Wednesday, September 12, 2007

Atrás do caminhão da FINK

Mudança. Mudar de casa implica em mudar de vida, também. Por mais que a gente leve os móveis, os retratos, as lembranças, quando colocamos nossas coisas em um novo ambiente, elas revelam aspectos estranhos, que ainda não conhecíamos. As imperfeições aparecem: aquele arranhadinho que ninguém viu durante anos, agora se coloca em evidência, por exemplo. As fotos parecem um pouco mais amareladas, o porta-retrato perde o equilíbrio e já não se sustenta. O quadro que amávamos e que supúnhamos que ia ficar lindo em cima do sofá, nesta nova posição não combina. Continuamos amando o quadro, mas ele tem que se retirar para cima do piano. Um piano que ninguém toca, e que por isso mesmo é intocável. Para onde vou carrego meu piano, uma promessa de sonho.
O pior de tudo parece acontecer com as cores. Estofados que desbotam, vermelhos que se tornam sanguíneos demais, demoramos a nos acostumar com as tonalidades novas que nossas cores adquirem. Algumas coisas, no entanto, se dignificam: A mesa da cozinha que vira mesa de jantar assume nova dimensão e pose. Suas pernas se alongam e ela se posta sobre o chão como uma gazela, orgulhosamente examinando seu novo habitat. Ou a estante, que durante anos serviu para armazenar livros pouco lidos, agora destinada a exibir objetos de enfeite, deixa seu ar pesado e cansado de lado e se revela leve e elegante.
Me perdi, divagando, em vez de falar sobre minhas emoções acompanhando o caminhão da FINK. Descendo a Estrada do Joá, ele sacolejava levando lá dentro uma parte de minha vida, e quase todos os meus sonhos. Meus livros estavam lá, e eu os sentia alegres. Eles, que me levaram para passear sempre que eu quis, agora empreendiam uma aventura, levados por mim. Saiam de seu habitat e iam para um novo lar, apertadinho, mas mais iluminado. A cada sacolejo do caminhão eles me acenavam suas páginas e diziam: não se preocupe, você vai ficar bem. Nós estaremos com você e a faremos se sentir em casa assim que nos acomodarmos. E eles estavam tão confiantes, tão joviais, que , de repente, meu carro foi ficando para trás, preso no trânsito, enquanto eles se iam , aventureiros, na frente. Chegaram antes de mim no novo apartamento, mas não subiram logo. Ficaram lá embaixo, curtindo o jardim do edifício, escutando o barulho do trânsito, crianças alvoroçadas num passeio de colégio. Depois, serenamente, adormeceram em suas caixas, já dentro da nova biblioteca, aguardando que eu, amorosamente, os venha acomodar. Pensei em contratar alguém para organizá-los para mim, mas agora, ao escrever, percebo que devo isto a eles: Eu mesma abrirei as caixas e os colocarei em seus lugares. Eu é quem vou acomodá-los e tratá-los com o carinho que eles merecem. São mais que livros: são a vida que me restou.

4 comments:

Sergio Leo said...

"Um piano que ninguém toca, e que por isso mesmo, é intocável". Lindo, isso.

Anonymous said...

Lúcia,

Acabo de conhecer seu blog, e, como não freqüento muito esses bairros longínquos da megalópole chamada Internet, provavelmente estou "postando" (que nome feio) o comentário errado no lugar errado, ou vice-versa.
Mas vamos lá: seu comentário de que "todos os escritores que admiro muito tiveram vidas muito chatas" quer dizer que você não gosta de Rimbaud e de Garcia Lorca? Se você confirmar o "não", principalmente em relação ao genial andaluz, troco de mal com você, e nunca mais leio este blog. Mais ainda: desisto de comprar seu livro, coisa que estava pensando em fazer.
Um abraço,
João

Anonymous said...

Lucia, te endendo, também estou nessa. Seguir caminhão de mudança é mais que seguir sonhos.
É o trajeto do recomeçar nossa vida com os mesmos marcos do nosso passado.
Abraço!!

Unknown said...

Mudar é difícil. Adorei a parte de arrumar os livros, sozinha, sem ninguém que interfira nessa ligação em que a vida abraça os livros e vice-versa. Abraços,
T.T.