Tuesday, September 18, 2007

Em casa, sonhando

Não fui e não vou ao Riocentro hoje. Mas estou em casa, sonhando com viagens. Para Santiago de Compostella, em decorrência do prêmio. Para terras distantes, procurando amigos que quero conhecer melhor. Á volta de meu quarto, porque sou de formação clássica e sei que vamos muito mais longe quando ficamos aqui mesmo.
Ontem fiquei emocionada com a leitura dramatizada do conto A secretária de Borges. Foi lido por André Gracindo, e ele não desmereceu em nada o sobrenome famoso. De olhos baixos, ele parecia mesmo um Borges, novo, lendo de memória e não com o olhar. E as pausas e entonações que ele deu ao texto, tão diferentes de minhas possíveis pausas e entonações, me fizeram sorrir, encantada de ver um novo entendimento surgindo. Um Borges ligeiramente diferente do que eu tinha em mente, um pouco mais malévolo, talvez mais borgeano que o meu...
Vi a mensagem do Ernane, de quem muito ouço falar, e agradeço. Pode deixar, darei seus parabéns à Rachel.

3 comments:

Guido Cavalcante said...

Przada Lucia B.,

visitando seu blog me dou conta do título de um de seus livros: "A Secretária de Borges". Bem, vou lhe contar o pequeno episódio que vivi no apartamento de Jorge Luís, lá pelos idos de 197..., durante os terríveis anos da ditadura militar argentina. Foi na época de rafael videla (me recuso a escrever seu nome com maiúsculas), o sanguinário ditador que instaurou uma era de terrorna Argentina. Isso hoje é parte da história daquele país.

Eu trabalhava como field producer e editor para o Studio Rio de Janeiro, da ZDF-Televisão Alemã. O correspondente desejava fazer uma entrevista com Borges. O tema era suspeito: Borges, na inadvertida inocência ´permitiu-se alguns comentários mais ou menos a favor dos militares. Mas, como digo, foi um pequeno erro, que em nada tolda a grandeza de Jorge Luis. Na sua inocência - semelhante talvez aquela de Ezra Pound, quando tb ele comentou favoravelmente a ditadura de Mussolini - e por isso foi enjaulado - ele talvez supunha que os militares argentinos poderiam restaurar alguma coisa da grandeza da Pátria, que os anos de violência política do peronismo haviam arruinado. A Argentina então vivia a divisão política das inúmers facções peronistas em disputa por pedaços do poder. Não qu8ero comentar isso. É chato, doloroso, confuso e detestável.

A imp´rensa internacional deu grande destaque às palavras de Borges e o pobrezinho foi muito criticado. Meu correspondente tb queria obter algumas explicações, como se fosse possível pedir isso a Borges. Eu me sentia constrangido. Por outro lado, era uma oportunidade úncia - aquela de estar alguns momentos pessoalmente com Borges. Eu o conhecia de vista, frequentemento ele caminhava na Plaza San Martin e nós, joprnalists, nos hospedávamos no Hotel San Martin - suntuoso e old fashion.

Liguei para a casa de Borges - Maria Kodama atendeu e a entrevista foi marcada. Na hora aprazada chegamos com toda a tralha tecnológica para gravar a entrevista.

Maria Kodama abriu a porta e Borges estava junto dela. Vestia terno azul marinho, camisa branca e uma gravata vinho com bolinhas brancas. Elegante e afável, nos levou para dentro. Meu constrangimento aumentou - eu precisava desviar o tema da entrevista daquele assunto desagradável. Começamos a conversa. O jornalista falava mal o castelhano e eu tomei a dianteira. Enveredei pela literatura. Maria Kodama deixou-nos e saiu.

Borgens nos contou do que ainda gostava de ler - ou melhor de ouvir o que Maria lia para ele. Principalmente Swift, alguma coisa de Robert L. Stevenson. Considerava Gulliver um dos maiores livros já escritos, tanto do ponto de vista da construção do texto quanto pelo imaginoso estratagema da narrativa.

Perguntei sobre aquele conto das cuchilladas - o duelo a faca dos irmãos. Contou-me que sua mãe havia detestado e lhe pedira para nunca mais escrever coisas daquele gênero. E então a surpresa: depois de quase uma hora de boa conversa ele levantou-se e nos conduziu pelo interior do seu apartamento. Ele indicava as peças da casa, os objetos, os livros - era maravilhoso! Eu, na casa de Borges guiado pelo próprio escritor a desvendar-nos a sua intimidade! Chegamos diante de uma porta fechada, que ele abriu e descerrou totalmete. Era o quarto de sua mãe! Ele o conservava intato desde o dia da morte dela. Foi demais.

O jornalista impacientava-se. Precisava da entrevista sobre o tema maldito. Borges era então a favor dos militares?

Ele fechou a porta do quarto e retornamos para a sala. Ajudei-o a sentar.

"Pregunteme sobre palabras", disse enfático. "Pregunteme sobre palabras que contare la historia deste y de otros mundos".

Não pedimos mais nada. Nos despedimos. A matéria não iria para o ar. O jornalista não teve a sensibilidade para perceber o que Borges nos dizia.

Eu desci, cheguei a calle Maiupu donde vivia el ciego e fui para um bar. Precisava de um bom trago. Bebi em íntimo deleite. Borges me mostrara o quarto de sua mãe morta, falara-me sobre a sua literatura predileta, propusera contar-me a história do munda pelas palavras que haviam sido criadas. Que cosa, muchacha!

Guido Cavalcante
guido.cavalcante@gmail.com

Gracindo said...

Olá, Lucia. Obrigado pelas palavras elogiosas. Não deveria escrever outro elogio em retorno neste comentário, considerando que poderia ser tomado como uma "rasgação de seda", mas não resisti... adorei o livro, o conto, e a descoberta de uma nova autora que perseguirei nos meus dias literários. Muito sucesso, mais sucesso para você. Um beijo do Borges malévolo.

Unknown said...

Essa leitura deve ter sido mesmo maravilhosa! Abraços, T.T.