Penso numa época em que a esfera era sinônimo da perfeição. Como tal, era sagrada. Falar do círculo ou da esfera era falar de Deus. Com o tempo, o divino foi perdendo sua substância, até que Aristófanes, o engraçadinho grego, fez piada com isso, cortou-os ao meio, combinou-os por gêneros, explicou amor e homossexualidade com essas imperfeições marcadas pela sua cicatriz.
Agora explicamos a vida toda através da cicatriz. O monstruoso torna-se assombroso, e nem mesmo isso: engenhoso, apenas. Olhamos por alguns segundos, e já pensamos em outras coisas, em enchentes, em secas, em aviões que caem, em países que desmoronam. Nem lembramos do nome do criador nem da criatura. Mary, acho que já ninguém compreenderá o susto que tua história gerou. Hoje tua criação é pasto para possiveis engraçadinhos pós-modernos. Mas a pós-modernidade não sabe rir de si mesma. Leva-se muito a sério, sem sonhos nem delírios. Exibe a realidade e a fragmenta, como criança entediada que após construir a torre de Lego a desfaz, procurando uma nova distração. Em algum lugar de minha lembrança, tão fugaz, grava-se a lembrança desta Lady Frankenstein. Dizem que ela sorri, testemunham sua fala e seu júbilo. Eu não vi nada disso. Vi a cicatriz. Olhei os olhos de um ser solitário, criado pela mão humana, após ter sido destruído por mão desumana. Vi uma solidão. Que se multiplica em outros assombros, em mais antigas engenhosidades. Pergunto-me: para quem Mary Shelley contaria sua história nos dias de hoje?
1 comment:
Olá, Lucia. Bela reflexão - "A pós-modernidade não sabe rir de si mesma". Este assunto é um dos temas recorrentes nos livros de Bauman (http://www.zahar.com.br/catalogo_autores_detalhe.asp?aut=Zygmunt+Bauman), um dos autores da Zahar. Ele pergunta se a vida contemporânea nos tira o direito à felicidade, com toda a busca por prazeres efêmeros e capitalistas. O próprio mundo em que vivemos, cercado por cercas e janelas, nos impede de vivermos mais à mercê.
Um abraço
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