Como já disse, estou num clima de comemorações. Aniversários, aniversários...Hoje, dia dos pais, comemoro o aniversário de meu filho em tom menor. As faltas se impõem, e é a custa da lição de Mário que faço as figuras paternas diminuírem e subirem para o céu, brilhando em alguma constelação, como lágrimas. Acho que preciso voltar a ler Macunaíma, para me divertir um pouco e experimentar outras consciências... Quem nunca leu Macunaíma? Será que hoje em dia ainda se lê Macunaíma? Será que em algum lugar remoto um grupo se reúne, todas as semanas, para ler e reler a obra de Mário? Pergunto isso porque faço parte de uma espécie de seita, que se reúne todas as semanas, há uns dez anos, para ler e reler Proust. A Rachel Jardim é a nossa "diretora de orquestra" regendo opiniões e ritmos, muitas vezes adoravelmente desafinados. Porque existe um encanto na desafinação -- uma espécie de despertar.
Nesta enevoada manhã de domingo, pensando em figuras paternas, me descubro pensando que meus "pais" são de papel, e que um não tocaria na mesma orquestra que outro, embora até pudessem se admirar mutuamente. A Rachel gosta de fazer aproximações: Proust e Eça, Proust e Machado... Todos experimentaram o delírio da Belle Époque, que, provavelmente, só foi bela para quem era classe dominante. Dos três, Eça ficou conhecido como um combativo na área da política, sendo que Proust e Machado foram chamados de alienados -- ledo engano. Nenhum escritor deixa de falar de seu tempo, nem deixa de pensar sua sociedade. Mesmo quando liricamente contemplando seu próprio umbigo, a vida de sua época está ali representada, as classes sociais, as ideologias da época, as correntes políticas aparecem em painéis, mais ou menos explícitos, mais ou menos hábeis. Quanto mais abrangente e universal a obra, mais encontraremos no texto, porém mais poderosas hão de ser as lentes para examinar os detalhes: Pensemos, por exemplo, em Brueghel, ou em Arcimboldo, quadros que contemplei recentemente e que ainda estão gravados em minhas retinas.
Estou relendo o texto que preparei para expor no Seminário Machado de Assis, tentando ajustar o texto aos 15 minutos a que farei jus amanhã. Corto e recorto, dou uma franzidinha aqui, faço uma prega no texto acolá, e me surpreendo com a quantidade de coisas que já se falou e se escreveu sobre O Espelho. Um conto, que não é dos mais longos, e que já suscitou tanta reflexão! O tema da minha comunicação é ele, mas praticamente todos os outros trabalhos, falando sobre diferentes aspectos da obra de Machado, dentre os que tive a oportunidade de assistir, tocaram neste conto. Uma moda, talvez? Há alguns anos atrás, era Missa do Galo, o conto que não saía da pauta. Desta vez, não escutei sequer uma menção, mesmo com o re-lançamento do livro que junta diferentes versões da missa machadiana (e eu mesma cometo essa ousadia, nesse meu livro que está prestes a sair-- confiram o conto Insônia). Desta vez, são dois os contos que disputam os holofotes: O espelho e A cartomante. Fiquei até com vontade de escrever sobre as metamorfoses no espelho (alguém já deve de ter escrito isso) acompanhando a trajetória do tema passando por escritores tão diferentes quanto Guimarães, Cecília Meirelles e Clarice. E pensando, quem, dentre nós, não se deixou ficar olhando para sua própria imagem no espelho, tentando encontrar a resposta para a mais difícil questão: Ser -- como somos? o que somos? quem somos? quando somos?
A gente se olha no espelho até se "dessensibilizar", e passar a encarar aquela imagem como uma coisa corriqueira. De vez em quando, nos estranhamos, e nos detemos, examinando, criticando, surpresos de que a imagem refletida não seja correspondente à imagem mental que fazemos de nós mesmos. No entanto, as mudanças se operam lentamente, com os pequenos golpes dos cinzéis liliputianos dos segundos, ou dos micronésimos de segundos que agora somos capazes de registrar, embora não de perceber. Proust criou um espelho em sua obra e colocou um "velho" contemplando a "criança", atando as duas pontas da vida, como Casmurro tentou, e conseguiu. O que o perverso do Machado fez foi desmascarar a impossibilidade de olhar com os olhos inocentes: toda narrativa é crítica e tendenciosa. Acorde "leitora ignorantona" -- narrar é manipular, e eu estou aqui te mostrando isso, mas você é muito "burrinha"e se prende apenas aos episódios, não vê que, ao aproximar recortes, estou fazendo aquilo que o cinema e a TV fazem: manipulação, reconstrução, interpretação tendenciosa, que pretende levar a sua interpretação à minha opinião. Machado entendeu como ninguém o que era literatura. Proust também, mas guardou seus achados para uso pessoal. Machado dissecou a mosca azul e romanceou essa dissecção. Proust chamou atenção para o seu vôo, mas não negou que ela pousava sempre no mesmo lugar, embora já não fôssemos os mesmos, modificados entre o alçar vôo e o pouso. Ambos, em algum momento, são acusados de prazeres sádicos. E eu termino, em clima sermonesco (claro, estou relendo o Padre Antônio Vieira), dizendo: bem aventurados os sádicos, pois são eles os capazes de narrar, eximindo-nos da culpa de viver. Se a vida pode ser uma obra de arte quando narrada, nossa canalhice, nossas baixezas, nossa insignificância se hão de redimir e serão justificadas, nas narrativas. Machado deseja revelar o processo que aplaca nossa consciência, Proust deseja mostrar que nossa consciência mascara o processo. Os dois compreendem o processo e o usam com finalidades diversas, mas eficazes. Os autores são mestres, e nunca periféricos. Os leitores são ignorantões, mas poderão, guiados, chegar a pequenas epifanias, pequenos orgasmos, ou seja, diminutas mortes. E é só da perspectiva dessa morte que se narra o mundo... O aleph, que engendra o beth, que engendra gama e todo o alfabeto da escrita. Faz sentido? Se não faz, ficou bonito, para finalizar o texto.
1 comment:
Justamente quando a barbárie irrompe novamente no centro da Europa, a leitura deste post restaura um pouco da nossa confiança "no que os artistas podem fazer." Creio que este conflito na Georgia tem todos os ingredientes para se expandir: as tropas da Geórgia são treinadas pelos EUA e por Israel e estão conseguindo em parte neutralizar o poderio russo, inflingindo perdas pesadas nas últimas horas. Ora, Proust assistiu de longe os combates aéreos sobre Paris (pelo menos é o que suponho no Tempo Redescoberto), numa provavel intimidade com a angústia dos combates. Comentar Proust numa cidade tropical e infernal como o Rio é, por si mesmo, um ato civilizatório. Bem, é para o que servem os artistas, não é? Mostrar que as trevas não encerram tudo. Li uma vez e reli anos depois a obra de Proust. Minha é a antiga edição da Editora Globo, 1957, com as capas adornadas por gouaches ingênuos, que sempre me agradam. Está meio descascada, preciso mandar encardenar num futuro próximo. Vou mandar abrir uma janela na capa dura, pra deixar os gouaches aparecendo.
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