Ontem à noite fui a uma palestra no Centro Loyola. Não sei se conhecem o local, ali perto do parque da Cidade, ao lado da Escola Parque, uma casa com um belo projeto arquitetônico, mas que não sei de quem é. Tem cara de ser ou do Niemeyer ou de um discípulo dele, com aquelas colunas meio arcos, que parecem uma ilustração de um salto. O Centro pertence a PUC, e antigamente só faziam cursos relativos a teologia, estudos bíblicos, sei lá. Agora querem fazer dali um verdadeiro centro cultural, com atividades de literatura, música etc. Ontem convidaram um poeta que também é músico, mestre e doutor em Letras, egresso de um curso de engenharia. Ele me falou de sua tese, um projeto tripartido sobre Tobias Barreto, de mais de mil páginas. A primeira parte era desenvolvida em forma de romance, onde se contava a experiência do doutorando que, na véspera de sua defesa de tese, vai tomar umas biritas num bar onde todas as pessoas que encontra sabem muito mais de Tobias Barreto que o próprio. Desconsolado, ou bêbado, o doutorando desmaia e acorda na segunda parte da tese, uma peça teatral de época, com personagens contemporâneos a Tobias Barreto. A terceira parte eu me esqueci como era, mas acho que se compunha de textos de pessoas que haviam contribuído para o interesse do doutorando no autor escolhido. O que me levou a conclusão de que devo estar no lugar errado. Acho que na UFF ninguém está se ficcionalizando na hora da tese, e eu vou perder a chance de fazer de mim mesma, uma personagem. Ou será que devo inaugurar uma tradição?
Eu, que tento me esconder como um bichinho assustado, que até hoje tenho ataque de ansiedade antes de aulas e seminários -- embora adore dar aulas-- que escamoteio nomes até em personagens, nunca faria isso. E, no entanto, conforme disse ao Guido, me acho bem corajosa. Corajosa porque conheço o medo e o enfrento. Corajosa porque o que tinha de mais precioso já perdi, mesmo, e agora o resto não importa. Mas, voltando ao título, enquanto esperava que a palestra começasse, fui inspecionar uma folhinha (ainda existem!) pregada na parede, que anunciava o santo de cada dia. Impressionante. Ontem era dia de São Adalberto, e de São Próspero, e ainda de mais um outro, cujo nome já me esqueci. Cada dia tinha uns dois ou três santos, abençoando-os, e clamando seus direitos. Nossa, com essa história de vida eterna, o outro mundo deve de estar mais apertado que lata de sardinha. Quando eu morrer, dificilmente vou encontrar as pessoas com quem gostaria de passar a eternidade. Conforme for, a gente nem vai conseguir encontrar um conterrâneo, ou mesmo um coetâneo. Até que era uma boa idéia, um romance assim na minha tese: vejam -- os autores de que trato estão todos mortos, e assim seria engraçado que eles se esbarrassem na eternidade. Numa eternidade sem religião, ócio puro, sem nem anjinho tocando alaúde, nem trombeta, nem harpa, ou seja lá o que anjos tocam. Mário de Andrade, ansioso por continuar suas pesquisas musicais, encontrando com Carpentier e Lezama Lima, começam a conversar sobre ritmo e ritmos, os vitais e os essenciais, os efêmeros e os eternos. Lezama se ateria ao ritmo da respiração, defenderia o canto, enquanto Carpentier discorreria sobre os tambores e o jazz, a subversão da linguagem musical devolvida ao mundo blasé e existencialista da Europa. Mário, um colecionador, estaria gravando as cantigas e tentando descrever o mato que pareceria sufocá-las com suas gavinhas. Sócrates assistiria a tudo, lamentando a falta de flautistas, que ele havia desprezado em vida. Numa rede, tranquilo e elegante, Callado assobiaria antigas canções de Carnaval, com saudades das lança-perfumes. Enquanto isso, uma doutoranda, esfalfada e provavelmente cheirando a refogado, se esforçaria em servir uma mesa com vários alimentos, servidos em louças que imitavam livros abertos. Pilhas de empadinhas, montanhas de ambrosia, rios de café, peixes e pães metafóricos se espalhariam pelas toalhas que estariam sendo bordadas por nativas americanas, nuas, de corpos pintados e mãos incessantes...
Vou propor à minha orientadora. Quem sabe?
Boa noite, então, aos meus leitores. Peço a São Guido e a Santa Eugênia, a Santa Lúcia e a Santo André, a São Próspero e a Santo Ariel, a São Pedro, São João e Santo Antônio, a São Judas Tadeu e a São Jorge, a São Marcelo e a Santa Marcelina, a Santo Agostinho (gosto dele: dai-me a castidade, mas não agora!) e a Santa Mônica, a São Guilherme, aos santos que conheço e aos que desconheço, que nos protejam a todos e que nos reservem um lugar na multidão da outra vida.
1 comment:
Alejo Carpentier e santos: "El Harpa y la Sombra", uma novelinha maravilhosa, que trata da canonização de Cristovão Colombo. O Navegador perambula pelos corredores e salas da Santa Sé, escutando as argumentações em contra e a favor de sua santificação. Bacanérrimo!Quando descobri Carpentier, numa viagem à isla em 1878 cai fulminado. Adoro "El Siglo de las Luces", mas acho que posso dizer o mesmo de todos os livros de Alejo - inclusive do pequenino "El Derecho de Asilo"
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