Monday, August 19, 2013

Feldspato

Hoje, atrasadíssima, fui ler o jornal de sábado, mais especificamente, o Prosa, que ainda insisto em ler, embora esteja cada vez mais distante de um suplemento literário. Tinha guardado o caderno para uma hora mais tranquila, pois, desta vez, quebrando a regra, falava-se sobre livros: aqui um comentário sobre o Silviano, ali uma longa dissertação sobre o pós-modernismo e um texto sobre o feminino em Nietzsche e Derrida. Como esses dois são figurinhas fáceis nos comentários literários, desprezei o fato de que o artigo se achava sob a rubrica "filosofia", e embarquei na leitura.
Começou muito bem, com a citação de uma autodefinicão de Nietzsche: "Sou uma nuance". Claro que adorei a frase, cheia de possibilidades e continuei lendo a referência seguinte que afirma que o filósofo em questão é "um pensador que se instala de modo deliberado entre antagonismos insolúveis". Era uma frase em aspas, portanto assumi que o autor do artigo estivesse resumindo os "brilhantes estudos de Wolfgang Müller-Lauter". Brilhantes? Bem, tudo é uma questão relativa. A luz de um fósforo é brilhante na escuridão, mas supérflua num dia radioso como o de hoje.
Seguimos? Seguimos!
Fala-se, então, de um novo modo de lidar com a verdade, que teria sido inaugurado pelo bigodudo filósofo: a interpretação infinita. E já estou perdida, pois não tenho conhecimento filosófico suficiente para saber se isto é ou não verdade. Como sou realmente uma mulher de boa fé, tomo a assertiva como verdadeira, embora surjam algumas dúvidas no fundo de meu raso intelecto. Será que a filosofia não vem praticando isso há milênios? Bem, mas talvez a prática não valha sem uma teoria que a organize, então continuo a ler e me deparo com a relativização da "própria condição do sujeito que valida essas mesmas perspectivas". Sim, leitor, pode me abandonar, se quiser, pois não vai haver relativização que melhore o meu entendimento. Não  pense que estou fazendo pouco do texto, estou apenas dissecando minha própria ignorância. Por que, então, continuo a ler? Porque no parágrafo seguinte está a seguinte hipótese, sustentada por N. "a verdade é uma mulher", e em seguida uma frase absolutamente tentadora: "reavivar a agonística alegre existente entre Nietzsche, Derrida e o tema do feminino".
Puxa! Sou uma mulher e, se a verdade é uma mulher, a verdade tem a ver comigo, que não sei do que trata a alegre agonística  com que os dois filósofos se relacionam ao tema do feminino. Que, diga-se de passagem tem muito pouco a ver com a mulher… Isso eu sei, nebulosamente, pois as duas palavras deveriam estar rotuladas sob categorias diferentes segundo me ensinaram algumas teorias que andei lendo por aí.
Sigo a leitura como quem faz um exercício de piano. Repito, saboreando os sons, que não levam a nenhuma sinfonia: "conceitos de phármakon e de khôra"; "a metafísica consiste na tomada de decisão diante de termos estruturalmente indecidíveis". Paro e recorro ao meu velhíssimo Aurélio, que não lista entre indecidido e indecifrável  a palavra em questão. Bem-feito! Quem manda se apegar a velhos dicionários e não comprar uma edição mais recente? Quantas palavras deixarei de conhecer, desse jeito?
Descubro que além de "verdade", sou "metafísica", pois esta é "incapaz de pensar a complexidade do mundo contemporâneo". Eu também. Eu também, mas estou em boa companhia. No entanto, sou fulminada por uma nova revelação: Uma escrita pós-metafísica seria uma escrita feminina. Como?!  É que o Derrida diz, segundo esclarece o autor do artigo, que "toda metafísica é um fono-falo-logo-centrismo" ou seja "Uma lógica fálica apoiada em um racionalismo fonocêntrico que privilegia a fala e a presença em detrimento da escrita e do pensamento in absentia". Ok, está certo, por menos que seja capaz de pensar o mundo contemporâneo não posso me comparar à metafísica pois esta é domínio do falo e da fala.  Calo-me e castro-me (deve de ser esta a ausência), continuo a leitura.
O pensamento metafísico nasceu de um parricídio simbólico. Não complica, caro mestre. Você não acabou de dizer o contrário? A metafísica não é o domínio do falocentrismo? Ah, é que  "a fala e o falo paternos continuraram reverberando de um modo fantasmal na escrita, chancelando-a com uma negatividade incurável".  Esclareceu para você? Para mim complicou. Quando foi que saímos da fala e entramos na escrita?
Estou perdendo o fôlego e a razão. Mas me animo com o parágrafo seguinte que tem "franjas e bordas" palavras que me fazem lembrar de meu querido e sempre claro Machado de Assis.  Leio que Derrida "criou uma odisseia da marginalidade intelectual que inclui todas as vozes ausentes do festim masculino da razão e abandonadas pela paternidade arcaica dos signos". Saboreio a frase. Linda! Tem odisseia, tem marginalidade, tem festim, coisas de que gosto muito. Ignoro minha incapacidade de pensar a complexidade do mundo contemporâneo, pois isso é coisa da metafísica e, como sou mulher, portanto, verdade, não faz muita diferença se compreendo ou não porque, ao fim e ao cabo, faço parte da marginalidade.  Creio ler uma corroboração de meu entendimento na frase: "Apenas uma escrita que incorpore o devir-mulher em seu caráter inapreensível será portadora da marca indecidível da verdade".
OK. Não dá para entender mesmo. Mas vejo que, como eu, Derrida tem suas "palavras amadas", e listo, copiando o Rodrigo: alteridade, dom, justiça, lei, perdão, amizade, soberania hospitalidade e responsabilidade.
Alguém ainda estuda Derrida?  Ele não tinha saído de moda, depois de detectarem nele algum defeito primordial que já não lembro mais qual seja? Não seria o fato de que ele pregava (simplificando muito) que todos os discursos são autocontraditórios? Se são autocontraditórios, não significam nada além de "vontade de poder".
Acho que era por aí.  Pois, acompanhando as palavras do articulista, leio que "toda teoria de diferenciação que pressuponha uma identidade substancial anterior, à qual o movimento de diferenciação se dirija, será uma teoria metafísica, ainda que a serviço de causas feministas" Bem, se isto não é autocontradição, o que será?
Você ainda está aí, querido leitor? Não me acompanhe neste caminho intrincado, acho que ele não vai levar a lugar algum. Mas, se quiser, nada me dará maior prazer que sua companhia, enquanto vou tentando me encontrar nesta leitura.  Estou aqui exercitando o "princípio diferencial da escrita como apropriação incacabada". Estamos a caminho,  na estrada de Damasco, e logo seremos fulminados pelo raio divino, o relâmpago que nos permitirá entender o feminino como o  "movimento centrífugo que a verdade realiza em direção a zonas de indeterminação".
Pensa que isso basta? Não. Estamos nos aproximando de uma "verdade mais verdadeira", a de que Deus é o modo absoluto do feminino. E Nietzsche? ao dizer que era uma nuance estaria ele se definindo como uma mulher?  Não. Sim. Não! "Nietzsche  estaria se definindo como o próprio Deus se definiria a si mesmo", é a conclusão de Rodrigo Petrônio, Mestre em Teoria da Literatura e em Filosofia da Religião.
Faço uma pausa. Respiro fundo. Penso que deveria ir tocar tambor. Mas fico por aqui mesmo, e de meu cérebro confuso nasce um signo, rebrilhando. Feldspato. Nunca mais tinha ouvido falar nele. Nunca mais tinha escrito essa jóia linguística, feldspato. Linda palavra, belo signo. Incongruente. Sonoro. Difícil.  Acho que o feldspato é Deus. Ou uma nuance de Deus.

No comments: