Tuesday, November 11, 2008

Maluca beleza

Se não existissem a internet e os blogs eu estaria fazendo parte de uma raça que já foi conhecida como "maluco beleza" -- andaria por aí, falando sozinha, pois converso aqui com o blog, já que não tenho com quem falar. Será que isso me faz mais sã do que aqueles mendigos vociferantes? Nos velhos tempos de Posto 6 havia um mendigo, que cheirava éter, a quem minha família me proibia de dar esmola, para ele não insistir no vício. Quando virei adolescente rebelde, o mendigo, que parecia eterno, continuava por ali e eu passei a lhe dar o pouco trocado que tinha, penalizada -- se todo o prazer que aquele homem tinha se concentrava num frasquinho de éter, porque eu não o ajudaria a obter? Sei lá, posso estar moralmente errada, mas eu não conseguiria transformar aquele ser num ser humano outra vez, com dignidade. Então lhe oferecia uma contribuição para o delírio, onde ele poderia ser o que quisesse, inclusive voltar a ser humano.
Agora aqui por perto há uma mendiga, muito mal-humorada, que vive vociferando pela esquina. De vez em quando ela some, depois volta, interpelando os passantes. Eu passo pouco pelas ruas, mas já cruzei com ela algumas vezes. Ela está sempre numa espécie de comício, gesticulando. Ninguém para e conversa com ela, mas já vi muitas pessoas pararem por perto e ficarem rindo dela. Talvez bastasse alguém para ouvi-la se queixar (de quê? não consigo entender o que ela diz quando passo apressada) e esta mulher pudesse voltar a ser alguém com outros sentimentos que não a mágoa e a revolta. Mas somos todos covardes, a começar por mim, que reclamo de não ter com quem falar, mas também não desejo ser interlocutora da mendiga.
Há muitos mendigos por aqui -- um rapaz que dorme pela calçada, até tarde, talvez sentindo-se mais protegido pela luz do dia. À noite deve vaguear assustado, e de manhã dorme, indiferente à luz e aos ruídos. Talvez tenha sido ele o rapaz que me cortou o coração, no dia em que o ouvi pedindo esmola a um senhor que passava, que deve lhe dar alguma coisa costumeiramente, pois ele dizia: não quero dinheiro, quero um agasalho. Até hoje, ao contar isso, meus olhos se enchem de lágrimas (que não derramo, ser racional e experimentado que sou). Tive vontade de ir comprar para ele casacos e suéteres, meias, sapato, o que ele precisasse para mitigar o frio. Mas não fiz nada disso. Continuei o meu caminho, e hoje me consolo pensando que, por mais que eu oferecesse roupas, o frio de que ele precisava se proteger era o da indiferença social. Como é que não cuidamos de nossos vizinhos? Quando deixamos de ser habitantes de aldeias, onde todos podem compartilhar o pão e o agasalho, e podem se sentar ao redor de uma fogueira e contar suas histórias, ouvir outras, com-viver?
Ao invés disso, aqui estamos, em frente de uma tela, seja de computador ou de TV, cada vez mais solitários, menos solidários, mais malucos e menos beleza.

2 comments:

Guido Cavalcante said...

Num post há pouco tempo atrás vc comentou que vive muito só. Agora que "não tem com quem conversar".

Cara, vc deva talvez mudar a perspectiva: - vc não tem quem lhe interesse para conversar.

Porque certamente hão de haver muitos que a rodeiam na escola, em casa, nos bares e restaurantes. Apenas está ausente "unzinho especial". Não será isso? Se for assim, vá à luta, que você vai encontrar:-)

Ana Cristina Melo said...

Adorei o conto "Uni-Ni-Du-Ni-Taú". Um mote tão difícil como esse e você foi brilhante.
Parabéns! Sua prosa é uma delícia.

Acabei "Linha de Sombra". Gostei. Sinceramente, bem mais da parte do sol, mas depois te falo a respeito.