Medo de voar
Lúcia Bettencourt
A curva jogou-a de encontro à janela do ônibus e ela estremeceu, olhando para a rua lá embaixo. O viaduto nunca lhe parecera tão alto.
O motorista continuava acelerando, aos arrancos, o motor ganindo, os freios rangendo a cada pisadela que impedia que o veículo se precipitasse sobre outros, igualmente impacientes, também disputando os espaços com agressividade.
Foi com alívio que viu a parada chegar e saltou do ônibus com pressa, antes mesmo de seu destino. Ainda era cedo, tinha tempo, podia andar, sentindo-se presa ao solo, sem a ameaça dos abismos e da velocidade. Atravessou a praça, esquivando-se entre as pessoas que hesitavam entre apressar-se para os empregos ou usufruir por mais alguns momentos a luz do sol, o frescor da manhã.
Todos ali, em suas roupas simples, dirigiam-se a trabalhos em cubículos fechados, em salas mal ventiladas. Poucos eram os felizardos que se encaminhavam para escritórios refrigerados. A maioria era como ela, trabalhando em antigos sobrados adaptados em oficinas, em depósitos, em pensões baratas, que enchiam o ar com seus odores de comida frita em óleo requentado, ou com seus cheiros químicos de solda, de desinfetante, de produtos vencidos.
Deu uma última olhada na praça mal cuidada. Uma flor raquítica resistia bravamente à poeira e ao calor. Flores e borboletas eram seus desenhos prediletos. Na fábrica de bijuterias onde trabalhava, escolhia sempre as miçangas e as contas mais coloridas, combinando-as de acordo com as lembranças de seus livros infantis. Borboletas de asas abertas, com desenhos repetidos de um lado e de outro, como imagens no espelho. Flores com sua simetria simples, pétalas que se repetiam iguais, como seus dias.
Subindo a escada de madeira, os rangidos embalavam seus pensamentos. Um dia, ela havia prometido ao pai, um dia ela teria o seu próprio jardim. Um dia , as flores que ela mesma semeasse seriam tão belas que atrairiam as borboletas, os besouros, os pássaros. O seu jardim seria uma festa de flores, pássaros e insetos voando, pousando apenas quando quisessem um novo alento para voar ainda mais alto.
Abriu a porta carregando um resto de sorriso no rosto sonhador. O patrão já estava curvado sobre a mesa, arames, fechos, instrumentos reluzindo sobre a mesa escura e manchada. O cheiro de poeira e química invadiu suas narinas e ela espirrou. Os colegas resmungaram suas saudações, se acomodando. O mais velho já enfiava as contas num fio longo, longo como o tempo. Uma mulher se dirigiu ao banheiro, encardido, no fundo da sala, e fechou a porta com estrondo.
No silêncio que se seguiu ela escutou um zumbido. Era uma borboleta, pequenina e ínfima, quase sem cor. Agoniada, ela se debatia contra a vidraça empoeirada. Suas asas não tinham desenhos, era uma simples borboleta amarela, desbotada e infeliz. Seu desejo era escapar-se dali e voar. Sair do sobrado sufocante e aventurar-se, à procura de uma flor, que poderia ser humilde e esquálida como ela, mas que seria seu destino.
Vencendo o medo de altura, Fabiana se aproximou da janela. Estava no quinto andar. Dois lances abaixo, o toldo mofado da pensão diminuía a sensação de altura que a deixava imobilizada sempre que chegava próximo a uma janela. Somente a piedade que sentia pela borboleta descorada é que a levou até a janela emperrada e a colocou de pé, braços abertos, forçando madeiras e vidraças, como se estivesse pronta para voar.
Escutou o ruído do maçarico sendo aceso. O trabalho começava mais cedo naquela manhã, pois ainda não eram oito horas. A vidraça cedeu e a borboleta lançou-se no ar, sem titubear. Fabiana sentiu-se enternizar naquela postura. Os braços abertos acima da cabeça, esticados como os de uma mergulhadora, o corpo projetando-se para a frente. Ela não entendia como estava no ar, fora do sobrado, voando. À sua frente, a borboleta fazia acrobacias, demonstrando perícia e habilidade. Seus olhos se abriam, desmesurados, para o espaço. Quis soltar um grito, mas a voz ficou presa na garganta, e pelos seus lábios só saiu um gemido, como nos pesadelos. Mesmo que tivesse gritado, ninguém a escutaria, os sons abafados pelo barulho de uma explosão, e pelo crepitar do fogo que queimava, indiferente, madeira e carne, plástico e vida.
Ficou ainda um instante sobre o toldo que interrompera sua queda. Aos poucos ligou o som do maçarico, o barulho da explosão, seu vôo, e a borboleta. Uma chuva de fuligem começava a cair. Fabiana se levantou, arrastou-se como pode até escapar dali. Na rua, seu rosto sujo molhou-se de lágrimas. Foi abraçada por estranhos, beijada por conhecidos. Alguém lhe ofereceu um pouco d’água num copo de plástico tão fino que tinha dificuldade em manter sua forma de copo. Ela tomou-o nas mãos e foi para o meio da praça. Despejou-o no canteiro, ao redor da flor, visitando-a como uma borboleta às avessas.
Nunca mais teria medo de voar.
1 comment:
Lindo e emocionante, como sempre. Sua fã, Eugenia.
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