Friday, January 26, 2007

Medos e receios

Tenho uma maneira otimista de encarar a vida mas esse otimismo se refere às coisas imateriais. Vivo sonhando, ou no mundo da lua, como dizia minha avó. Ou em Pasárgada, como disse o poeta, gravando-o para sempre em muitas imaginações. Em Pasárgada estaria vivendo onde quisesse, sem me preocupar com contratos, aluguéis, móveis e quadros na parede. Na vida real, é preciso matar um dragão a cada instante, e não há São Jorge que agüente. Bem, não quero jogar a toalha, mas já percebi que meus sonhos podem não se concretizar com relação ao apê no Leblon... É uma pena. Daqui a uns anos, em Pasárgada, é claro, alguém comporia uma canção e imortalizaria o endereço cobiçado, tal como o da Nascimento Silva 107. A pobre rua corre o risco de perder a chance de entrar para os anais da MPB.
E, por falar em MPB, a entrevista que dei à emissora foi ao ar, e recebi muitos recados por conta disso. As pessoas me procuraram no ORKUT (que nome feio, meu Deus) e aqui no Blog também.
Isso da entrevista foi apenas um parênteses, pois o que me interessa hoje é explorar um pouco esses medos e receios inerentes à vida. Creio que eles me atacam todas as vezes que preciso tomar uma decisão, e como viver é decidir, creio ser justo dizer que viver é recear. Vejam só o que diz Amós Oz :

"Para escrever um romance de oitenta mil palavras é preciso tomar no decurso do processo algo como um quarto de milhão de decisões. Não só decisões sobre o enredo, quem vai viver ou morrer, quem vai amar ou trair, quem vai ficar rico ou sobrar por aí, quais vão ser os nomes e as caras dos personagens, seus hábitos e ocupações, qual vai ser a divisão em capítulos e o título do livro (essas são as decisões mais simples); não apenas o que narrar e o que ocultar, o que vem antes e o que vem depois, o que revelar em detalhes e o que apenas insinuar (essas também são decisões bem simples); mas é preciso ainda tomar milhares de minúsculas decisões como, por exemplo, na terceira sentença do começo do parágrafo deve-se escrever "azul" ou "azulado"? Ou seria melhor "azul-celeste"? Ou "azulão"? Ou "azul-marinho"? Ou poderia ser "azul-cinzento"? Bem, que seja "azul-cinzento", mas onde colocá-lo? No começo da frase? Ou seria melhor aparecer só no final? Ou no meio? Ou deixá-lo como uma frase bem curta, com um ponto antes e ponto e parágrafo depois? Ou não, quem sabe seria melhor fazer esse "azul-cinzento" aparecer no fluxo de uma frase longa, cheia de subordinaçoes? Ou quem sabe melhor seria simplesmente escrever as quatro palavrinhas "a luz da tarde", sem tentar pintá-las seja de "azul-cinzento" seja de "azul-celeste" ou de qualquer outra cor?"

Vejam, então, que não dá nem mesmo para me refugiar no ofício de escritora. Numa média de mais de três decisões para cada palavra, eu, que sou prolixa já decidi tanta coisa na vida que não sei como ainda me presto a escrever. Mas essas decisões não me amedrontam. Podem cansar, mas amedrontar, não, principalmente depois do advento do computador e das teclas deletar, cortar e colar. A gente sempre tem a chance de revisar e corrigir. Até depois de publicada uma história, sempre há a chance de fazer uma nova edição e publicar uma nova versão. Na vida real, porém, não dá para deletar, inserir, revisar. Fazemos e pagamos o preço. O problema é que, na maioria das vezes, desconhecemos o preço que vai ser cobrado. Acho que por isso é que o Rosa dizia que viver é muito perigoso: periga chegar no final e descobrirmos que estamos na falência.

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