Thursday, November 13, 2008

Ao pé da letra

Não me levem ao pé da letra, pois as coisas que escrevo aqui não correspondem a uma realidade "real", mas a uma realidade "percebida". Não sou deprimida, nem solitária, nem infeliz. O que não consigo é me conformar com a perda de um interlocutor privilegiado, com quem eu podia falar desde o preço do feijão até meu medo da crise, desde revista em quadrinho até Tolstói, e que, ainda por cima, fazia com que eu me sentisse mais bonita, mais inteligente, mais desenvolta com seus comentários. Tenho muitos amigos, e adoro todos eles. Mas preservo minha "solidão", pois, como disse a Virginia Woolf, é necessário ter um canto só seu para se poder escrever. Uma de minhas amigas (que são de todas as idades, e disso me orgulho muito) faz 9o anos em junho. Mora sozinha, não tem filhos, é viúva, mas dentre todas as pessoas que conheço é a que tem mais alegria de viver. Viaja todos os anos, mais de uma vez. Sempre tem programas, almoços, teatros, jogos de biriba. Às vezes ela viaja comigo, e, por uma ou outra razão, preciso sair sozinha para dar uma aula, por exemplo. Preocupo-me, convido-a para ir comigo, digo que não quero deixá-la sozinha e ela me responde: Mas eu sou ótima companhia para mim mesma! E é verdade. Ela lê, ela vê filmes, escuta música, telefona (isso eu não faço). Quando volto, ela está maravilhosamente bem, com mil coisas para falar à cerca daquilo que leu ou que viu ou que escutou. Quando estamos juntas, sempre rimos muito -- ela é engraçada, tem tiradas maravilhosas e é uma namoradeira. Seus olhos, brilhantes, estão sempre dançando pelos rostos masculinos, avaliando-os com o que eu julgo ser experiência de boa conhecedora. E ela é uma grande professora, está sempre me dando lições de vida, sem fazer sermões, só pelo exemplo e pelos comentários. Só ela mesmo para me animar a pegar o carro e atravessar a ponte na hora do rush para ir assistir um filme "imperdível" em Niterói. E quando lhe disse que eu adorava o passeio pela ponte, ela concordou entusiasmada, dizendo: Isso devia ser cobrado em dólar! Olhe para esse mar dos dois lados! Olhe para as montanhas! Só cobrando em dólar!
Vimos o filme, voltamos, jantamos, fizemos planos para a próxima saída e lá foi ela de táxi para a casa, pois estávamos ao lado de minha casa e ela não permitiu que a levasse. "Eu gosto de andar de táxi, e os motoristas gostam de dirigir", justificou-se ela. E eu fico por aqui, dizendo: Eu gosto de você, minha amiga, e sei o quanto devo a sua alegria e compaixão, que me ajudaram a atravessar os dias mais tenebrosos de minhas angústias.
Tenho, ou tive, outra amiga, que se foi cedo e deixou uma grande saudade. Era médica, e sabia que não tinha muito tempo, mas eu não acreditava, pois na época ainda pensávamos que éramos todos imortais. Ela saía comigo e ia olhando as árvores, bebendo aquelas imagens, com intensidade. Eu também sou grande admiradora de árvores e, quando estas estão floridas e ostentam suas cores vibrantes contra o céu, fico deslumbrada. Minha amiga, porém, tinha outra intenção -- a mim me parecia que ela queria guardar aquelas imagens, gravá-las, apropriar-se delas para levá-las a uma outra vida. Espero que ela e Guilherme estejam nesta outra realidade, ambos com suas provisões de imagens belas. Mira com as árvores, Gui com o por do sol sobre o mar. Eu ficarei feliz se, numa outra vida, tiver a visão dos rostos deles contemplando suas belezas prediletas.

2 comments:

Guido Cavalcante said...

"Não me levem ao pé da letra", o aviso me lembrou aquela história que as mães contavam, sobre a garotinha que sempre estava a pedir por socorro. Quando acudiam aos seus chamados, ela ria, dizendo que era tudo mentirinha. Bem, um dia parece que o lobo mau passou por lá, a garotinha gritou, ninguém acudiu e o lobo devorou uma perna da menininha. Bom que foi só uma lenda :-)

Unknown said...

Olá Lucia,
Sempre temos nossos momentos de fuga e quem não tem seu cantinho de solidão?
Me desculpe o Gui, com todo o respeito e minha timidez, você continua linda, inteligente e mais desenvolta que a primeira vez que te vi.
Seja como for o importante é você não deixar de escrever nesse espaço que é meu momento de fuga em qualquer lugar onde estou.
Ah!Voce não disse nada do modelo 5.8 no seu blog de maridos e vestidos com manga...eheheh!
Beijos,
Amauri