilha de Lanzarote. Varrida pelos ventos, coberta de nuvens, aparentemente desabitada, com aquela casa tão angulosa, tão despida, tão diferente da linguagem quase barroca do Saramago. Aquela casa é muito mais Pilar que José. Ou talvez muito mais um projeto para depois da "viagem". As patas do elefante.
Mas há belos momentos no filme, sobretudo quando a câmera nos oferece close-ups dos olhos de Saramago: uma mistura de medo e de sonho. Inteligentes, os dois cônjuges nem sempre nos encantam pelas suas tiradas. Na verdade, as palavras "inteligentes" o são muito pouco. Quando a gente fala com a emoção – e Doña Pilar que me perdôe – diz coisas mais belas, mais relevantes. Pode ser que mais piegas também, admito. Mas é muito mais relevante assistir a emoção de um autor vendo seu filme ser exibido e se emocionando com isso que assistir a senhora consorte a reclamar para si a palavra presidenta. Falta-lhe um pouco de sensibilidade linguística… Imaginem termos que passar a dizer a amanta, ao invés de a amante. Perde-se a tesão e o único resquício do particípio presente, o que tiraria a constância desse amor. Por isso humildemente me oponho a essa violência linguística. E isso para não falar nada da sua defesa da Hilary, e das pequenas grandes faltas de delicadeza que ela esbanja pelo filme.
Quem cresce ali é o Saramago. Em sua derrocada, ele vai crescendo, demonstrando uma força e uma elegância que nos admiram. E sua grande compaixão, qualidade que julgo encontrar nos escritores que mais admiro. O respeito pelo leitor e pela verdade que julgamos descobrir nos detalhes insuspeitados. Foi uma bela tarde.

Friday, November 12, 2010

Veredas…



De volta ao Rio, com fotos e novidades:
Começo com as fotos ao lado, tiradas no dia 10, pouco antes de meu embarque de volta ao Rio. Passear no Central Park no outono, num dia como anteontem pode ser uma das melhores coisas a se fazer em NY. A beleza das árvores, o contraste com os prédios, o friozinho que nos deixa meio elétricas, exigindo que nos movimentemos para aquecer um pouco, é um prazer que se sente com corações e mentes. Mas, principalmente, depois de ter, na noite anterior, tido o prazer de assistir Al Pacino no palco, representando o Shylock de Mercador de Veneza. Um grande ator (não em tamanho, que ele era o segundo mais baixo no elenco) exibindo, sem frescuras nem grandiloquências, sua arte. Ele estava tão perfeito que, por muitas vezes, me perguntei se ele não seria mesmo judeu. A expressão corporal era impressionante, ele parecia traduzir no corpo a essência do judaísmo. E era tão humano, seu "pathos" era tão legítimo, que fez que todos os outros personagens se tornassem artificiais, vazios, irritantes. Senti, com ele, as dores do preconceito, a raiva e o desespero, o desprezo. Seu último gesto na peça, depois de ser batizado à força, é levantar sua Kipah (como é que se escreve o nome do chapeuzinho usado pelos homens?) e, depois de limpá-la, recolocá-la em sua cabeça, não sem antes lançar um olhar expressivo, para os homens que se afastam, achando-se "os vencedores". Neste olhar havia tanta dor, tanta revolta, tanto orgulho, tanta sinceridade que, por mais que eu escreva aqui falando sobre ele, não conseguirei dizer tudo. Foi um pequeno flash, ele estava cabisbaixo, amparado por seus amigos, apenas recolheu a kipah (perdoem-se se escrevo errado) sacudiu-a e, ao levantar a cabeça para colocá-la de volta, olhou para os "bully" que se afastavam. Era o olhar de uma vítima de estupro. Foi impressionante. E depois ele saiu do palco e a peça continuou com o brilho das frases de Shakespeare, mas senti uma impaciência, era como se, depois de um drama, estivesse sendo obrigada a ver uma peça de jardim de infância onde nenhuma das crianças fosse minha conhecida. Acho que esse meu sentimento foi compartilhado. As pessoas na platéia se entreolhavam, como se se perguntassem: que erro foi esse de Shakespeare, continuar a peça depois que ela se acabou? Pois, na verdade, o Antônio se acaba ali naquele julgamento e a bela Porcia, tão inteligente, mostra que bem merece seu Bassanio: são dois fúteis! São visões do futuro, esses dois personagens, gente que se preocupa com fama e riqueza, e nada mais. O amor entre eles é muita atração sexual e cálculo, sentimento Zero!
Mas nem só de Broadway se faz uma NY, embora eu tenha feito a quase proeza de assistir 3 espetáculos desta vez: Além do Pacino, fui assistir Rain, o musical dos Beatles, que me fez regressar a um tempo em que todos os sonhos pareciam possíveis. E também Fella, sobre o líder africano do mesmo nome, com impressionantes danças negras que mostram as afinidades entre Bahia e África. Rita, baiana, ao meu lado, curtiu muito toda a coreografia.
Os museus foram apenas 3: Metropolitan, Natural History e o Discovery Center, onde estava a exibição de Tut Ankh Amun. Decomponho o nome na tentativa de recordar os significados que aprendi no cartucho, mas, de cabeça, só lembro do Ankh, o símbolo da imortalidade, quase irónico num faraó que morreu aos 19 anos de idade. Cheio de artefatos e de filmes, a exposição consegue criar a mesma expectativa da época, com a abertura da tumba do Rei Tut. Vamos sendo levados pelo Egito e acompanhamos os passos da descoberta da tumba: o jovem carregador de água que, ao cavar um buraco na areia dá com os degraus que levam à tumba, o encontro da primeira câmara, Lord Carnavon e sua filha correndo para o local, para a abertura da última câmara, o brilho da parede de ouro, que tira nossa respiração, a imensa presença do sarcófago e os seguintes, que acabam por revelar a extraordinária máscara de ouro do rei. Finalmente, a reprodução, em bronze, da múmia, a única no Egito que permanece em seu túmulo, que foi preparado cientificamente para preservá-la. E o filme da extração do DNA do faraó, que tem respondido a tantas questões da história. Para finalizar, um filme em 3D sobre Ramsés II, sua vida e o processo de mumificação. Adorei. Sem falar no convite para passar a mão no crânio do rapaz, também reproduzido em bronze.
São muitas as histórias. Ficam para depois.
Agora só falo do prazer de pegar o jornal de hoje e ler as notícias da parte científica: a leitura modificando nosso cérebro, o pensamento que pode nos levar à infelicidade, a impagável foto do Obama: ainda é muito bom ler o jornal em papel! E ler os livros em papel, também… Pois não resisti e comprei um monte ( na verdade, só uns quatro) E mais dois audiobooks, para escutar no carro (adoro!) Em resumo, a gente pensa que as viagens nos modificam, mas elas só nos tornam mais iguais a nós mesmos. Aqui estou de volta, mais Lúcia do que nunca!