Não ia mais falar de poesia, mas eis que a Celina me telefona ontem. Sua antologia ainda está ao meu lado e é natural que, depois de trabalhos e assuntos vários, a conversa se encaminhe para comentários sobre a obra. Ela cita os versos iniciais do soneto do Secchin, que a assombram:
Revejo a luz gelada de manhãs perdidas
e os sonhos que eu mandei para o endereço errado.
Qual de nós não mandou ao menos um sonho para o endereço errado? Ou não recebeu um sonho que não lhe pertencia de direito? Mas se à Celina chamou atenção o "endereço errado", fiquei encantada com "a luz gelada de manhãs perdidas". Essa inusitada luz, que rege todo o soneto e que desapropria o lugar dos sonhos, não mais reclusos no sono, tornando-os conscientes, voluntários e por isso mesmo mais dolorosos, é antecedida pelo verbo rever, no presente. Sísifo, suspeito. E julgo ter acertado quando, ao final, um outro verso vem surpreender-nos: "rolando sem parar pela memória acima."
Adoro o poema, mas a estudante de literatura cede lugar à amiga, que fica refletindo em coisas paralelas, tais como a multiplicidade destas sombras à beira do quarto: fantasmas ferozes, com desdenhosas garras de rapina. Imagino meu amigo, tão contido, tão discreto, homem do silêncio farto, em confronto com esse poeta, todo sentimento, incapaz de parar de amar, colocando sonhos em garrafas que ele atira pelos bordos de seu barco sóbrio e que não se dissipam nem flutuam para longe, encravadas no lodo seco que paralisa sua viagem. Um soneto de amores passados, de amores infelizes que se repetem mesmo que só memória acima. Na luz gelada do espelho, sua lição é amarga, embora o olhar ainda seja seu ele não pode se rever. Só encontra a luz gelada de manhãs perdidas.
Quem fala aqui? A leitora, falhada, de poesia? A amiga? Sem dúvida a amiga, que se preocupa ao notar os signos de dor, sofrimento e por sentir, em sintonia, a ferocidade das emoções. À leitora treinada não caberia preocupar-se com os motivos do poema, pois ela saberia que o poeta é um fingidor, e que o leitor só poderá conhecer a sua própria dor.
Celina me desqualifica, diz que não mandei sonhos para o endereço errado. Mas talvez tudo tenha sido obra do acaso. Talvez eu tenha jogado minha garrafinha sem endereçá-la, e ela tenha alcançado a praia correta, de águas amnióticas, que me tenha ajudado a renascer. Mas nem por isso deixo de ter fantasmas que me venham revisitar. Na luz gelada das manhãs, tudo se materializa.
Eu disse, eu avisei. Sou péssima leitora de poesia. Mas amo os poemas, pequenas jóias que rebrilham nos cabelos da Sereia Literatura.
Revejo a luz gelada de manhãs perdidas
e os sonhos que eu mandei para o endereço errado.
Qual de nós não mandou ao menos um sonho para o endereço errado? Ou não recebeu um sonho que não lhe pertencia de direito? Mas se à Celina chamou atenção o "endereço errado", fiquei encantada com "a luz gelada de manhãs perdidas". Essa inusitada luz, que rege todo o soneto e que desapropria o lugar dos sonhos, não mais reclusos no sono, tornando-os conscientes, voluntários e por isso mesmo mais dolorosos, é antecedida pelo verbo rever, no presente. Sísifo, suspeito. E julgo ter acertado quando, ao final, um outro verso vem surpreender-nos: "rolando sem parar pela memória acima."
Adoro o poema, mas a estudante de literatura cede lugar à amiga, que fica refletindo em coisas paralelas, tais como a multiplicidade destas sombras à beira do quarto: fantasmas ferozes, com desdenhosas garras de rapina. Imagino meu amigo, tão contido, tão discreto, homem do silêncio farto, em confronto com esse poeta, todo sentimento, incapaz de parar de amar, colocando sonhos em garrafas que ele atira pelos bordos de seu barco sóbrio e que não se dissipam nem flutuam para longe, encravadas no lodo seco que paralisa sua viagem. Um soneto de amores passados, de amores infelizes que se repetem mesmo que só memória acima. Na luz gelada do espelho, sua lição é amarga, embora o olhar ainda seja seu ele não pode se rever. Só encontra a luz gelada de manhãs perdidas.
Quem fala aqui? A leitora, falhada, de poesia? A amiga? Sem dúvida a amiga, que se preocupa ao notar os signos de dor, sofrimento e por sentir, em sintonia, a ferocidade das emoções. À leitora treinada não caberia preocupar-se com os motivos do poema, pois ela saberia que o poeta é um fingidor, e que o leitor só poderá conhecer a sua própria dor.
Celina me desqualifica, diz que não mandei sonhos para o endereço errado. Mas talvez tudo tenha sido obra do acaso. Talvez eu tenha jogado minha garrafinha sem endereçá-la, e ela tenha alcançado a praia correta, de águas amnióticas, que me tenha ajudado a renascer. Mas nem por isso deixo de ter fantasmas que me venham revisitar. Na luz gelada das manhãs, tudo se materializa.
Eu disse, eu avisei. Sou péssima leitora de poesia. Mas amo os poemas, pequenas jóias que rebrilham nos cabelos da Sereia Literatura.
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