Monday, December 15, 2014

Conto de Natal, 2014


FELIZ NATAL


Era por volta de 11 horas e ela se ocupava na arrumação da casa quando escutou o ruído do plim do computador, avisando que tinha mensagem. 
Facebook!, foi o que pensou, mas, mesmo assim, não conseguiu deixar de olhar para a mesa onde havia criado um cantinho de trabalho, e onde seu laptop, mesmo pequeno, parecia agigantar-se. Ia ignorá-lo e terminar a arrumação, amorosa, dos enfeites natalinos. O plim voltou a soar, como se insistisse, e a fez levantar para silenciar os ruídos que pareciam perturbar a ordem doméstica. Olhou em torno, a casa já começava a tomar ares de lar. O apartamento pequenino, alugado às pressas naquela cidade estranha era jeitoso, mas extremamente impessoal. Seus esforços haviam transformado a sala num local um pouco mais hospitaleiro. A manta que jogara em cima do sofá quebrara a monotonia dos tons beges. As almofadas compradas em brechó acomodavam seu corpo com uma maciez que os assentos recusavam a ofertar. Na mesinha de centro, os livros começavam a se apossar dos espaços livres. Na prateleira, mais livros, e dois porta-retratos, com fotos dele.  Um tapete estendido sobre o piso frio permitia que ela sentasse no chão, e até mesmo deitasse ali, em frente à TV, sem acompanhar os programas, mas valorizando as vozes que se revezavam em dizer coisas que não a interessavam. Aqueles sons humanos a tornavam menos solitária e a embalavam num sono insatisfatório, apressado, sem entrega. A mesa de jantar, minúscula, tinha sido promovida a escrivaninha. Fazia as refeições no balcão, que separava o que era chamado de cozinha do que se apresentava como sala.
Agora, o verde da árvore, pequenina mas viva, alegrava e perfumava o ambiente. Cheirinho de pinho, de mato, aquele era um dos prazeres do Natal. No topo, a estrela que ela mesma fizera com papel laminado, se entortava, imperfeita. Ela sorriu, condescendente: Está tortinha, mas está linda! Não sabia se dizia as frases em voz alta, ou se elas apenas ressoavam em sua cabeça. Já fazia tempo que, ali, as únicas vozes que se escutavam eram as dos personagens televisivos. 
Plim, plim! Aqueles chamados impertinentes ecoavam no apartamento, e aceleravam seu coração, sempre tão inquieto, na solidão.  Colocou um passarinho de penas vermelhas e macias, pousado sobre a beirada de um ninho onde um ovo azul, com pintinhas douradas, resplandecia. Um lar de passarinho! Na vida real, aquele pássaro vermelho deveria ser o macho, com suas cores atraentes, enquanto a fêmea ostentaria penas castanhas, discretas, apagando-se entre os galhos de árvores e arbustos em busca de proteção. Sabia disso, mas, na sua árvore, o pássaro vermelho, com as asas abertas e o bico voltado para o lado esquerdo, lado do coração, simbolizava a mãe. O macho estava ainda dentro da embalagem transparente. Era grande, branco, de longas penas que formavam uma espécie de cauda. Os olhos tinham sido feitos com duas contas azuis, brilhantes e frias. O bico dourado abria-se como se a ave estivesse cantando, mas emprestava-lhe um ar um tanto ameaçador. Ela não ia colocá-lo agora na árvore. Ia esperar a véspera de Natal, quando Armando chegasse, para tomar posse não apenas de sua vida, mas do pequenino lar que se esforçava, sozinha, para construir.
Plim!Plim!Plim! Os ruídos cavalgaram uns nos outros, atropelaram-se, chegando a assustá-la. Por que estariam tão insistentes? Capitulando, voltou sua atenção para a tela, e clicou sobre o ícone de mensagem. Apenas uma linha: “Não poderei ir. Feliz Natal” Assim mesmo, sem um ponto final, lacônico, inexplicável. O que queria dizer aquela mensagem?  Uma mensagem solta, de quem ainda na véspera conversara com ela risonho pelo Skype. Teve a estranha sensação de que o mundo continuava sua vertiginosa volta, sob seus pés, enquanto ela permanecia parada, fixa num tempo anterior ao da decepção. Não chorou. Como uma autômata, ligou para ele, pelo computador, mas já sabendo, de antemão, que ninguém atenderia. Passou o resto do dia, e a noite inteira mandando mensagens que não eram respondidas, tentando ligações que não eram atendidas. Procurou-o no Facebook. Tinha sido bloqueada. 
A luz da manhã da véspera de Natal demorou-se, tímida, a entrar pela janela. Preguiçosamente um raio empoeirado veio refletir-se no olho frio do pássaro ainda protegido pela capa transparente de acetato. Foi só então que suas lágrimas vieram, e os gritos que precisou soltar foram abafados pelas almofadas, que também secaram seus olhos. Pensou em se matar. Pensou em se embriagar. Pensou nele, que sorria, despreocupado, lindo, encantador, na placidez do retrato. A dor que sentia parecia rasgá-la por dentro. Seus olhos inchados mal conseguiam olhar a tela do computador, que ainda ostentava a mensagem, terrível. “Não poderei ir. Feliz Natal”
Finalmente compreendeu que a ausência de pontuação a obrigava a continuar a frase. Copiou e colou a mensagem numa página em branco. E foi assim que começou o romance que  publicou no Natal seguinte, ainda ferida, mas em franca recuperação.


Monday, October 20, 2014

Doutor tempo

Márcio Fonseca, pontual, a cada semana me regala com suas "imagens semanais" e nem peço licença, vou logo me apropriando de algumas. Esta daí de cima é de autoria de Eleanor Fortescue (1872-1945) e chama-se "Time the Physician".
Há coisa de quatro dias atrás, postei no Facebook uma frase: O tempo passa, mas não cura nada. Meu amigo é médico e tem fé na sua profissão. Para sermos médicos suponho que seja preciso acreditar na cura. Não sei se ele viu meu post, não sei se discorda de mim, não conversamos sobre o assunto. Acontece que, nas imagens desta semana – especialmente interessantes, diga-se de passagem – encontrei essa, mostrando o tempo como médico (physician), enfaixando a cabeça de um jovem melancólico e belo. Pode-se pensar que ele está curando o rapaz, salvando-o de seu desespero e de um possível suicídio (Quem falou em suicídio? Ninguém, eu é que interpretei o punhal na mão direita do rapaz como de fosse um indício de sua vontade). Qual seria o mal do rapaz? Talvez o de amor, vírus que costuma nos atacar na juventude. Talvez ele tenha sido preterido por outro, talvez sua amada tenha morrido ao suspeitá-lo morto numa batalha. Ou talvez seus versos não tenham dado certo, e ele, após cortar a coroa de louros com que pretendia ser coroado, e sofrendo ainda com os poemas que não chegaram a nascer e lhe provocam um "mal de tête" tenha pensado, como Santa Ágata, em extirpar a origem do mal (aprendi no mesmo blog que a Santa cortou seu próprio peito e que hoje é a padroeira dos pacientes de câncer de mama).  Creio que o tempo pode curar, sim, aqueles que são jovens em corpo ou, pelo menos, em espírito.
A mim ele não cura. Carrego feridas ainda dos tempos infantis, cicatrizes que doem conforme o tempo muda, e que se reabrem sem aviso, com uma palavra ou uma imagem evocada.  A ferida mais recente me transformou. Tudo me atinge com mais força embora me sinta, estranhamente, indiferente aos golpes. No sábado, porém, meu amiguinho A. sofreu um acidente, machucou sua cabeça e seus olhos verdes mostraram dor e medo. Depois de socorrido pelo pai, de passar pelo precário posto de saúde de uma cidade pequena, ele até voltou a sorrir, ostentando a cabeça enfaixada como um herói de volta da guerra. E lembrei-me de um filme antigo, de Visconti: O Leopardo. O belíssimo, mais que belíssimo Alain Delon, no papel de Tancredi, surgindo na tela com a cabeça ferida e mesmo assim conquistando a linda, mais que linda Claudia Cardinale. Bons tempos aqueles em que o cinema e o tempo curavam os doentes menos obstinados do que eu!
Espero que meu amiguinho A. esteja bem, pois lindo como Tancredi ele está!

Monday, October 13, 2014

Névoas do passado

Ontem o domingo amanheceu enevoado, as pessoas comentando que tinham acordado em Londres.  Não pensei em nada, meus olhos estavam ocupados olhando as ruas cheias de abrigos improvisados, onde dormiam crianças, adolescentes, adultos, velhos. Era como se tivesse voltado no tempo: 1992, 93. Voltei ao Brasil para encontrar as ruas de Copacabana assim, ocupadas por famílias inteiras. As vias muito sujas, cheirando mal, e as pessoas se dividindo entre aqueles que davam esmolas e os que responsabilizavam os generosos pela proliferação de miseráveis. Agora que estou aqui escrevendo, lembro de minha juventude, quando meus amigos apaixonadamente politizados abominavam a prática, então comum, da caridade. Só assim levaríamos os miseráveis a tomar consciência e os levaríamos à revolução. Comecei, nesta época, a viver em dois tempos, pensando em termos racionais e esquerdistas e sentindo com um coração cristão de direita. Direita?! Mas...
Desisti de entender, afinal, era um tempo de descobertas e eu mudava como o tempo mudava. Naquela época, um dia que amanhecia ensolarado podia terminar em tempestade, e dar origem a uma noite de estrelas lavadas, brilhando muito, despreocupadas com as nossas ações. Assim era eu, descobrindo ora a literatura, ora a arte de amar, e, muito em breve as responsabilidades da vida de casada.
Hoje, a reportagem volta a mostrar o nevoeiro de ontem e volto a um passado ainda mais distante: tardes de névoa quando ouvíamos os apitos longos e angustiados de navios invisíveis... Meu coração se apertava, o som me entristecia e me deixava melancólica, sem nem conhecer a palavra. Sentada num banco da praia com meu avô, ou na varanda de casa, com vovó, perguntava sempre a razão daqueles longos e graves lamentos e me preocupava com a segurança daquelas pessoas embarcadas, vivendo num mundo sem contornos, apagado.
Talvez essa angústia tivesse origem numa viagem de carro, voltando de Caxambu, quando o nevoeiro desceu na serra e, com medo de que algo nos acontecesse, meu avô desceu a pé, ao lado do automóvel, para ter certeza de que estávamos na estrada e não tomaríamos um desvio que nos fizesse despencar pela ribanceira...
Hoje já não tenho quem tente me proteger. Estou sozinha na névoa, mas não tenho medo, nem mesmo angústia. Olho as nuvens baixas e me lembro da manhã, mágica, quando, saindo de casa, vi os cervos pulando da névoa para o meio da rua, o líder com uma grande galhada enfeitada por uma guirlanda de trepadeiras. São três as cenas de contos de fada que entesouro: essa dos cervos, a da floresta de cristal, numa estrada no interior de Vermont, e a revoada dos pássaros sobre a I-95, que cobriu o céu e me deu a impressão de estar no fundo do mar. As névoas do passado me encantam. As de hoje, me revelam um mundo muito mais dilapidado.

Sunday, October 12, 2014

Ponto final

Dia das crianças, todo mundo com suas fotos de bebê ou de colegial, e eu sempre escondida atrás dos livros, me agarrando neles como uma náufraga.
Uma das razões para esta imobilidade é que não tenho fotos. Perdidas em alguma caixa num guarda-móveis que deixou de ser uma solução provisória e perdura, inacessível. Outra é o fato de que não gosto de viagens no tempo.  Muitas vezes, conversando comigo naquelas conversas que me fazem tanta falta, Guilherme me perguntou para que idade eu voltaria se pudesse voltar atrás no tempo. Sempre lhe disse que não queria voltar, queria o instante presente, que era sempre perfeito ao lado dele. Agora, o que desejo é acelerar, chegar logo ao ponto final de minhas histórias.

Monday, October 06, 2014

Voto zero

O jornal  de hoje veio com a lista dos deputados eleitos. Quantos concorrentes! Mais de uma página de aspirantes a deputado estadual, uma página inteira de candidatos a deputado federal... Só que minha surpresa não foi com o número de eleitores que votaram num ou noutro. Minha enorme surpresa foi ver quantos candidatos terminaram o pleito sem votos. Como tiveram a coragem de se candidatar se nem mereceram o próprio voto? Nem o de suas mães, nem o do amante (e, na língua petista, o da amanta). Como não acompanhei a empulhação eleitoral gratuita, acho que não percebi que criaram um novo programa social, o do VOTO ZERO. Um programa visando fortalecer o amor próprio e a perseverança, um teste para o caráter dos futuros selecionados para a câmara. Como, uma vez eleitos, os candidatos passam todos a serem desprezados, e o povo passa a se referir a eles como "corja", "safados", "corruptos" e "desocupados", com esse exercício de humildade, que consta em se candidatar e não merecer o voto nem do irmão, a pessoa se prepara para uma vida política significativa, que vai ensiná-los a não dar a mínima para a opinião pública. Deve ser difícil se candidatar e não votar em si. Uma renúncia e tanto! Deve doer mais do que não fazer nenhum ponto na mega-sena. Portanto, estou aqui dando os parabéns a todos os que apoiaram o Voto Zero, mas, apesar de toda minha admiração, na próxima eleição já lhes aviso que não contem com o meu voto. Nem com a minha simpatia.

Friday, October 03, 2014

Prêmios

Voltando a falar de sobrevivência, que, na verdade, devia se chamar subvivência, fui desenvolvendo pequenas estratégias para tornar o que chamo de vida um pouco mais suportável. Hoje, conversando com um amigo distante, fiquei lembrando da sensação que me invade quando dou uma boa aula, ou palestra. Saboreio aquilo mas me entristeço quando acaba e tenho que voltar para a casa, ou o quarto de hotel, onde ninguém me espera.  Só o espelho como testemunha do meu brilho nos olhos, do sorriso que aflora junto da lembrança de algum detalhe mais agradável. Compartilhar sempre esteve no meu vocabulário, mas não esse compartilhamento estéril por vias eletrônicas, e sim feito de gestos, de olhares trocados, de dancinhas, de palavras doces de escutar e de dizer, cheias de orgulho.
Como não tenho nada disso, resolvi que, a cada coisa profissionalmente boa e gratificante, me dou um presente. Em Londres, depois de minha palestra no Kings College, me dei de presente a exposição de Matisse. Ficarei para sempre com uma emoção associada à outra, com isso conto não esquecer nem uma coisa nem outra. Porque um dos piores efeitos desta subvivência é o esquecimento: como ninguém mais está a par do que se faz, caso esqueçamos, perdemos aquilo para sempre.
Então tenho esse método: para cada palestra ou aula que dou, quando fico satisfeita com o resultado, faço também algum programa bacana: vou a uma exposição, ou concerto, ou teatro ou ballet. Quando é uma atividade remunerada, então me compro um presente com o dinheiro. Nada de mirabolante, mas uma lembrança, alguma coisa que, ao olhá-la, me faça lembrar do local onde trabalhei e recebi por este trabalho. A primeira vez que fiz isso foi na Espanha. Estive na Galícia e na Catalunha. Na Galícia, recebi pelas palestras que dei e  me dei um lindo presente. Na Catalunha, o querido Pere, sem querer, iniciou o meu ritual de compensações, me levando para visitar as obras de Gaudí.
Vez por outra a gente tem uma surpresa legal, mas são meio raras. Encontra, por exemplo, um ex-aluno que lhe diz que foi estudar literatura por sua causa. Ou sabe que uma ex-professora diz que você foi uma das melhores alunas que teve. Nosso peito infla, ficamos felizes, e percebemos que, ao fim e ao cabo, nossas marolinhas nos mares literários talvez tenham sido ondas boas de surfar, no final das contas.

Tuesday, August 05, 2014

Vida, vida, vida

Na Flip falou-se muito de morte. A perda, a violência, a estupidez, o desalento, a filosofia, o desejo… tudo relacionado a ela foi esmiuçado e examinado. Alguns olhavam a morte como uma carta de Tarô: o recomeço. Outros apenas se declaravam "contra". Uns diziam que não falavam de morte, outros diziam que tudo o que se fala é morte. Uns lembravam a "pequena morte", que é o nome que os franceses (e os espanhóis também, aprendi) dão ao orgasmo. Morrer nos braços do outro: nunca me decido se é um privilégio ou não. Existe alguma entrega maior que essa? Existe alguma frustração maior que essa? Imaginem o/a parceiro/a, com o corpo exangue ainda misturado ao seu…
Quando se fala de morte, calo-me. Só posso falar de sobrevivência e das modificações que este "sobre" efetua na "vivência". Aos poucos vou descobrindo o caminho a traçar, no livro que desejo, mais que todos, escrever. Vou experimentando a mão em contos, em histórias alheias, até que possa fazer uma alquimia e transformar o vazio que me habita numa presença. Uma gestação que já chega a termo, um parto que se aproxima e que será, talvez, o mais doloroso e o mais longo.
Enquanto isso, examino a vida. Aprendo. Olho para as diferentes formas de vida biológica, a vida natural, a vida cultural, a vida social e lamento que saibamos tão pouco sobre elas. Todos falam de morte, creio eu, porque é muito mais difícil falar de vida. A morte é um silêncio e pode ser preenchido com nossas especulações. A vida é uma algaravia que nos atordoa e envolve de tal maneira que não conseguimos pensar sobre ela. Mas seguimos vivendo, inscientes e inconsequentes.
E sigo, vivendo por escrito, lendo para viver e vivendo para ler e escrever.

Wednesday, July 30, 2014

Literatura, aqui me tens de regresso

Passou-se a Copa, curei-me da estranha virose que me faz perder o (bom) senso em intervalos de quatro anos, e agora estou de volta aos afazeres literários: primeiro dia de Flip, uma longa viagem de ônibus, com os sescompanheiros, uma volta por Paraty, procurando, reconhcendo, assuntando. A primeira atividade, alvissareira, foi Shakesperare nas praças. Adorável, farsesco, popular. Ultimamente tenho testemunhado essa tendência muito salutar de recuperar o lado popular do gênio. Sou inteiramente favorável a isso, pois acho que é esse seu lado que o mantém vivo e relevante. Quando engessam os grandes autores em solenes reverências, eles perdem o viço e se mumificam, afastando-se de nossas experiências. Prefiro o que fizeram na praça a algumas direções de famosos que põem os autores a gritar  e a correr como possessos, acreditando que a plateia aceitará sem questionar a falta de voz e de técnica.
A Flip mudou. As casas das editoras agora oferecem programações de muito boa qualidade. A palestra de abertura .
Estou sem internet. Amanhã escrevo mais. Agora fecho os olhos, repouso as costas doloridas. Daqui a instantes terei adormecido. Tomara que eu sonhe!

Monday, June 30, 2014

Zero em futebol, Dez em torcida

Se existisse um boletim de torcedor, essas seriam minhas notas. Não pretendo saber nada de futebol. Nada mais que uma brasileira, criada numa família que não se interessava pelo esporte, possa  conhecer. A gente conhece os nomes, já leu uma ou outra crônica, tem noção de que o Saldanha e o Nelson sabiam escrever sobre as partidas, sabe o que é pênalti – embora nem sempre reconheça com exatidão os motivos para eles serem marcados. Não sei como meus filhos, criados com a indiferença futebolística de pai e mãe, se tornaram apaixonados por futebol, ou por outros esportes. Nasceram assim, herança genética de algum tataravô atlético que desconheço.
Mas, talvez por ser mãe praticante, sei torcer. Estou sempre na torcida pelos meus filhos, pelos amigos, assim como passei a vida torcendo pelo meu marido, confiando, acreditando até o último minuto e, quando por ventura alguma coisa não dava certo, escondendo minha decepção e me convencendo (e a todos ao meu redor) de que "agora" ia dar certo. Torço ardentemente pelo Brasil, espero que o time vença e fico indignada com todos esses entendidos que expressam suas desconfianças em público. Fico danada com comentários que só ressaltam a trave, e não o goleiro. Ora bolas! Futebol não é ciência, não é estratégia, não é probabilidade, não é nada disso. Futebol (e a vida) é a peça Ricardo III. Tá todo mundo achando que os outros estão em vantagem, mas a gente sabe que vai conseguir. E consegue. Naquela noite angustiosa antes da batalha, uma única pessoa acredita. Tem fé apesar de tudo, racionalmente, estar apontando para o fracasso. Ele fala, sem mentir, apelando para a emoção e para a entrega. Revela sua fé naqueles guerreiros e essa crença vai contagiando até que todos se animam e percebam que precisam de estar com os corações confiantes para que os deuses os favoreçam.
Vamos torcer, gente. Sem medo do ridículo, pois todo amor, já disse o poeta, é ridículo quando expresso em palavras, e precisa de ser ridículo para que seja verdadeiro. Vai Brasil-il-il.

Monday, June 23, 2014

O que será que me dá?

De quatro em quatro anos sou acometida de uma virose que me transtorna e transforma. Descubro que, encarcerada a sete chaves, tenho uma outra personalidade turbulenta, passional, bagunceira e irreverente que, além do mais, gosta de futebol.
Ela passa anos sem se manifestar hibernando, e chego a esquecer que essa outra Lúcia, que se veste com roupas verde-amarelas, que não desdenha o uso de perucas e adereços e que diz bobagens, grita e sopra buzinas desafinadas faz parte de mim.
Ela tem uma vitalidade que não tenho. Pula e abraça pessoas sem um pingo de cerimônia. Diz coisas que eu, em meu estado normal, preferiria morder a língua até sangrar a proferir as palavras que essa outra usa sem se envergonhar.
A duração dessa virose depende da participação do Brasil na Copa. E, à medida que o time vai avançando nos jogos, vai ficando cada vez mais séria. Houve uma Copa em que me julguei curada: aquela malfadada Copa na França, quando o time entrou rendido em campo. Ao olhar aqueles "heróis" já vencidos antes mesmo da batalha, fiquei tão indignada que não sei como cheguei até o final do jogo.  Jurei que nunca mais assistiria a um jogo do Brasil. Depois disso, a "outra" ficou enclausurada, sem dar sinal de vida durante duas Copas. Em 2010 amoleci um pouco, e, vez por outra a turbulenta tornava a botar a cabecinha de fora, soprando uma buzina solitária na varanda do meu apartamento. E, embora não tenha assistido a nenhum jogo naquele ano, ligava religiosamente a TV na sala e voltava para o escritório para ler, mas mantendo os ouvidos alertas na esperança de ouvir os gritos de gol. Quando isso acontecia, corria para ver a comemoração na TV, e depois voltava ao meu sossego.
Esse ano, na contramão de todos os bem-pensantes partidários do "não vai ter Copa", fui me entusiasmando devagarinho e, quando vi, a louca tinha escapado do cárcere e está agora no comando de minha vida. No meu coração tem Copa! Estou torcendo como louca para o Brasil chegar ao Hexa. Não saio de casa, não vou à Fanfest, não fico nos bares com os turistas que surgiram como cogumelos, da noite para o dia, em todos os recantos da cidade. A Louca da Casa acompanha todos os jogos, parece que até entende um pouco de futebol, e encontrou amigos que a acham muito engraçada.
A Lúcia de sempre se espanta, mas acaba se divertindo com esse alter-ego muito mais desinibido e popular que o seu ego de cada dia. Fica se perguntando se a virose ainda vai demorar a passar, e tem até um pouco de medo quando sua parceira sossegar, seja pelo final da Copa ou (God forbid!) quando seu time se despeça da luta. Sua vida vai voltar a ser a de antes, sem a paixão e a adrenalina… Acho melhor ir planejando alguma aventura emocionante, como uma volta numa enorme montanha russa, ou umas aulas de voo livre para me entreter e satisfazer essa que, afinal de contas, também posso chamar de eu.

Saturday, June 14, 2014

A pátria de chuteiras

I
De quatro em quatro anos me descubro torcedora de futebol. Não acompanho os jogos do Brasil, porém. Ligo a TV e perambulo pela casa, tentando fazer uma ou outra coisa, enquanto todos os meus sentidos ficam atentos a espera do tão esperado grito de GOL. Odeio os locutores de futebol, que demoram uma eternidade neste Goooooooooooooooooollllllll e custam a confirmar ser do Brasil. O que me ameniza a ansiedade são as generosas explosões de fogos. No meu imaginário, são como fogos de Reveillon e vejo tudo colorido, brilhante, alegre. Este ano, encontrei uma brincadeira que me encantou: mensagens no Facebook, absolutamente piradas, que eu ia fazendo, baseadas em pequenos retalhos de coisas que escutava sendo ditas na TV, ou respondendo aos comentários às minhas próprias bobagens. Só posso dizer que este primeiro jogo do Brasil foi perfeito. Vitória, quatro gols brasileiros (um foi contra, eu sei, mas quem pode criticar o cavalheirismo dos donos da casa?), facebook e brincadeiras, fantasias, filhos acompanhando na torcida, tudo legal. Nem o joelho machucado numa queda estúpida por causa de um elevador que parou fora do nível me deixou chateada. Era um pretexto a mais para desviar minha atenção da ansiedade. Ia buscar gelo, ou espirrar um cataflan, e nisso a posse de bola voltava para o Brasil-il-il, pois durante a Copa o meu país é assim, com eco e peito inflado de amor.
Nos outros jogos, não ligo, embora tente acompanhar, torcendo para os que me parecem mais simpáticos e menos ameaçadores numa possível final contra o Brasil-il-il. Foi assim que ontem comecei torcendo pela Holanda. Simpáticos, acariocados, o Flamengo da Europa vestiu azul, cor de minha predileção. Quando o jogo começou, vi uns momentinhos, mas depois tive que sair. Estava certa, ao me arrumar, que os meus favoritos iam levar uma surra. A impressão que dava é que havia mais jogadores espanhóis em campo. Para onde se olhava, lá estava o uniforme branco, enchendo a tela. Já na saída de casa, um gol da Holanda!!! Resolvi me atrasar um pouquinho. Precisava de ver se tinha sido do Robben cujo nome de ladrão (se pronunciado à brasileira, parece uma ordem, se pronunciado à estrangeira, lembra o famoso personagem inglês, que roubava aos ricos para dar aos pobres). Só então entendi que, se a Espanha parecia tomar o campo, é porque estavam ali plantados, como balizas, para os meninos praticarem seus dribles e fintas (nomes lindos, mas não me peçam para explicar pois não sei diferenciar uma coisa da outra; só sei que são mágica feita com os pés e uma bola que desaparece e reaparece onde menos se espera). Bem, saí e quando cheguei ao local de destino, descobri que o resultado tinha sido Holanda 5, Espanha 1. OK, por mais que eu simpatizasse com o time, não torcerei mais por ele. A não ser que perca na próxima partida, e eu possa dizer que esse resultado foi sorte ( mas acho que não foi, não). Eu bem que gostaria de continua torcendo por eles, mas o Brasil-il-il é o meu amor, e não me atrevo.

II
Tem um monte de gente escrevendo sobre futebol, no facebook, nos jornais, no twitter. Tem um monte de caras falando sobre futebol, também, mas isso eu não escuto: ou troco de canal ou mudo de posição na rodinha.  Voltemos aos que escrevem: uns entendem muito de futebol, e merecem todo o meu respeito, mas… quando são brasileiros e se colocam encastelados em uma lógica analista que os faz criticar os nossos jogadores tenho piedade deles. Uma das melhores coisas da vida é se "apaixonar". Diz Proust (e ele cabe citar até em textos sobre futebol) que se apaixonar por mulher linda não tem graça, muito maior é a paixão de quem se encanta por uma feiosa, pois aí a imaginação revela toda sua grandeza. O meu time pode não ser perfeito, mas estou apaixonada por ele. Pelo Oscar, pelo Neymar pelo David Luiz, e até mesmo pelo Fred. Não critiquem, não deixem que a lógica estrague a paixão. O Fred caiu, foi covardemente desequilibrado pelo adversário. O Fred é ótimo deitado, gente! Faz gol, arranja falta…Deixa ele deitar, gente.  Não procurem defeitos na pegada do goleiro, na cabeleira do volante, no chute do zagueiro, na finalização do atacante. Eles são o nosso Brasil-il-il, e enquanto estiverem no páreo, a gente deve torcer por eles com toda a nossa paixão. E, se vocês ficarem escrevendo essas coisas, não passarão de chatos que, no dia do casamento, queiram falar do desengonçado do noivo, do terno mal passado, da perna torta. Eu sou a noiva apaixonada, não vejo nada. Tudo o que me interessa, no momento, é o SIM, aquela taça que quero levantar  e brindar. A embriaguez da alegria e a promessa de uma noite de núpcias me deixam indiferentes a tudo o mais. Vambora torcer, gente, e se o prazer de vocês é analisar os defeitos, concentrem-se nos convidados, e deixem meu noivo em paz. Meu Brasil-il-il é perfeito. (Agora, se ele perder…viro mulher abandonada, entendem?)

Thursday, May 01, 2014

A revolta dos brinquedos

Viajei. E, com preguiça de carregar o computador, só o telefone me serviu de comunicação pelas ondas da WEB.  Quando voltei, meus brinquedos abandonados estavam revoltados. O computador alegava estar sofrendo de falta de memória e se recusava a abrir. Os outros brinquedinhos estavam descarregados e os carregadores estavam escondidos em gavetas inesperadas, o que me obrigou a andar pela cidade me fazendo de "incomunicável". Até o controle remoto da TV tinha se escondido entre as almofadas da poltrona. Dei de ombros, chamei o meu filho, que me aconselhou a comprar um novo computador. Dei de ombros outra vez e, lembrando a ele que o dia das mães está chegando, ele tinha a opção de me dar um computador novo ou consertar o desmemoriado. Venceu a segunda opção, ainda bem. Tenho grandes ataques de ansiedade quando me vejo obrigada a trocar de computador, com a certeza de que nunca mais vou encontrar os arquivos que vão se escondendo em pastas que se multiplicam e aparecem dentro de outras pastas, num jogo de caixinhas chinesas que me deixa enlouquecida! Foi assim que perdi os poemas que escrevi para o meu querido Gui, e não consigo recuperá-los de jeito nenhum. Mas tenho a esperança de que um dia, ao abrir uma pasta qualquer, lá estejam eles, me aguardando.
Enquanto isso, vou-me aclimatando com a cidade que ainda chamo de minha: Trânsito caótico para chegar ao Municipal. Compensado, depois, com o ótimo concerto de um pianista lindo como um príncipe, mas frio como um boneco de neve. Techné, porém, é um dos nomes da Arte, e eu aceito essa lição de proficiência.
Tal como aceito as lições dos acadêmicos João Ubaldo Ribeiro e Antônio Torres. Um me oferece "medidas para a produção literária": um GG, um Conrad, um Woolf. O primeiro parâmetro corresponde ao número de palavras que Graham Greene escrevia por dia, 500. Já Conrad escrevia 800, enquanto que Virginia, mais prolixa, escrevia 1200. Isso me deixou satisfeita. Talvez eu consiga encontrar um método para minha produção. Vou fazer como meus amigos que agora usam uma pulseira eletrônica que conta seus passos: vou arrumar uma pulseira que conte minhas palavras escritas. Se usar as dos e-mails, comentários no Facebook, torpedos no telefone acho que alcanço um limite razoável. Ou será que esse limite só se aplica para a ficção? Aí estou encrencada, pois vou ter que parar de escrever as outras coisas todas. Ou terei que aprimorar minha técnica e transformar meus dedos em maquinistas velozes como as do pianista Nicolai Lugansky… Talvez minha salvaçnao esteja em seguir os conselhos do Antônio Torres: escolher uma música bacana, adotar um ritmo e deixar que o romance se escreva por si mesmo. Poderei, assim, fechar os livros que estou lendo sobre Freud, escrever um belo título e deixar que as palavras se reproduzam, lúbricas, na tela do computador, num novo tipo de selfie que me deixe só como uma daquelas pessoas que obtêm seu prazer ao ver os outros engajados em atividades amorosas. Isso, caras palavras, crescei e multiplicai-vos enquanto eu fico por aqui limando as unhas e depois assino meu nome  no texto.
Vai ver que é por isso que os brinquedinhos me sabotam e modificam até meu nome. Toda vez que assino tenho que corrigir o escrito, pois o corretor automático substitui meu nome por Lucinda.
Então termino por aqui, cantando, com Jacques Brel – ou talvez com a Maysa, que tinha tanta paixão – "ne me quite pas", para ver se meus brinquedos revoltados voltam a ser amigos e colaboradores.

Friday, April 04, 2014

Prazo perdido

Prometi que voltaria a publicar todas as quintas, mas perdi meu prazo. Desculpem, mas acho que vocês poderão compreender que meu tempo não é elástico e que, nas horinhas que dispunha para a escrita, hoje, precisei encaixar mais uma visita ao dentista. A terceira esta semana! Mas valeu a pena. Começo a sentir o rosto desinchar, e me sinto mais aliviada.
Depois, uma aula extra, já que na segunda vou gravar um programa de rádio… Já fui a três gravações de programas de rádio, uma numa universidade fora do Rio, acho que no Paraná, mas já esqueci. As outras duas em rádios aqui no Rio. Os programas cariocas eram ao vivo e na primeira gravação, ali em Botafogo, fiquei fascinada pelo microfone, um daqueles lindos, imitando os antigos, com uma espécie de halo. Sinceramente, não sei como desgrudei os olhos daquele microfone e consegui me concentrar para responder as perguntas que o locutor fazia.
Na segunda vez, aqui no Rio, só que bem ali ao lado do edifício garagem Menezes Cortes,  eram várias as pessoas participando, e o programa acolhia perguntas e comentários dos ouvintes. Impressionantemente dinâmico, o rádio dá uma sensação de maior adrenalina que as gravações de programas na TV. Em minha primeira entrevista, num estúdio de TV a cabo de uma emissora local, lá no Paraná, fiquei super insegura, com medo de que mostrassem alguma coisa que eu (ou os produtores) não queriam. Pois era preciso esconder o fio do microfone, era preciso não suar em bicas, apesar dos intensíssimos holofotes e do meu sempre crescente nervosismo. A entrevistadora era uma dessas jovens jornalistas que estão se preparando para tomar o mundo de assalto com suas certezas: uma bonita moça, sem dúvida uma boa aluna da faculdade de comunicação, mas ainda uma máquina. Ela usava o ponto com desenvoltura, enquanto eu pensava em "Deus", uma voz desmaterializada que havia me notado e se dignado a me dar instruções por um altofalante.  A sala toda era preta, mas havia um bar num dos cantos, que suponho que fornecia água para os que morressem desidratados pela incidência das luzes. E, no entanto, essa não foi a pior vez de uma entrevista: houve uma vez muito anterior, quando fui dar uma palestra em Trinity College, em Hartford. Como ali é uma cidade de forte presença portuguesa e meu assunto tinha alguma conexão com Portugal, descobri que, na hora que subi ao pódio para fazer minha apresentação, uma equipe de TV se montou inteira no meio da plateia e me filmaram, implacavelmente. Assim que as luzes se acenderam e eu vi o aparato, minha garganta se contraiu e foi com um esforço sobre-humano que consegui dominar minha voz trêmula. A voz ficou passável, mas aí as mãos começaram a tremer e foi preciso apoiar o papel no pódio para que eu pudesse ler o que havia escrito. Quando terminei, meu corpo todo doía de tanto se contrair, tentando se controlar. Foi minha primeira grande plateia. E eu nem sequer me lembro sobre o que falei…
Volto ao rádio. Ali me sinto mais solta. Não vou aparecer em lugar nenhum, e por isso me solto um pouco mais. Preocupo-me com minha voz, que sempre acho muito infantil, nada apropriada para ser escutada. Mas, o que é uma voz desacompanhada?
Nas minhas pequenas palestras pelo mundo afora, vou-me virando. Prefiro aquelas em que estamos todos ao redor de uma mesa, em congressos mais ou menos procurados, embora sempre interessantes. Tenho um grande temor quando sei que haverá um tempo para as perguntas da plateia, pois sempre acho que não vou saber responder. Acontece que as pessoas têm sido gentis comigo: fazem-me perguntas fáceis, ou nem perguntam nada ou só fazem suas "colocações". Deixo que coloquem, meio anestesiada, sabendo que esse ritual é sempre um tanto incômodo. Sorrio e agradeço a contribuição, pois não sou mulher de contracolocar nada. Algumas palestras me renderam muito bons frutos. Outras me conquistaram bons leitores. No cômputo geral, acho que estou dando conta.
Quais as que mais gosto? Aquelas em que identifico, em alguns olhares, um brilho cúmplice de aprovação e de encantamento. As que mais detesto são as entrevistas mecânicas a apresentadores indiferentes, profissionais sem paixão. E aquelas em que me divirto são as leituras que faço para as crianças, de meus livros infantis, quando desencavo um lado que herdei do meu avô, o meu mais querido contador de histórias: um teatro envergonhado e contido, coisa de tímida, que se deixa levar pelo olhar generoso das crianças.

Thursday, March 27, 2014

Fotobiografias

Acaba de me chegar às mãos a fotobiografia da imortal Nélida Piñon.  O título é Tenho apetite de almas, e isso me faz lembrar a crença de alguns, que não se deixam fotografar por medo de que lhe capturem as almas. O livro se torna uma fonte preciosa para historiadores da cultura, pois raro é o escritor e o intelectual consagrado seu coetâneo que não se encontre devidamente fotografado, identificado e arquivado. Quase sempre sorridente, Nélida aparece desde a mais tenra idade, entre seus familiares entre os quais se destacam sua mãe e seu avô Daniel (a quem deve o nome, em anagrama). Fotos tiradas em casa, mas também em palácios e templos da cultura, em recantos que lhe evocam boas memórias, em locais que a imaginação tornou míticos. Comendas, cartas, dedicatórias, capas de livros se multiplicam e disputam espaço com Gravetinho Piñon, o cachorrinho bem amado, e com figuras da política brasileira e internacional. Ao final, sob o título "não deu para falar", uma lista de prêmios e de nomes de amigos e colegas, de participações em atividades culturais e a constatação de que, possuindo um curriculum vitae de 150 páginas, era inevitável a necessidade de algumas ausências na obra. São tantas as coisas e pessoas deixadas de fora que, quem sabe, talvez ainda apareça um vol.II da obra em questão. Até porque a escritora continua produzindo, e brilhando pelo mundo afora, tal como o broche em formato de sol, que ostenta na capa do livro.
Sou encantada por essas fotobiografias. Tenho a de Proust e a de Rimbaud, que foram organizadas por ocasião de seus centenários. Tive a de Clarice, que se extraviou, infelizmente. Acho delicioso ver as fotos de lugares e reproduções de manuscritos. Também vou a exposições de "centros de memória", e encontro pequenos retalhos de vida que muito me comovem. Só uma coisa me atrai e repele, ao mesmo tempo: as máscaras mortuárias. Essas esculturas são fascinantes para quem não teve a chance de ver o rosto fino de Olavo Bilac em vida, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, como não pensar que ali o rosto já não é habitado pelo espírito que fez daquela face um símbolo de sua época? Bem, não vou me alongar aqui, citando Proust com relação ao rosto de sua avó morta, de onde toda a velhice e a dor foram subtraídas ao enrijecer-se. Prefiro, sem dúvida as fotos, os retratos que se chamaram, um dia, de instantâneos mas também aquelas fotos posadas, feitas em estúdios, nas quais os cenários e gestos congelados revelavam quase tanto quanto o próprio rosto fotografado.
Só para terminar, acredito que o livro que folheio é um testemunho de nossa época, e estou convencida de que sua existência revela mais sobre os tempos em que vivemos do que suspeita nossa vã filosofia.

Thursday, March 20, 2014

Retomada

Vejo que desde dezembro não escrevi aqui neste meu cantinho.
Que vergonha, senhores! Como posso ser uma blogueira tão bissexta assim? Minha desculpa é a do país inteiro: o ano só começou mesmo depois do Carnaval! Tive férias. Saí do Rio no Natal/Reveillon. Viajei em janeiro. Saí do Rio no Carnaval. Nada disso me impediria de escrever, exceto a viagem de janeiro, pois estava sem computador, ou melhor, sem internet, pois o computador agora segue conosco nos telefones… Mas, o calor, talvez possa botar a culpa no calor. Como este verão foi quente. Temperaturas inusitadas. Quem se anima a trabalhar com temperaturas assim tão fortes? Ou talvez possa botar a culpa num desânimo enorme, que me faz pular, indiferente, de uma atividade a outra, sem me dedicar, verdadeiramente, a coisa alguma. Só que essa desculpa não seria muito válida, pois escrevi algumas coisinhas que me pediram. Um conto para uma antologia, um conto para o SESC, um verbete sobre Clarice.Não fui tão improdutiva, assim. Escrevi mais um livrinho infantil, também, que não sei quando sairá. E também participei de uma Banca de doutorado, o que me deu algum trabalho de leitura e reflexão.
Volto, agora. Vamos ver se estabeleço um dia certo na semana para escrever. Quinta me parece um bom dia, o que acham? Vou tentar.
Então, até a próxima quinta.