Algumas coisas que leio me remetem a livros fantásticos. Hoje, por exemplo, na coluna do Francisco Bosco (pelo qual professo a mais absoluta admiração) leio: ""li um livro que me fez largar o emprego, mudar de cidade e resolver estudar literatura". Não foi o cronista, mas um colega de turma que se apresentou desta maneira. Um colega de turma que se ficcionaliza tanto quanto a Francesca de Dante, condenada ao inferno por causa de outro livro, tão tentador que lhe fez abandonar os mandamentos, mudar de amante e mergulhar no inferno das grandes paixões.
Num poema que escrevi há muito tempo, imploro à Francesca que me revele o nome do livro, pois já tenho os dedos descarnados de tanto folhear as páginas à procura de semelhante turbilhão. Pelos vistos, o James, que devia ser professor do curso sobre romantismo, o encontrou. Um livro que muda nossa vida, que nos arremessa como uma folha num dia de vento, para cima, para baixo, e de simples e decadente folha seca nos transforma em pássaro, nos eleva, nos mostra o mundo sob outra perspectiva que nunca mais poderá ser esquecida.
James, Francisco, Francesca que livro é esse?
Estou bem grandinha para desconfiar que cada qual tem o seu. E talvez não seja o livro em si, mas a chave que trazemos conosco que nos abre a porta da paixão. Li e reli a história de Lancelot, em diferentes versões. Eu não tinha a mesma chave de Francesca. Não tinha ao meu lado alguém, trêmulo de desejo, que me beijasse a boca. E, se tivesse, será que teria correspondido ao beijo? Duvido. Para mim, os versos de Dante são mais tentadores que a história do herói e de sua rainha adúltera.
Estou, também, desconfiada, de que talvez esse "livro" mítico que procuro tenha sido encontrado por mim antes mesmo que eu tivesse a noção de que ele mudaria a minha vida. Não precisei abandonar tudo e mergulhar num ímpeto porque fui seduzida, ainda criança, por uma flauta melíflua e doce que me levou para reinos encantados, onde anseio habitar.
Ontem, trocando mensagens com um amigo, lhe confessei que meu maior sonho seria ser personagem, viver dentro da proteção da capa de um livro, habitante de uma estante onde tivesse vizinhos fascinantes. Ele me respondeu –ah, esses homens e seus hormônios simplificadores! – que isso era fácil, que somos aquilo que escrevemos. Somos? Mas quem somos? Se o que aflora em nossa escrita é o não-dito, como nos reconhecer? Se o que desejamos é trocar de identidade, como ser aquele pelo qual nos trocamos? Damos um pouco de nós a cada personagem, mas eles não nos representam. Nem mesmo quando escrevemos em primeira pessoa, num diário ou numa confissão, logramos ser aquele que surge do mar de tinta, como uma vênus, ou um monstro marinho.
Volto a citar Francisco Bosco: "A experiência da leitura não se esgota ao fim de sua atividade: prolonga-se depois de fechado o livro, instala-se na mente do leitor, transformando-a, e assim confunde-se com a sua vida, transformando-a também." Tudo o que lemos nos modifica, tudo o que escrevemos nos constrói, e assim, seres em construção, em permanente transformação, multiplicamo-nos e nos transformamos em enigmas. Se podemos, ao olhar a foto de um bebê, proferir a frase "esse sou eu" e não provocar a risada de todos os que nos escutam, é porque aprendemos a ampliar nosso ego em milhões de seres e de imagens que, em algum momento de nossas vidas nos representaram ou representam. Se Flaubert pode dizer que "Mme Bovary c'est moi" é porque ele também descobriu o que Rimbaud, aos 15, nos ensinou a todos: "Je est un autre". Esse mesmo Rimbaud, que, num par de versos, fez o Bosco conhecer o que é verão, também me fez, em outros conhecer o que é a dor. Mas, em nenhum momento, experimentei a dor lida. Conhecer, experimentar, ser: com uma gama tão complexa de avaliações, continuo a me perguntar que livro é esse? E sigo com as leituras, gastando olhos e dedos…
Num poema que escrevi há muito tempo, imploro à Francesca que me revele o nome do livro, pois já tenho os dedos descarnados de tanto folhear as páginas à procura de semelhante turbilhão. Pelos vistos, o James, que devia ser professor do curso sobre romantismo, o encontrou. Um livro que muda nossa vida, que nos arremessa como uma folha num dia de vento, para cima, para baixo, e de simples e decadente folha seca nos transforma em pássaro, nos eleva, nos mostra o mundo sob outra perspectiva que nunca mais poderá ser esquecida.
James, Francisco, Francesca que livro é esse?
Estou bem grandinha para desconfiar que cada qual tem o seu. E talvez não seja o livro em si, mas a chave que trazemos conosco que nos abre a porta da paixão. Li e reli a história de Lancelot, em diferentes versões. Eu não tinha a mesma chave de Francesca. Não tinha ao meu lado alguém, trêmulo de desejo, que me beijasse a boca. E, se tivesse, será que teria correspondido ao beijo? Duvido. Para mim, os versos de Dante são mais tentadores que a história do herói e de sua rainha adúltera.
Estou, também, desconfiada, de que talvez esse "livro" mítico que procuro tenha sido encontrado por mim antes mesmo que eu tivesse a noção de que ele mudaria a minha vida. Não precisei abandonar tudo e mergulhar num ímpeto porque fui seduzida, ainda criança, por uma flauta melíflua e doce que me levou para reinos encantados, onde anseio habitar.
Ontem, trocando mensagens com um amigo, lhe confessei que meu maior sonho seria ser personagem, viver dentro da proteção da capa de um livro, habitante de uma estante onde tivesse vizinhos fascinantes. Ele me respondeu –ah, esses homens e seus hormônios simplificadores! – que isso era fácil, que somos aquilo que escrevemos. Somos? Mas quem somos? Se o que aflora em nossa escrita é o não-dito, como nos reconhecer? Se o que desejamos é trocar de identidade, como ser aquele pelo qual nos trocamos? Damos um pouco de nós a cada personagem, mas eles não nos representam. Nem mesmo quando escrevemos em primeira pessoa, num diário ou numa confissão, logramos ser aquele que surge do mar de tinta, como uma vênus, ou um monstro marinho.
Volto a citar Francisco Bosco: "A experiência da leitura não se esgota ao fim de sua atividade: prolonga-se depois de fechado o livro, instala-se na mente do leitor, transformando-a, e assim confunde-se com a sua vida, transformando-a também." Tudo o que lemos nos modifica, tudo o que escrevemos nos constrói, e assim, seres em construção, em permanente transformação, multiplicamo-nos e nos transformamos em enigmas. Se podemos, ao olhar a foto de um bebê, proferir a frase "esse sou eu" e não provocar a risada de todos os que nos escutam, é porque aprendemos a ampliar nosso ego em milhões de seres e de imagens que, em algum momento de nossas vidas nos representaram ou representam. Se Flaubert pode dizer que "Mme Bovary c'est moi" é porque ele também descobriu o que Rimbaud, aos 15, nos ensinou a todos: "Je est un autre". Esse mesmo Rimbaud, que, num par de versos, fez o Bosco conhecer o que é verão, também me fez, em outros conhecer o que é a dor. Mas, em nenhum momento, experimentei a dor lida. Conhecer, experimentar, ser: com uma gama tão complexa de avaliações, continuo a me perguntar que livro é esse? E sigo com as leituras, gastando olhos e dedos…
No comments:
Post a Comment