Wednesday, September 03, 2008

Literatura e amizade

Vera Helena, leitora e amiga, em seu último comentário tocou num ponto que sempre chamou minha atenção. Quem convive comigo sabe que, volta e meia, falo sobre isso -- a intimidade que se estabelece entre leitor e autor. Quando lemos algumas obras, entramos em tal sintonia com as palavras lidas, com os sentimentos retratados, com as opiniões externadas que passamos a "amar" ou "odiar" o autor.
Tenho alguns autores que me "tocam" como se eu fosse um instrumento -- posso gemer profundamente como um violoncelo, assobiar alegre como uma flauta, ondear em êxtase como uma harpa, sei lá, uma orquestra toda (deixo meu amado piano de fora, pois cada vez me vejo mais incapaz de produzir belos sons no teclado, embora meu incansável professor ache que vou aprender a peça de Katchaturian que ele está me ensinando).
Voltando ao assunto em questão, às vezes fecho o livro e tenho vontade de telefonar para o autor, achando que ele, ou ela, é a única pessoa no mundo que me compreende. Claro que eu não faria isso, primeiro porque sou meio maluca e cada vez uso menos o telefone. Não ligo para ninguém, é uma dificuldade quando tenho que chamar um técnico para consertar uma máquina, ou pedir uma pizza para não morrer de fome. Adoro quando me ligam, principalmente quando é uma ligação para me contar uma coisa. Por exemplo, quando falto a uma reunião, A Rachel me liga para me contar seus comentários, e aí conta coisas, do dia, da semana, dos anos quarenta... podia ficar conversando com ela a tarde toda. Porque a minha loucura é a seguinte: nunca sei se a outra pessoa pode me atender naquele momento, ou se preferia estar vendo novela, ou comendo uma torta de chocolate, ou lendo um livro... Fico atemorizada de que, do outro lado da linha, meu interlocutor fique fazendo aquelas caras de "dai-me paciência, ó Deus, é aquela chata de novo!" para alguém que esteja com ela/ele e eu esteja interrompendo. Acho que sou a única desocupada e solitária que existe no mundo... Sou mais do que maluca.
Volto mais uma vez ao assunto -- imaginem, então, o que poderia acontecer se, por um milagre, eu terminasse de ler um trecho de Proust e, por alguma tecnologia, pressionasse algumas teclas e ele me atendesse do outro lado: já começaria com um problema, pois meu francês atroz iria chocar esse autor absolutamente apaixonado por sua língua natal. E eu aqui, com sotaque, com essa minha inabilidade para falar e minha voz que continua infantil apesar de a infância ter ficado há muitas primaveras atrás, dizendo a ele que tinha adorado o trecho da múmia.
Como? O quê? Quem está falando?
E eu explicando que ele não me conhecia, que era impossível ele me conhecer pois eu estava vivendo no século XXI. Eu não era memória involuntária, era o futuro involuntário dele...
Minha voz, desmaterializada, falando coisas incompreensíveis e ele, como no episódio das telefonistas, se concentrando tanto no som de minha voz que conseguiria ver o que as pessoas com quem eu cruzo na rua não vêem: meu eu verdadeiro, com suas dores, seus temores, suas alegrias...
Ele até se compadeceria de mim, mas como poderíamos estabelecer um contato maior? Homem de outro século, de um mundo já extinto, somente sua sensibilidade e suas palavras sobrevivendo numa teia sutil que se estende de cérebro a cérebro através das idades...
Tento de novo. Desligo Proust e ligo para Mia Couto -- vivo e lindo, desta vez sou atrapalhada pela timidez que o encantamento pela figura do homem provoca. Não importa que eu quisesse agradecer por sentir que ele compreende o que vai dentro de minha alma, e que me estenda a mão e me ofereça esperança mesmo nas páginas mais tristes. Desligo antes mesmo que ele atenda o telefone, e fico sem saber se ele diria "estáaa?"(ou "estou", ou "sim?"), como sei que os portugueses de Portugal costumam fazer ao atender o telefone. Seria diferente o hábito em Moçambique? Penso em ligar para uma mulher. A Inês Pedrosa, talvez. Não -- muito dinâmica, ela não combinaria com minhas hesitações. Só nas páginas dela é que encontro os caminhos que podem nos ligar, sua tenacidade, a linha reta de seu desejo enfrentando ausências e a morte.
Então desisto dos telefones e volto ao aconchego dos livros. Penso no título de um livro de contos do Ian McEwan -- Between sheets, e na sua ambiguidade: sheets podem ser folhas de papel, mas também podem ser lençóis -- um livro é como um leito aquecido, com lençóis macios e cheirosos, onde a gente se sente abraçar por um amante, onde nosso corpo se rasga para trazer ao mundo um novo ser, onde aguardamos que a febre passe, que a dor sossegue, que a morte chegue... Fico entre lençóis e folhas de papel...

4 comments:

Anonymous said...

Fiz sessão espírita, na adolescência, e desceu o Byron. Deixou uma mensagem escrita na mesa: There is no death for love.
Meu "quimbondo" não me deixa mentir: minha mãe.
Endosso, desde então, o que a Margareth Atwood escreveu: não é porque a gente gosta de "foie gras" que precisa conhecer o pato. Sempre prefiro ficar com os livros.
Bacci, Eugenia

Linhas do desassossego said...

além dos lençóis e papéis, sugiro um bom vinho...

abraço.

Guido Cavalcante said...

Surpreendente a sua dificuldade ao telefone. Eu não sou muito dado ao telefone, mas não tenho grilos de ligar pra alguém e vou logo perguntando se a minha chamda caiu em boa hora, ou não? Não creio que seus amigos vão rejeitar suas chamadas, afinal amigos estão ai pra sempre, mesmo que não os vejamos nunca. É grilante saber que você pode estar precisando e não vai pedir ajuda. Tome cuidado.

Sobre o teu amado Proust, ontem estava lendo um texto de Victor Hugo sobre o cerco de Paris, na guerra franco-prussiana de 1869/70. Ele narra de um passeio para assistir uma batalha nos arredores da cidade e foi com, entre outros, Proust. Assistir uma batalha parece ter sido um tipo de programa muito comum até a 1ª guerra - os armamentos ainda não eram os de destruição em massa, devia ser bacana ficar bebendo um vinho, enquanto aqueles regimentos coloridíssimos se engalfinhavam. Bem, as páginas de Hugo são interessantes, mostram a agonia da cidade cercada e sem alimentos. Um elefante do zoo foi sacrificado pra alimentar a população; ele mesmo, Hugo, adorou uma perna de cervo obtida de um animal sacrificado e que lhe foi oferecida. E comenta sobre o costume que se difundiu de comer ratos. Pasteis de carne de rato eram um must.

Aqui transcrevo um versinho que ele escreveu para umas senhoras que lhe ofereceram o acepipe:

O mesdames les hétaires
Dans vos greniers, je me nourris:
Moi qui mourais de vos sourires,
Je vais vivre de vos souris.

Vera Helena said...

Pois é. Chego a ter ciúmes dos meus escritores preferidos, pode!? Você acertou em cheio, Lúcia, minha intimidade se prende nas sutilezas entre lençóis e folhas de papel (bom lembrar que o formato das páginas do computador não é muito diferente do das folhas de papel, como diria Ted Nelson)

Beijos