Tenho ótimos amigos, e fico feliz com isso. Hoje estava apreciando a gentileza que um deles, o Márcio, me fez: gravou o programa Leituras do dia 20 de outubro, quando o entrevistado foi o Mia Couto, escritor de "minha devoção". Mia se diz poeta, e sem dúvida existe uma musicalidade poética em seus escritos. Mas o que ele é mesmo é um grande contador de histórias. Na entrevista isso fica bem claro: Mia encanta enquanto conta. Ele consegue sustentar toda a entrevista falando apenas de sua obra, mas remetendo a histórias paralelas, demonstrando o "palavra puxa palavra" que faz de uma conversa um prazer sem fim. Terminamos de ver o programa e não sabemos mais nada sobre o autor do que sabíamos antes. Temos a impressão de que ficamos sabendo muito sobre a obra, mas, quem já conhece os romances do Mia, sabe que ele apenas entreabre frestas e aponta caminhos para que nos percamos. Ele é assim: uma voragem. E, como toda voragem, apresenta uma superfície calma e enganosamente serena. Quando mergulhamos, somos sugados para um mundo desequilibrado, de tabus e possíveis transgressões. Falando de
O outro pé da sereia, ele desconversa de si e aponta para as fontes históricas -- para logo em seguida dizer que, como história, a que ele escolheu é marcada pela "construção": é um jogo de caixas chinesas. Abrimos uma tampa e encontramos uma outra caixa, mas, ao invés de irem diminuindo, essas caixas se ampliam, acabam por nos engolir. Subitamente percebemos que estamos dentro da história, nós, que nunca nem estivemos perto da África, que desconhecemos o Moçambique e seu presente, e lá estamos exatamente porque desconhecemos -- Somos como o personagem que se aproxima do Monomotapa: não sabemos o que nos espera, nem esperamos as mudanças que nos assaltam, pois nada nos modifica mais que o desconhecido. Um universo sem natureza é tão distante de nós quanto o planeta Marte.
Quando estava na Universidade de Barcelona falei sobre José de Alencar e Iracema. Acho que eles lá não sabiam que Iracema é um anagrama de América, e que não é um nome indígena. Muita gente não sabe, mesmo aqui no Brasil, as pessoas desconhecem isso, pois foi uma criação tão bem feita que ilustra, melhor que nada, o lugar da arte (A arte não é o reflexo do real, mas o real deste reflexo). A sereia de Mia, que precisa escapar de dentro de uma outra representação, é essa América que precisa sair de dentro de Iracema. Somente quando formos capazes de olhar as coisas pelo que elas são e pelo que elas não são, concomitantemente, é que podemos começar a compreendê-las.
Eu, que já não estou entendendo nada do que estou escrevendo, vou-me calando. Ou melhor, vou me despedir com um poema, dos meus. Espero que vocês gostem.
Nunca contemplei o Índico
Nem sei o significado da palavra
Azul
Que pronuncias.
Não tropecei na estrada
Abandonada
Nem chorei pelas dores
Que sentistes.
Tanto mar nos separa
E tanta terra
Só as nuvens do céu
É que conspiram
Nosso encontro.
Como é que penso
Que já te conheço,
E que me conheces
A lágrima
Não derramada?
Tuas histórias
Embalam minhas noites
E eu sonho os teus sonhos
E ofereço-te os meus.
Vou para a beira do mar
Oferto meus tesouros
Jogo as palavras n’água
Devagar
Deito-me sob as estrelas
E aguardo
Que as venhas buscar.
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