Quando era pequena, certas histórias me fascinavam -- a revolta dos brinquedos, por exemplo. Adorava estas possibilidades mágicas, de que, quando não observados, os objetos pudessem existir de uma maneira independente, e que se movimentassem, pensassem, interagissem, assim como nós. Com o tempo, e a invenção das câmaras de vigilância, essa minha crença se desfez. Somente alguns objetos parecem ainda conservar seus poderes, pelo menos aqui em casa: livros e facas.
Qual será o mistério desses seres?
Alguns me abandonam para sempre -- livros que estou procurando há mais de ano, e que ou foram emprestados e não devolvidos, ou sumiram graças a alguma arrumação apressada, motivada por absoluta falta de espaço em cima das poltronas ou de minha própria cama. Sim, durmo com livros, numa licenciosidade absoluta. Quantos autores e autoras já não passaram pela minha cama? Perdi a conta. Alguns dormiram o sono de pedra dos jamais abertos... poucos. Geralmente convido aqueles de que mais gosto.
Quando estou doente -- coisa rara, minhas mazelas são do espírito, não do corpo -- eles se reúnem no meu leito, como médicos numa junta. Ora um me sussurra um pensamento, ora outro me faz rir com uma piada, outro, ainda, me rapta e me faz esquecer a dor, ou a febre, ou seja lá o que for, e me leva para paraísos perdidos, ou tenebrosos esconderijos. E converso com as personagens que se acomodam a meu lado, sem precisar dizer palavra, apenas através dos pensamentos, rápidos, instantâneos, quase incompreensíveis.
Mas, no mundo acordado, os livros me pregam peças. Começo a ler um livro, e, se porventura preciso parar, alguns, mais dóceis, me aguardam com o marcador porto no lugar, sem protesto. Outros, voluntariosos, se encantam e somem. E lá fico eu, procurando-os por dias e meses a fio, até que, apaziguados, eles se mostram outra vez, e se deixam terminar de ler. Um dos livros que tem brincado de esconder comigo é Memórias de la niña mala, do Vargas Llosa. Comprei-o em espanhol, antes de sair aqui no Brasil, e comecei a ler lá mesmo na Argentina. Depois, volúvel, comecei a leitura de outro, e o livro, suscetível, até hoje ainda não se deixou ler: de vez em quando o encontro, mas ele volta a se esconder com habilidade de espião.
Agora estou a procura dos dois Por que ler -- Dante e Borges. Tenho que resenhá-los e os marotos não se deixam encontrar. Por favor, apareçam. Não sei se se assustaram com a inundação aqui em casa, no mês passado, o fato é que já olhei por toda a parte e os danadinhos não apareceram. Também não vi o do Vargas Llosa. Quem sabe estão compartilhando o esconderijo?
Lá vou eu, mais uma vez, em seu encalço.
3 comments:
Tente São Longuinho.
Geralmente funciona
São Longuinho, São Longuinho, se eu achar (nome do objeto perdido) dou três pulinhos e 3 gritinhos (Achei, São Longuinho. Achei, São Longuinho. Achei, São Longuinho.)
(cf Wikipédia)
Antigamente meus livros sumiam com mais freqüência. Depois que fiz uma estante de parede inteira para eles, sossegaram. Mas de vez em quando algum se perde dentro das minhas pastas, bolsas e sacolas, que vou escolhendo para me acompanhar no dia-a-dia. O problema continua sendo o fato deles me disputarem o tempo todo. Tento atendê-los, lendo uns 3 ao mesmo tempo, mas nunca é suficiente. Alguns ficam roucos, perdem a voz e a disputa. Quando os reencontro tenho que recomeçar a história.
Li, assim que saiu, "Travessuras da menina má" (na versão traduzida). Gostei muito. Torço para você encontrá-lo.
Se São Longuinho não adiantar, pede por favor para os duendes devolverem. Os daqui de casa adoram esconder objetos, e é só eu afirmar que foram eles, para que a brincadeira perca a graça, e eles devolvam o que pegaram.
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