Sunday, August 21, 2011

Melancolia

Escolhi o sábado chuvoso para ver o filme do Lars von Trier. Fui assim meio de pé atrás, receando ficar deprimida, mas o filme não permitiu: lindo, interessante, com imagens e situações inesperadas, sem melodrama, mas com tantos detalhes saborosos!… Para mencionar apenas um, a figura deliciosa do organizador de festas que não quer olhar a noiva e cobre o rosto. Como no velho truque das caixas chinesas (estudei isso na Faculdade de Letras…) uma história repete a outra: um astro rebelde atrapalhando a festa. E ninguém quer ver.
Mesmo na escuridão, na depressão, nos desentendimentos, tudo o que fica é a beleza. Uma beleza nada piegas, mas sempre incompleta. Sem clichês, sem baboseiras, sem lágrimas desnecessárias, com uma boa dose de agressividade e uma excelente dose de silêncio. Com contundência. Saí de lá com a luz de Melancolia brilhando no meu horizonte e me dando vontade de viver num mundo assim. Assim como, ameaçado? Bem, ameaçado nosso mundo está, claro. Mas num mundo em que ainda encontramos pessoas que sabem o valor da vida. Mesmo que em extinção. E que sejam humanos até o último nanossegundo! Um filme que precisa ser visto e depois digerido, comentado e apreciado.
A semana foi de muita correria, de ida a São João de Meriti e de encontro com almas boas, íntegras, corajosas, cheias de esperança. Adorei. E espero que Sant'Anna e São Joaquim sejam felizes para sempre, mesmo que só no palco, sob a direção de Abílio Ramos. E que os poetas que conheci mantenham sua sensibilidade, sua integridade e sua força.
Visitei, pela primeira vez, a minha editora, Record, em suas incrivelmente simples instalações. Livros por toda a parte, fiquei com a impressão de que as divisórias são feitas por livros, e nada mais. Enchi meus olhos com uma coleção de Jabutis para ninguém botar defeito. O troféu não é lá uma beleza, nem brilha mais do que as estrelas. É pequenino, escurinho, quase uma muiraquitã. Mas segurar um, sopesá-lo, ler o que estava escrito em cada pedestal, me deixou com o que os americanos chamam de "longing". Não sei bem como traduzir: anseio, desejo? Admiração desejosa? O fato é que, de todos os prêmios literários no Brasil, o Jabuti é o que mais me encanta, pois tem aquela coisa modernista de "clã do jabuti", de sobrevivência na adversidade, que é a marca do herói totêmico de nossa nacionalidade. Viva o jabuti! Nosso heroi, esperto e desajeitado, meio lento, mas capaz de colar seus caquinhos e seguir em frente. Começo a entender minha identificação com ele…
E me lembro do poema de Drummond, que sempre me comove até às lágrimas, Elefante:

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos moveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
e é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
e as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,caio

no meu vasto engenho

como um simples papel

A cola se dissolve

e todo seu conteúdo

de perdão, de carícia

de pluma, de algodão,

jorra sobre o tapete

qual mito desmontado.


Amanhã recomeço.

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