Tuesday, November 24, 2009

Um aviário…

Bem, hoje estive com o grupo da UFF, o Nação/Narração. Na volta, viemos falando abobrinhas, mas abobrinhas sérias, muito literárias. Comecei contando a dita história da galinha, que muito me impressionou e comentamos como galinha é coisa literária: Clarice e João Cabral, Guimarães Rosa, mais barroco, optando pelo peru, garanto que se pesquisarmos encontraremos um galinheiro completo cacarejando nas estantes. É que, se pensarmos bem, galinha é mesmo um bicho que parece feito para servir de assunto – uma ave que não voa, cujo canto não passa de um cacarejo, que passa a vida ciscando o chão, que divide um galo com não sei quantas outras galinhas, e que ainda põe ovo e dá canja… E são feiosas, pouco inteligentes, mas têm os filhotes mais lindinhos. Quem é que não se encanta com os pintinhos amarelinhos, aqueles que eram vendidos na feira e que, nos tempos de Clarice, eram levados para casa para servir de brinquedo a criancinhas que se transformavam, graças às avezinhas, em aprendizes de sádicos? As galinhas emprestam seu nome para mulheres assanhadas, embora, em sua aparência, lembrem senhoras mães de família, gorduchas e protetoras.  Hoje povoam os sonhos de qualquer pepsi, peladas, untuosas, fazendo pole dancing nas grelhas de padaria. 
Há uns 15 anos atrás, encontrei uma mulher que tinha, em seu apartamento, um galo de estimação. Encontrei-a na sala de espera de um veterinário, levando seu galo numa coleira. Tratava-se de um galo garnizé, ela me explicou, por isso ele era pequenininho. Perguntei-lhe se o galo não cantava, e ela me garantiu que cantava, que todas as manhãs ele saudava o nascer do sol em alto e bom som. Perguntei-lhe o que é que os vizinhos achavam dessa cantoria, e ela ofendeu-se, mas respondeu a verdade, que eles não gostavam, mas ela não estava nem aí para o que os vizinhos pensavam. Nessa época eu nunca tinha sido acordada pelo cantar dos galos, mas já conhecia o poema de João Cabral, que adoro. Fiquei solidária com a mulher e com seu galo puxado pela coleira, imaginando os esforços dele para tecer uma manhã em meio aos ruídos da cidade.
O tempo passou e fui para Tiradentes, fora de estação. No hotel, só eu e Guilherme, num quarto gelado e escuro como breu. E, no meio daquela escuridão, os galos começaram a cantar. O sol estava longe de nascer, mas os galos começaram com sua melodia rouca, soltando seu grito enferrujado. Nós dois acordamos, friorentos, sem entender o que era aquilo. Os galos insistiam. Primeiro era só um, que repetia seu refrão. Pouco a pouco ele foi persuadindo outros a soltarem seus cantos. Cada qual tinha sua voz, mas todas eram roucas. Uns soavam bem ao longe, outros pareciam próximos, vizinhos de porta. Tampávamos os ouvidos, cobríamos a cabeça com nossos travesseiros, mas os galos e seus cantos penetravam todas as barreiras, nos tiravam o sono. Comecei a recitar os versos de Cabral, os poucos pedaços que sei do poema Tecendo a manhã. Um galo sozinho não tece uma manhã, ele precisará de outros galos que cruzem os fios de sol de seus cantos… até que a manhã, teia, tecido, se eleve, luz balão. Tudo truncado, eu sei, nunca decoro nada certo. Por fim, estávamos apaziguados, sorrindo no escuro e vendo nossa manhã se entretecendo em nossos risos, uma manhã que se iluminava dentro de nós, como um sonho, trazida pela voz rouca do tear dos galos. E, para que todos possam conhecer ou lembrar do poema de João Cabral, copio ele abaixo, em sua beleza. Muito mais do que uma manhã, trata-se de uma utopia. 

Um galo sozinho não tece uma manhã: 

ele precisará sempre de outros galos. 
De um que apanhe esse grito que ele 
e o lance a outro; de um outro galo 
que apanhe o grito de um galo antes 
e o lance a outro; e de outros galos 
que com muitos outros galos se cruzem 
os fios de sol de seus gritos de galo, 
para que a manhã, desde uma teia tênue, 
se vá tecendo, entre todos os galos.


2


E se encorpando em tela, entre todos, 
se erguendo tenda, onde entrem todos, 
se entretendendo para todos, no toldo 
(a manhã) que plana livre de armação. 
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo 
que, tecido, se eleva por si: luz balão. 


Antes de me despedir, me deslumbro pensando na incrível paciência do Guilherme. Ele adorava dormir, mas casou-se com uma maluca que sempre achou que dormir é perder tempo. Para mim, esse acordar no meio da madrugada para ficar recitando poesia era (e ainda é) um verdadeiro deleite. Para ele, só pode ter sido sinal de muito amor. Então fico aqui, repetindo os versos e repassando lembranças que, entretecidas, se elevam e me levam de volta aos fios de sol de seus braços: meu casulo, meu ninho.

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