Thursday, March 27, 2014

Fotobiografias

Acaba de me chegar às mãos a fotobiografia da imortal Nélida Piñon.  O título é Tenho apetite de almas, e isso me faz lembrar a crença de alguns, que não se deixam fotografar por medo de que lhe capturem as almas. O livro se torna uma fonte preciosa para historiadores da cultura, pois raro é o escritor e o intelectual consagrado seu coetâneo que não se encontre devidamente fotografado, identificado e arquivado. Quase sempre sorridente, Nélida aparece desde a mais tenra idade, entre seus familiares entre os quais se destacam sua mãe e seu avô Daniel (a quem deve o nome, em anagrama). Fotos tiradas em casa, mas também em palácios e templos da cultura, em recantos que lhe evocam boas memórias, em locais que a imaginação tornou míticos. Comendas, cartas, dedicatórias, capas de livros se multiplicam e disputam espaço com Gravetinho Piñon, o cachorrinho bem amado, e com figuras da política brasileira e internacional. Ao final, sob o título "não deu para falar", uma lista de prêmios e de nomes de amigos e colegas, de participações em atividades culturais e a constatação de que, possuindo um curriculum vitae de 150 páginas, era inevitável a necessidade de algumas ausências na obra. São tantas as coisas e pessoas deixadas de fora que, quem sabe, talvez ainda apareça um vol.II da obra em questão. Até porque a escritora continua produzindo, e brilhando pelo mundo afora, tal como o broche em formato de sol, que ostenta na capa do livro.
Sou encantada por essas fotobiografias. Tenho a de Proust e a de Rimbaud, que foram organizadas por ocasião de seus centenários. Tive a de Clarice, que se extraviou, infelizmente. Acho delicioso ver as fotos de lugares e reproduções de manuscritos. Também vou a exposições de "centros de memória", e encontro pequenos retalhos de vida que muito me comovem. Só uma coisa me atrai e repele, ao mesmo tempo: as máscaras mortuárias. Essas esculturas são fascinantes para quem não teve a chance de ver o rosto fino de Olavo Bilac em vida, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, como não pensar que ali o rosto já não é habitado pelo espírito que fez daquela face um símbolo de sua época? Bem, não vou me alongar aqui, citando Proust com relação ao rosto de sua avó morta, de onde toda a velhice e a dor foram subtraídas ao enrijecer-se. Prefiro, sem dúvida as fotos, os retratos que se chamaram, um dia, de instantâneos mas também aquelas fotos posadas, feitas em estúdios, nas quais os cenários e gestos congelados revelavam quase tanto quanto o próprio rosto fotografado.
Só para terminar, acredito que o livro que folheio é um testemunho de nossa época, e estou convencida de que sua existência revela mais sobre os tempos em que vivemos do que suspeita nossa vã filosofia.

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