Saturday, September 21, 2013

Saqueando a realidade

Sou de uma estranha raça de bípedes que adora ir a palestras literárias. Vou, não só para falar, mas também para escutar. Isso é o que me torna "estranha". Geralmente as pessoas comparecem por alguma razão alheia ao discurso do "outro". Vão escutar a própria voz. Vão porque a professora vai passar uma lista de chamada (alguns, uma vez assinada a lista, saem descaradamente). Ou vão porque devem favores a quem fala. Outros, ainda, vão porque têm a chance de pegar o microfone que se abre para perguntas e, sem perguntar nada, fazer uma conferência paralela. Algumas pessoas vão às palestras por causa do prestígio do local, ou do palestrante. Algumas estão ali como eu: esperando para escutar o segredo revelado do universo. Claro que nem sempre a gente escuta algo que preste, mas quase sempre aprendo alguma coisa, boa ou má.
Ultimamente, tenho escutado a mesma coisa, repetida ora como confissão, ora como queixa. Um escritor que confessa que coloca fatos reais nos seus romances. Uma que reclama que, conversando com outro escritor numa festa, ou num bar, disse alguma coisa interessante – ou proibida, daquelas que se diz na intimidade, entre amigos – e que recebeu o aviso: "vou usar isso no meu livro, já estou avisando!" Numa diferente versão, fico sabendo de livros que se dizem de ficção, mas que contam as histórias e os nomes de seus conhecidos, apenas tomando algumas "liberdades poéticas".
Então quero propor aqui a leitura de A louca da casa, de Rosa Montero. Ela nos dá uma boa lição do que seja o trabalho literário, que toma como ponto de partida a realidade, mas depois deixa que a "louca da casa", nome que Sor Juana dava à imaginação, apropriar-se da pena e narrar. Assim, um episódio como (já não me lembro bem qual é) uma briga com o namorado e uma posterior ida à casa dele, dá origem a umas três histórias diferentes, completamente diferentes do que se passou – se é que se passou. Em  Rimas da vida e da morte (acho eu que é esse o título) Amós Oz dá uma lição magistral de como tirar leite das pedras, ou seja, ficção da realidade. O livro principia com uma possível confissão autobiográfica, de um autor que vai a uma palestra para ouvir sempre as mesmas perguntas, superficiais,  e, mesmo no meio do tédio e das dúvidas, ele é capaz de fazer dessa plateia uma matéria prima pulsante, viva, e, no entanto fantástica, onírica.
Só queria registrar aqui, neste meu cantinho escondido, que saquear a realidade e colocá-la entre as páginas de um livro não cria uma obra realista, cria, no máximo, uma reportagem. Romances não são reality-shows, são muito melhores do que isso. E o escritor não é uma câmera escondida, flagrando amigos e conhecidos em situações embaraçosas, e colocando-os na berlinda. Nem mesmo a nossa própria vida merece se expor desta maneira, nua e crua, sem um bom photoshop literário. Literatura é arte e arte é surpresa e reinvenção. Vejam os impressionistas, que saíram de dentro de seus estúdios, procuraram pintar a natureza e fizeram quadros que ninguém reconhecia como "realidade". Eles nos ensinaram, ampliaram os limites do que vemos como "real". Ensinaram que tudo o que vemos é mediado e nos fazem pensar até hoje. Pois taí o da Vinci (será que é ele mesmo?) que não me deixa mentir: "arte é coisa mental". E eu acrescento: arte também é generosa: por que ferir um só, se com um pouquinho de trabalho a gente pode ferir a todos?

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