Wednesday, January 13, 2010

A tentação dos clichês

Hoje no jornal uma coisa chamou minha atenção: um profissional que usou um clichê, apesar de reconhecer que se tratava de uma frase feita: o "calor senegalês". Nunca estive no Senegal para saber se lá é mesmo quente assim, para merecer o monopólio do calor. Desculpo-o, pensando que, suando tanto, é capaz de o jornalista ter derretido suas idéias. No caldo meio pegajoso que virou sua massa encefálica, sobraram algumas frases feitas, encalombadas, que, em desespero de causa, ele usou. Nos dias quentes assim, fico sempre com uma musiquinha martelando meu pensamento: Mas que calô, ooô, ooô! Espero que, inadvertidamente, não comece a cantá-la em voz alta, levando os encalorados companheiros de cidade ao alcance de minha voz à loucura.
O caso é que fiqui pensando nos clichês, e como eles invadem nossa vida cotidiana e nos prendem em seus tentáculos, piores e mais venenosos do que a medusa que anda atacando lá pela Austrália (onde o clichê talvez seja "a Brazilian heat"). Vejam só: pior do que a mania de gerúndio é o meloso "um beijo no seu coração". Deus nos livre e guarde! Que invasão! Muito pior do que o fantástico beijo invasivo de Deus em Adão, sua língua entrando pela boca e pela garganta de sua criatura, violando-a sem piedade! Está no Caim, livro imperdível.
Bem, preciso sair agora, mas antes faço aqui uma oração, para que os deuses da gramática e da literatura não me deixem cair na tentação de comentar o calor senegalês, não me deixem fazer carinhos no coração de ninguém, muito menos melosos beijos, que possam provocar uma parada cardíaca. Peço a eles que depurem minha linguagem destas crostas pesadas que usamos por pura preguiça mental e a deixe bela e essencial como um amanhecer. 
Pois era sobre isso que queria escrever, sobre a beleza do nascimento do dia, que testemunhei, e que me fez acreditar que, com tamanha beleza, esse dia só poderia trazer coisas boas. Infelizmente esta crença só durou até a primeira olhada no jornal – o dia trouxe a tragédia do terremoto no Haiti. E agora as nuvens já recobrem o céu, e ameaçam com mais tragédias em Angra, no Rio, por toda a parte. Talvez só nos sobrem mesmo os clichês, para as tempestades arrasadoras, as catástrofes climáticas, os calores insuportáveis. 
Um bom dia para todos, ameno e temperado, com brisa suave e acontecimentos ordinários.

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