Friday, December 30, 2011

Imaginações

Bem, vocês já me conhecem para saber que sou muitas, arlequinal como o poema do Mário de Andrade. 300 ou 350, ou mesmo milhares, fui criada dentro das crenças do mundo ocidental o bastante para saber que toda coisa boa tem seu lado ruim e vice-versa. Os deuses gregos me ensinaram isso com belos mitos, a mesma deusa que defende a castidade é a que protege o parto, para dar um exemplo não tão batido como o do deus que, padroeiro do comércio, presta iguais serviços aos ladrões. Sendo assim que meu gosto por imaginar coisas, se me constitui uma identidade como escritora, também mina minha necessidade de ação. O que imagino, muitas vezes, já não preciso fazer… Mas é esse me colocar no lugar dos outros que me permite criá-los como personagens, que sairão tanto mais verossímeis quanto eu conseguir imaginá-los. Seria esta a trama do romance do Coetzee? Acho que ele postula uma coisa mais sofisticada: os personagens criam sua autoria… Bem, no caso dele, acho que é um pedido de desculpas por ser assim, um descrente intrometido, de frios olhos analíticos, incapaz de amar. Neste romance que li, Slow Man, encontro uma verdadeira confusão sobre o amor, que nem o "retardado", nem a pretensa autora, nem ele mesmo conseguem apresentar. Mas não o culpo: olha que já tem uns dois mil e quinhentos anos que vamos tentando descobrir o que é isso, e nada! Ainda esbarramos em nossa incapacidade de definir o Amor. Eros e Psiquê, apaixonados para sempre, mas incapazes de se conhecer, aqueles danadinhos dos gregos antigos já nos haviam avisado…
E, no entanto, o que é que me toca no romance? A desesperada necessidade de amor de todos os personagens, principalmente daqueles que, já no ocaso, podem até desejar se enganar com um simulacro, mas que sabem muito bem que não se confunde amor com atenção, carinho ou seja lá o nome que se possa dar a esse sentimento meio doméstico de uma velhice acompanhada…
Sei que lido mal com minha viuvez: até hoje não me conformo e tenho raiva de continuar vivendo uma vida que agora me parece "mais ou menos", uma vidinha medíocre na qual deixei de representar o papel principal para transformar-me em coadjuvante. Onde está aquele que me iluminava e me aquecia com seu olhar? Se eu fosse outra, acho que teria saído a procura de alguém que substituísse os holofotes que se apagaram. Mas, leitora de Coetzee, como me satisfazer com simulacros? Mantenho-me, como o personagem amputado, recusando próteses e odiando meu ser incompleto.
Mas não vim aqui falar dessa Lúcia, que pode ser tão irreal quanto as outras que me habitam. Vim falar de outra coisa, muito diferente, de uma conversa que escutei por acaso, mulheres comentando o programa da Ana Maria Brega. Alguém se declarou no Bateau Mouche em Paris, tudo devidamente filmado e mostrado pelo programa, e uma das mulheres que conversavam dizia que esse era o sonho da vida dela! A outra disse preferir que a declaração fosse à meia-noite, sob o luzir dos fogos de Copacabana… Bem, confesso que estou editando um pouco o que ouvi, para pegar meu assunto pelo pé.  
E o pé é que fiquei me imaginando nas duas situações, querendo saber o que mais me agradaria. No Bateau Mouche certamente que não: fica muito bem na foto, mas conheço bastante aquilo lá para saber que esse barquinho só é bom em dia de chuva e frio em Paris. Bem quente, passeando suavemente pelo Sena, nos permite tirar uma ou outra foto e descansar as pernas cansadas de andar. Que ninguém suponha que vai ter um jantar romântico  e especial naquela armadilha turística!… Mas Paris tem seu charme, ser surpreendida num banco de praça com uma declaração deve ser muito bom! E já embarco numa fantasia completa: uma daquelas antigas livrarias que estão acabando, numa seção de poesia: ele retira um livro da estante, começa a ler um poema, um daqueles que eu mesma não saberia escolher, mas que passaria a fazer parte de minha vida para sempre. Depois, é claro, um afago, simples. O livro fechado numa das mãos, a outra estendida tocando o rosto dela (já virei personagem, nesta altura), delicadamente, contornando os lábios que ela separa sem nem mesmo perceber. Depois, puxando-a para si, ele murmura eu te amo dentro da boca da amada, como se estivesse lhe insuflando vida. Seu abraço se prolonga, mas é cheio de emoção pura, elevada. Ela, instintivamente, sabe que sua relação com ele, a partir desse momento, é mais séria, é uma união. E, antes que eles se separem, ela, com a cabeça escondida no peito dele o escuta perguntar: Você quer se casar comigo? Pergunta que ela não vai conseguir responder com palavras, mas com toda a vibração do seu ser, com nervos, sangue e alento que agora passam a fazer, com ele, um organismo único, inseparável!
Acorda, ó escritora! Será que alguém ainda diz essas coisas nos dias de hoje? As livrarias, tenho a triste certeza, já não estão mais de pé. Ou quando estão, têm mais telefones e kindles para vender que livros em belas encadernações de couro… Vejo no que escrevi o ranço do neoplatonismo, que me fez unir os seres num só, como se o casamento fosse o encontro com sua metade alienada. Cai na real, minha filha! Experimenta o cenário de Reveillon. Mas aí é preciso ser jovem, ter boa audição (como escutar uma declaração de amor no meio do espoucar dos fogos?) Ele tem que ser mais histriônico, gritar seu amor na frente de todos, e, otimista, não se preocupar com um possível assalto na hora de faíscar o anel em frente aos olhos de sua bela. O amor dos dois talvez tenha apenas a duração e intensidade dos fogos. É o suficiente. Afinal, 2013 já está se anunciando e ela vai precisar de mais emoções no próximo ano. Se não for outro amor eterno enquanto dure, será a maternidade, anunciada na praia ou na mesa do La Mole, restaurante que se orgulha de fazer parte da vida de seus clientes.
E assim vou me distraindo da solidão, me conformando com a mediocridade da vida singular, e sobrevivendo a essas datas de tanta loucura, de tantas manifestações…

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