Sunday, March 30, 2008

outra semana

Pois é. A vida não parou e chegamos em outra semana, sem que eu tivesse tempo para falar de uma coisa que me escapou na segunda passada. Era a segunda do anjo, me diz o calendário (Lunedi dell'Angelo), e eu desconhecia esta gracinha de dia. Alguém aí sabia disso? Uma vez fui surpreendida com o Boxing Day, na Inglaterra. Fui passar o Natal lá sem saber que a tradição havia instituído um feriado acho que da época vitoriana. Os criados, depois de passarem o Natal trabalhando nas casas das famílias mais abastadas, recebiam esse dia de folga, ganhavam seus presentes (provavelmente de segunda-mão: os brinquedos e roupas velhas para desocupar espaço nos armários, com certeza), colocavam-nos em caixas (boxes) e saíam pelas ruas carregando-as. Provavelmente a pé, pois os trens param de circular nesse dia, todas as lojas fecham, estar na Inglaterra neste dia só é bom se você estiver a fim de fazer retiro espiritual. Eu estava em Cobham-Surrey, com um carro onde não cabia toda a minha família, sem nada para fazer, nem comida tínhamos. O que nos salvou foi uma loja de conveniência num posto de gasolina, numa auto-estrada que nos levou a nenhum lugar, pois não aguentamos por muito tempo a falta de espaço.
Este Lunedi dell'Angelo, imagino que fosse, na Itália, o dia de devolver as asinhas angelicais usadas nas procissões de Páscoa. Uma nova procissão pelas ruas, desta vez sem a ordenação e solenidade das procissões santas. Asas de todas as cores se misturando, parando para tomar um sorvete, se já houvesse sol bastante, ou um último chocolate quente antes da primavera começar a aquecer. E, por cima das asinhas, chapéus de palha, com laços e flores, estalando de novos.
Ângelo quer dizer mensageiro. Talvez seja outra a razão deste dia.Talvez os anjos do senhor, ainda estonteados com os acontecimentos do fim de semana anterior, se tenham organizado numa passeata, informando a todos os mortais que a última chance havia sido dada. Agora as coisas, se não tomassem jeito, já não seriam mais responsabilidade do andar de cima...
Devaneios. Devaneios. O trabalho se acumula e eu, apática, devaneio. Meu corpo se rebela, me sinto adoecer. Olho para a folhinha, e sei que depois de amanhã vou ter que mudar a página, mudar o mês. Não quero seguir em frente, mas o sol continua sua marcha, indiferente.
Procuro, no meio dos papéis, uma anotação que tinha feito sobre os zumbis -- descubro que esses mortos-vivos tinham um sentido utilitário: eram chamados de volta à vida para realizar tarefas que ninguém queria realizar, escravizados até após a morte. Perdi. Sobra a lembrança do que li, e a sensação de que..., enfim, acho que estou ficando gripada.

Monday, March 24, 2008

A vida não pára

Os dias se sucedem, com regularidade. Não importa o atentado em Persépolis ou a tragédia pessoal. O sol se levanta, um pouco mais para a direita ou para a esquerda, conforme a época do ano, e se põe, como uma peça de engrenagem. Saudades do tempo em que o carro do sol era levado por um deus grego, tão próximo de seus fiéis. Era assim que ele "emprestava a chave do carro" para o filho mimado, ou se demorava, a fim de namorar um pouquinho. E havia sempre o perigo de que aquele deus, temperamental como todos os deuses, resolvesse que não cumpriria sua tarefa, ou que sua carruagem quebrasse, ou que um de seus corcéis machucasse uma pata... Os seres humanos deviam estar sempre atentos, e agradecidos.
É, mas isso acabou. Na Bíblia conta-se um único caso de sol parado: no antigo testamento, aquele Deus belicoso resolveu mandar o sol parar para que seu general pudesse ganhar a batalha (Foi Josué, o general?). Nem mesmo a morte de seu único filho mereceu outra parada do sol. Mas nós, humanos, inconformados com a morte, tentamos fazer esse milagre de todos os modos, criando mundos de palavras que nos eternizem ou eternizem algum momento de nossas vidas ou de nossas fantasias. Eu me deleito com as leituras de autores que são capazes, com seus versos ou suas frases, de recriar um mundo que já passou. Estamos terminando A cidade e as serras, de Eça de Queiroz. Meu grupo está adorando a leitura, curtindo os personagens, rindo muito com o humor um pouco grosseiro do Eça. Eu, que já li este romance tantas vezes, ainda me encanto, como da primeira vez. Só que agora saboreio as coisas com mais detalhes, encontro prazeres que não tinha descoberto antes. Uma das coisas que me tem agradado muito nesta leitura é revisitar o mundo de Proust com olhos que, sem dúvida, seriam mais próximos dos meus, se eu tivesse a chance de viver naquele tempo. Rio um riso duplo, pois leio ali nas páginas "tudo o que lá não está", para citar outro de meus portugueses adorados.
A semana recomeça. Tivemos a paixão e a páscoa, hoje banalizada, afogada em chocolate. Tivemos aniversários e mortes, mesmo na festa da ressurreição. Eu continuo acordando cedo, dormindo em frente a TV, caminhando de um cômodo a outro até pousar na frente do computador e dar um pouco de vazão a todos os devaneios -- gosto desse nome pois ele me lembra como os pensamentos são vãos.
Então, ao trabalho. O sol continua sua volta, enviando neutrinos que nos transpassem. Os cientistas um dia descobrirão a função desses neutrinos em nossas vidas, mas nada mudará. Talvez as modas. Talvez nossa imagem nos espelhos. Talvez a vida na Terra se acabe antes que esse conhecimento chegue. Mas o sol, indiferente, vai continuar seu caminho, e continuar se pondo, para o encanto de muitos, nas encostas dos Dois Irmãos.

Friday, March 21, 2008

Nomes de amigos

Divagações -- sempre que tenho muitas coisas importantes para fazer parece que meu cérebro entra em curto-circuito e fico divagando, adiando a hora do trabalho. Assim é que me sento aqui e, ao invés de tratar de todas as urgências resolvo escrever sobre o nome de meus amigos. Mas é que muitos têm nomes interessantes -- Um tem nome de navegante, de desbravador de mundos exóticos. Outro tem nome de personagem de Dante. Outro tem nome de ave. Outro é homônimo de um autor famoso. Outro tem nome de rua. E por aí vai. As amigas não. Várias são minhas xarás, convivo com muitas Lúcias e Anas Lúcias e Lúcias Marias ou Marias Lúcias. Uma única Vera Lúcia. As Marias são legião. São poucas as amigas com nomes mais exóticos. Conheci uma Betise, que graças a Deus não era francesa, e não deve ter sofrido por causa de seu nome. Tenho amigas que evocam mitos e lendas em seus nomes, outras que evocam as musas famosas de poetas antigos. Tenho amigas de nomes bíblicos. Tenho amigas que são genuínas estrelas. Conheço, apenas conheço, uma fada -- mas como ser amiga de uma fada? E tenho uma vaga amizade com uma que tem nome de heroína da pátria, ou de rua em Ipanema. Conheci uma cujo nome era sobrenome: "Neiva". Muitas são rainhas no nome. Outra é bem nascida e o proclama em seu nome. Outra tem nome de companhia de engenharia... Todo esse parágrafo para dizer que costumo sonhar ao lembrar de cada um dos amigos e amigas, mesmo aqueles que já não são tão amigos, aqueles que pensam que já saíram de minhas lembranças. Relembro e tomo seus nomes entre os dedos de minha imaginação, examinando-os e fazendo-os brilhar como um prisma encantador. Às vezes me pergunto o quanto me deixo fascinar pelos nomes deles, e se isso influencia o meu gostar. Talvez. Sei que não posso deixar de sonhar com Veneza quando lembro de um. Que sinto o cheiro do mar quando falo com outro. Que recito versos baixinho quando telefono para uma. Que cubro (metaforicamente) a cabeça, ao encontrar com outra.
E agora volto ao trabalho e às obrigações, com todo um séquito de amigos relembrados e muito amados.

Wednesday, March 19, 2008

Dias santos

Escrevi um post altamente confessional e apaguei tudo. Acho que esta época, com a obrigação cristã de confessar e de comungar, me fez baixar um pouco a guarda. Depois lembrei que minhas memórias não teriam interesse para ninguém, apaguei sem dó nem piedade minha reflexão sobre os dogmas da Igreja e agora estou aqui, só para lembrar dos santos da ocasião: São Patrício, no dia 17 e, hoje, São José. Há uma linda música, que costumava escutar na voz de Nana Mouskouri, acho que se chama Josef. Era cantada em francês, e falava do homem bom e compreensivo que São José foi. Não faz muito tempo, foi agora no Natal passado, que vi uma peça infantil onde se cantava essa música. Então, meu bom José, proteja-nos a todos. Um bom pai que nos guie, um marido que nos compreenda e ampare, se os homens soubessem o bem que isso faz, todos se esforçariam mais um pouco.
No Rascunho desse mês, saiu publicado um conto de minha amiga Eugênia. Está lá no site do jornal, na seção Dom Casmurro. Ela escreve sobre Hermíone, filha de Helena de Tróia. Leiam, leiam!
E Marcelo me avisa, no seu blog Pentimento, sobre a Copa de Literatura: uma disputa de livros tão díspares quanto Rakushisha e Lugares que não conheço e Filho eterno. Li os três, e acho que vocês também deviam lê-los.
Aproveitem o feriado e coloquem as leituras em dia. É o que vou tentar fazer.

Sunday, March 16, 2008

Esqueci...

Tinha um título para começar a escrever. Desde ontem tinha escolhido um título para esta postagem, mas, como não tive tempo de escrever, como a vida se desenrolou seguindo outro traçado, esqueci. Porém o esquecimento nunca é inteiramente ruim -- Uma amiga, a Mira, sempre dizia que a função primordial da memória era esquecer -- se não fôssemos capazes de esquecer, não seríamos capazes de aprender. Pode parecer um paradoxo, mas a Mira era médica e sabia o que dizia. Precisamos dar lugar a novos "arquivos" e, se não esquecemos o que é supérfluo, não teremos lugar para o importante. Na verdade, esquecer é diferente de apagar. Apagar por completo, nunca apagamos. Mudamos de "gaveta", os nossos arquivos. Ou, seja, tiramos aquela lembrança da gaveta que usamos toda hora e a colocamos numa gaveta emperrada, que quase nunca abrimos, pois está trancada a chave. Assim podemos explicar doenças como a de Alzheimer, em que os pacientes trancam as gavetas das lembranças necessárias e abrem as do passado, abrem até aquelas cujas chaves ficavam no inconsciente... Já não se reconhecem os filhos, mas os pais, há tanto tempo mortos. Os impulsos reprimidos, os desejos recalcados se liberam mas as palavras mais sofisticadas se escondem, as noções de matemática se emperram e os números são olhados como ilustrações nada criativas, que se repetem na sua monotonia de formas finitas...
Divago. Ia contar que comecei a ler o Coetzee, apesar de ter tantas outras obrigações mais urgentes. Quem me conhece sabe que sempre fui assim: caio facilmente em tentações, e depois me torturo com prazos e tarefas que nunca deixo de cumprir, pois fui criada pela mais exigente de todas as mulheres: minha avó "vitoriana". Deve ser algum gene do inglês que foi o seu avô. Um inglês engenheiro, que veio construir estradas de ferro -- ou seriam minas? -- e que engendrou uma única filha, que por sua vez engendrou minha avó. Minha vó, de pele tão branca que parecia biscuit, mas tão macia que parecia feita de algodão, e de espírito tão rijo que parecia de ferro! Contrario as psicologias e afirmo, com todas as letras, que meu super-ego não tem uma representação masculina: meu super-ego é uma avó zangada, de sobrolho fechado, que me impede de deixar de fazer o que tenho que fazer. E, como ela já se manifestou aqui nestas palavras, também tomou conta de minha vontade, então largo tudo para cumprir meus deveres. Quando ela cochilar, eu volto.

Friday, March 14, 2008

aulas

Sexta-feira, dia de aula de piano e eu aqui, ao invés de estar martelando o pobre do teclado musical, faço escalas literárias aqui no blog.
É que ontem foi a "primeira aula de literatura da aluna Lúcia de Andrade"... Voltei a estudar, lá vou eu de novo... vocês sabem, aquela música do Chico. Mas não me senti tola, pelo contrário. Me senti bem, onde gosto de estar, com pessoas que amam o mesmo que eu, sentindo como se, após uma longa viagem, estivesse de volta à terra natal. É bem verdade que já não lembro de tudo, que esqueci alguns detalhes: nomes de ruas, lugares interessantes, ou seja, autores e teorias que costumava visitar com freqüência e de quem, depois de tantos anos de separação, já mal distingo as feições. Mas não importa. Folheio esse álbum de velhos retratos e vou reconhecendo os "parentes", e recebo a notícia do nascimento de outros. Foi assim que me falaram de Coetzee, com tanto entusiasmo, que tenho que refrear meus impulsos de ir para a primeira livraria e mergulhar logo na leitura de seus romances. Sossego, então, volto para o piano, e depois, só então, livraria, pois o fim-de-semana se promete chuvoso, propício a leituras.
Rio, baixinho, pensando -- se fosse ensolarado, também seria propício à leitura: quantas vezes já falei de meu prazer em ir ler na praia? Em casa, com chuva; na praia, com sol; no café, em dias nublados; outra vez em casa, nas lembranças dos dias de neve...Ler é bom quando se está sozinha, ou ao lado da pessoa amada. Quando se está triste ou quando estamos felizes. Tranqüiliza-nos quando temos medo, e nos incentiva quando desanimamos. Ler é muito bom, mesmo. E escrever também...

Tuesday, March 11, 2008

Duas leituras

Na revista Discutindo literatura: Ano 3, número 16, está publicada uma entrevista com o Mia Couto. Sim, muitas das coisas ali publicadas não são novidades, pois falam da influência de Guimarães Rosa no seu estilo, e sobre a política e sobre "literatura africana", coisas já faladas antes. E, talvez, até mesmo o que me assustou na entrevista já tenha assustado outros leitores de Mia Couto. Talvez ele já tenha dito isto antes, confiram:
"Uma coisa é aquilo que eu faço como profissão, que é a biologia, que me ocupa nove, dez horas por dia, e outra coisa é aquilo que faço porque acontece quase como uma doença que me ocorre, que me assalta. Não quero manter essa relação integral com a escrita. Não quero ser um escritor. Não sou daqueles escritores que dizem que se deixar de escrever, deixa de respirar, de viver. O que é vital para mim é ter uma relação criativa com as coisas, com os outros e posso fazer isso com várias outras coisas além da literatura."
Oh, céus! Entendo, compreendo e aplaudo, ao mesmo tempo que me assusto, me revolto, me indigno. Um dos melhores escritores em língua portuguesa dizendo que não quer ser um escritor! Como? Eu sei, a palavra escritor aí adquire outra conotação, mais para ofício que para aptidão, mas com que indiferença ele afirma que pode estabelecer uma relação criativa com as coisas sem ser através da literatura... Pode não, Mia. Pois aí você vai se transformar na pereira que quer frutificar em laranja... Não é este o teu destino!
Por falar em talento, a outra leitura é do primeiro romance do Flávio Izhaki, De cabeça baixa. Rio de Janeiro: Guarda-chuva, 2008.
Já falei aqui no romance, no trailer em que o próprio Flávio aparece de cabeça baixa, mas agora transcrevo aqui uma frase, pois acabo de ler o romance e quero compartilhar as delícias do cuidado com o texto e as imagens.
"Andar por aquelas ruas era como abrir arquivos de lembranças no cérebro. Um banco de concreto, uma história; uma esquina, um assalto que vira quando criança; um poste, duas mãos entrelaçadas que precisaram se separar por segundos, a sua mão e a de Luana."
Elegante e sucinto, em duas pinceladas conta-se uma história e acendem-se as dores das lembranças. O livro é muito bem escrito, e ousa escrever-se e ler-se ao mesmo tempo, num virtuosismo implacavelmente irônico.
Dia 25 de março, lançamento na Argumento. Todo mundo lá!

Monday, March 10, 2008

Medo de voar

Esse conto era para o Histórias Possíveis, mas entramos de recesso, por conta da mudança e da viagem do André. Só que o conto está pronto, e desejoso de ser lido. Então aqui vai ele, para vocês, sem medo.

Medo de voar

Lúcia Bettencourt

A curva jogou-a de encontro à janela do ônibus e ela estremeceu, olhando para a rua lá embaixo. O viaduto nunca lhe parecera tão alto.

O motorista continuava acelerando, aos arrancos, o motor ganindo, os freios rangendo a cada pisadela que impedia que o veículo se precipitasse sobre outros, igualmente impacientes, também disputando os espaços com agressividade.

Foi com alívio que viu a parada chegar e saltou do ônibus com pressa, antes mesmo de seu destino. Ainda era cedo, tinha tempo, podia andar, sentindo-se presa ao solo, sem a ameaça dos abismos e da velocidade. Atravessou a praça, esquivando-se entre as pessoas que hesitavam entre apressar-se para os empregos ou usufruir por mais alguns momentos a luz do sol, o frescor da manhã.

Todos ali, em suas roupas simples, dirigiam-se a trabalhos em cubículos fechados, em salas mal ventiladas. Poucos eram os felizardos que se encaminhavam para escritórios refrigerados. A maioria era como ela, trabalhando em antigos sobrados adaptados em oficinas, em depósitos, em pensões baratas, que enchiam o ar com seus odores de comida frita em óleo requentado, ou com seus cheiros químicos de solda, de desinfetante, de produtos vencidos.

Deu uma última olhada na praça mal cuidada. Uma flor raquítica resistia bravamente à poeira e ao calor. Flores e borboletas eram seus desenhos prediletos. Na fábrica de bijuterias onde trabalhava, escolhia sempre as miçangas e as contas mais coloridas, combinando-as de acordo com as lembranças de seus livros infantis. Borboletas de asas abertas, com desenhos repetidos de um lado e de outro, como imagens no espelho. Flores com sua simetria simples, pétalas que se repetiam iguais, como seus dias.

Subindo a escada de madeira, os rangidos embalavam seus pensamentos. Um dia, ela havia prometido ao pai, um dia ela teria o seu próprio jardim. Um dia , as flores que ela mesma semeasse seriam tão belas que atrairiam as borboletas, os besouros, os pássaros. O seu jardim seria uma festa de flores, pássaros e insetos voando, pousando apenas quando quisessem um novo alento para voar ainda mais alto.

Abriu a porta carregando um resto de sorriso no rosto sonhador. O patrão já estava curvado sobre a mesa, arames, fechos, instrumentos reluzindo sobre a mesa escura e manchada. O cheiro de poeira e química invadiu suas narinas e ela espirrou. Os colegas resmungaram suas saudações, se acomodando. O mais velho já enfiava as contas num fio longo, longo como o tempo. Uma mulher se dirigiu ao banheiro, encardido, no fundo da sala, e fechou a porta com estrondo.

No silêncio que se seguiu ela escutou um zumbido. Era uma borboleta, pequenina e ínfima, quase sem cor. Agoniada, ela se debatia contra a vidraça empoeirada. Suas asas não tinham desenhos, era uma simples borboleta amarela, desbotada e infeliz. Seu desejo era escapar-se dali e voar. Sair do sobrado sufocante e aventurar-se, à procura de uma flor, que poderia ser humilde e esquálida como ela, mas que seria seu destino.

Vencendo o medo de altura, Fabiana se aproximou da janela. Estava no quinto andar. Dois lances abaixo, o toldo mofado da pensão diminuía a sensação de altura que a deixava imobilizada sempre que chegava próximo a uma janela. Somente a piedade que sentia pela borboleta descorada é que a levou até a janela emperrada e a colocou de pé, braços abertos, forçando madeiras e vidraças, como se estivesse pronta para voar.

Escutou o ruído do maçarico sendo aceso. O trabalho começava mais cedo naquela manhã, pois ainda não eram oito horas. A vidraça cedeu e a borboleta lançou-se no ar, sem titubear. Fabiana sentiu-se enternizar naquela postura. Os braços abertos acima da cabeça, esticados como os de uma mergulhadora, o corpo projetando-se para a frente. Ela não entendia como estava no ar, fora do sobrado, voando. À sua frente, a borboleta fazia acrobacias, demonstrando perícia e habilidade. Seus olhos se abriam, desmesurados, para o espaço. Quis soltar um grito, mas a voz ficou presa na garganta, e pelos seus lábios só saiu um gemido, como nos pesadelos. Mesmo que tivesse gritado, ninguém a escutaria, os sons abafados pelo barulho de uma explosão, e pelo crepitar do fogo que queimava, indiferente, madeira e carne, plástico e vida.

Ficou ainda um instante sobre o toldo que interrompera sua queda. Aos poucos ligou o som do maçarico, o barulho da explosão, seu vôo, e a borboleta. Uma chuva de fuligem começava a cair. Fabiana se levantou, arrastou-se como pode até escapar dali. Na rua, seu rosto sujo molhou-se de lágrimas. Foi abraçada por estranhos, beijada por conhecidos. Alguém lhe ofereceu um pouco d’água num copo de plástico tão fino que tinha dificuldade em manter sua forma de copo. Ela tomou-o nas mãos e foi para o meio da praça. Despejou-o no canteiro, ao redor da flor, visitando-a como uma borboleta às avessas.

Nunca mais teria medo de voar.

Igrejas, tintas e devaneios

Fui à Igreja do Carmo, antiga Igreja da Sé, para assistir a missa em meio aos dourados e esplendores. Muitas vezes fui àquela Igreja, bem como às outras ali da Rua Primeiro de Março. Muitas vezes escutei os sinos que tocavam, pontuais, músicas inteiras, perturbadas pelo acelerar dos ônibus e lotações, pelas buzinas dos carros, pelos gritos dos camelôs. Entrava, sentava nos bancos quase sempre vazios, orava ou não, me benzia com água benta quando havia, contemplava com olhos maravilhados ou tristonhos as belezas e os descuidos. O tempo foi destruindo as belezas, os vidros se partiram, as pinturas descascaram, as luzes se apagaram. As Igrejas decaíram, talvez porque tenham feito a célebre opção pelos pobres. Um equívoco: Igreja nunca foi coisa de pobre -- o cristianismo pode ser que sim, mas a Igreja, entidade política, não pode ser abrigo de mendigos e entidade puramente social. Imaginem uma Suécia que resolvesse fazer a opção pelos pobres: logo seria invadida por imigrantes legais e não tão legais, esvairia suas riquezas distribuindo-as entre as desesperadas mãos dos mais necessitados, e, em pouco tempo, estaria encabeçando a lista dos países subdesenvolvidos...
Igreja é coisa de rico, que pode pagar para os artistas comporem músicas, esculpirem imagens, pintarem telas e tetos, encontrar os artesãos para cobrir com folhas de ouro os entalhes de madeira e transformar o terrestre em divino, ou seja, o possível em impossível. Entrar numa Igreja deve provocar duas reações: a do rico deve ser a admiração e o desejo urgente de associar seu nome a uma nova maravilha nem que para isso tenha que se separar de seus preciosos milhões; a do pobre deve ser de tal encantamento que passem a encarar seus males como secundários. Quando o pobre vai à Igreja imbuído de sentido prático -- para comer, se abrigar da chuva ou raspar um pouco das folhinhas de ouro para pagar uma consulta médica, aí começa a revolução e o declínio daquela beleza.
Mas, o que eu ia mesmo falar era outra coisa: antes de ir à Igreja, li o jornal, e nele encontrei um anúncio de uma tinta corporal, feita com chocolate. É a segunda vez que me deparo com essa tinta. A primeira vez foi em Londres, pilhas e pilhas arrumadas na entrada da Harrod's, banhadas pela luz que deixava aquela tentação dupla ainda mais apetecível. Não comprei. E, lógico, me arrependi de ter deixado toda aquela maravilha para uma pessoa mais ousada e livre que eu desfrutar. Agora também não vou comprar, por mero desinteresse. Mas não deixo de pensar na arte corporal, muito mais suave que a agressiva tatuagem, que poderá alegrar os compradores da tinta. Conclamo os escritores e os artistas plásticos a não deixarem passar esta oportunidade. Talvez seja esta a chance de criar sua obra-prima. Experimentem. Renovem suas catedrais...

Saturday, March 08, 2008

Passou

Não sei se isso que vou contar corresponde à realidade. Pelo menos, era como eu a percebia na época. Quando era bem criancinha, daquelas que ralavam o joelho e choravam, minha mãe tinha o péssimo costume de, ao invés de tratar do meu joelho, me chamar e dar um beijinho para passar. Ora, quem já ralou o joelho sabe que a dor não vai embora assim, mas quem ama sabe que é capaz de qualquer coisa para não desagradar o ser amado. Naquela época, o fruto de meu encantamento era minha mãe: linda, bem vestida, alegre e sempre distante. Quando ela me chamava, me dava um beijinho, e perguntava:--Já passou?, com um sorriso encantador, eu, que ainda me retorcia em dor, engolia o choro e abraçando-a, dizia que tinha passado. Como é que eu poderia decepcionar minha mãe? Como é que eu poderia revelar a ela que, como anestésico, seus beijos não tinham nenhum valor? Hoje eu sei que nem todo analgésico é para o corpo. Existem aqueles para a alma. Então aqui estou para dizer para a Flora e para o Amauri, engolindo minhas lágrimas:
--Já passou. Obrigada.

Friday, March 07, 2008

Tire o seu sorriso do caminho....

Eu quero passar com a minha dor...
O dia hoje é difícil, dificílimo.
Já foi o dia mais feliz do ano, eu costumava acordar entusiasmada, querendo ser a primeira a dar os parabéns ao meu amor. E ria, sem entender a contrariedade dele, tão relutante em envelhecer. E ele nunca chegou a envelhecer. Quando ele se foi, mantinha ainda um jeito de garoto, os cabelos intatos, e fazia planos para o futuro.
Mas outras pessoas sorriem em meu caminho, uma delas é o Flávio, que está lançando seu primeiro romance. Vejam em:www.decabecabaixa.wordpress.com
Um trailer de livro, vejam só que bacana. Vejam o trailer e comprem o livro!

Monday, March 03, 2008

Eça de Queiroz

Estou lendo A cidade e as serras, com minhas queridas alunas. E como estamos nos divertindo! Tinha me esquecido de como Eça é engraçado. Um humor às vezes meio brutal, um pouco grosseiro e caricato, mas extremamente divertido. Quero compartilhar com vocês um parágrafo, falando de viagens, para que vocês também relembrem e riam comigo. Escolho o tema "viagem" já que as memórias traumáticas desta minha última excursão ainda estão vivas em meus pensamentos.

" Ia viajar!...Viajei. Trinta e quatro vezes, à pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes passei o dia num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam a entranha. Catorze vezes subi derreadamente, atrás dum criado, a escadaria desconhecida dum hotel e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama desconhecida, de onde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo. Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira, quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito. Em mais de trinta mesas-redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-à-la-mode, já frio, com molho coalhado -- e que o copeiro me trouxesse uma garrafa de bordéus que eu provava e repelia com desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove catedrais. Trilhei molemente, com uma dor surda na nuca, em catorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos tectos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquitecturas, verduras, nudezes, sombrias manchas de betume, tristeza das formas imóveis!... E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca flamejante que habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o Visconde do Bom Sucesso, e as Limas da Boa Vista... Gastei seis mil francos. Tinha viajado."

Não é uma maravilha? Caricatural, mas, quantas vezes a gente não tem a impressão de que a viagem é só o desconforto, os dissabores e as confusões de muitas coisas vistas em pouco tempo, confundindo-se em nossas lembranças e fazendo, das mais belas princesas e ninfas, novas demoiselles d'Avignon?
Boa noite, my sweet readers. Não invejem minha solidão -- povoada de angústia. Não se "enjacintem" e desanimem. Riam um pouco comigo, zombem um tiquinho de si mesmos -- é preciso não nos levarmos sempre a sério. Mas sonhem, com o ontem ou com o amanhã, com o agora, o aqui, com o instante que passa.

Sunday, March 02, 2008

Sozinha, numa ilha...

Passei estes últimos dias ilhada. Consegui descobrir um hotel onde nenhum telefone celular funcionava, a conexão de internet caía antes que alguma página se abrisse, até o telefone do meu apartamento se recusava a falar.
Foi bom? Não achei não. Eu me angustiava, sem saber o que estava acontecendo com o mundo lá fora. Pois o mundo, descobri nestes últimos dias, o mundo não é aquele que nos chega pelas notícias de jornais, que não nos têm como destinatários: essas notícias se entregam a qualquer um, notícias fáceis, indiferentes, esquecidas no dia seguinte. O mundo que nos faz falta é aquele da criança doente, da amiga festeira, do amigo que espera nossa opinião, da amiga que providenciava um ingresso para um concerto muito desejado, é aquele mundinho que não aparece nos jornais, mas que nos alimenta de novidades, que nos faz sentir queridos, que nos conta alegrias e tristezas que serão só nossas, ou de poucas pessoas mais.
Nossos corações e mentes precisam de seus ecos, de seus compassos, e vamos alimentando e sendo alimentados e assim sobrevivemos.
É verdade que consegui manter a vida e o juízo nestes dias de "desterro", mas agora estou muito mais feliz, de volta ao blog, lendo as coisas deliciosas que escreveram só para mim, ou para umas poucas pessoas que compartilham algum gosto comigo.
Obrigada a todos que me mandaram seus textos deliciosos, seja pelo humor, seja pela reflexão ou pela sinceridade. Obrigada a todos que quiseram me ver, me rever, escutar minha voz e nem entenderam essa mudez, preocupando-se com meu sumiço. Desculpas a todos os que me procuraram, contando com um afago, um gesto de compreensão e se surpreenderam com minha aparente indiferença. Agora estou de volta, mando meu coração a todos, confesso publicamente minhas saudades e espero que isso não se repita mais.
Na minha caixa de mensagem, o pedido de um amigo querido e talentoso -- ir conhecer o blog que ele edita. Fui e adorei. Lindo, bem paginado, gostoso de ler e mais ainda de ver. Aqui vai a informação, para que todos possam compartilhar:
http://ardotempo.blogs.sapo.pt/
Até breve.