Fui a um candomblé no sábado. Um candomblé sui generis, comandado por uma francesa de mais de oitenta anos, socióloga, que veio ao Brasil acompanhando o marido, que era diplomata. Aqui ela se interessou pela religião de raízes africanas e acabou se convertendo. Quando o marido retornou a França, ela voltou com ele, mas não se adaptou mais e voltou para cá. Tem um sítio lá em Caxias, e montou seu centro, muito bem montado, por lá -- templo e casa, ela vive na companhia dos seus santos.
Quando cheguei, já havia por lá uma considerável multidão. Muitos carros, foi difícil até encontrar um lugar para parar. Fazia calor, e com tanta gente reunida, com roupas tão exóticas, só de olhá-los parecia que o calor aumentava, mas me concentrei nas bandeirinhas multicoloridas que se agitavam com o sopro dos ventiladores: parecia um mar sobre nossa cabeça, um mar iridescente, ondulante, festivo. As flores que enfeitavam as pilastras nem pareciam sofrer com o calor, e se mostravam orgulhosas em meio aos laços de fitas que as prendiam.
As pessoas convidadas, em suas roupas claras, aguardavam pacientes pelo cortejo, que após alguma demora veio com seus belos e calorentos trajes. Mulheres com turbantes e saias rodadas, panos amarrados, colares. Homens com seus costumes coloridos, seus chapéus bordados, suas túnicas de mangas longas. Os tambores acompanhavam os cânticos que saudavam os Orixás. Foram muitos os cantos, muita gente dançando em roda, com trejeitos ensaiados, ou predeterminados. Aqui e ali eu reconhecia um nome de Orixá. Ogum, Iemanjá, Obá, Oxóssi, Oxum, Xangô. Dançaram, dançaram, cantaram, cantaram até que, num determinado momento os santos começaram a baixar. Uma Iemanjá, três Ogum, um Xangô, três (ou quatro, se considerarmos um que só andava curvado, como se fosse um velhinho, ou uma velhinha) Oxalá, uma Obá, um outro santo que depois sumiu, que cantava como um pássaro...Foram vários. Houve, então, um intervalo nos cantos e danças e os Santos se retiraram, para se vestir com suas vestes específicas. Iemanjá, incorporada na velhinha francesa, veio muito elegante -- afinal, a festa era dela -- e dançou primeiro. Depois houve um cortejo, e uma ajudante de Iemanjá trouxe uma bilha de água equilibrada na cabeça, e essa água foi distribuída aos presentes, em copinhos plásticos. Finalmente ela se sentou, na companhia de outros santos que não reconheço, e ficou recebendo as homenagens dos visitantes e dos outros Orixás, que dançaram suas danças próprias. Após a dança eles eram levados por auxiliares para fora de cena, talvez para suas casinhas próprias, ao redor do pátio. O povo soltava algumas saudações. Sei que depois de tudo haveria um jantar, mas voltamos antes de a comida ser servida. O cheiro estava apetitoso, mas o caminho de volta era longo, e achamos melhor dispensar a comida e voltarmos em caravana com outro carro, de pessoas conhecidas.
Entendi pouco da cerimônia, mas adorei ter ido lá. Fico imaginando o que esta senhora francesa, formada em sociologia, descobriu no candomblé que a tornou uma devota. Logo uma francesa, uma compatriota de Descartes, representante de um povo tão racionalista... Ah, os mistérios da fé. Que encanto! E que linda festa, em sua sinceridade, em sua singeleza. Será que as pessoas entendem o que estão cantando? Será que percebem que os gestos que fazem são estilizações de atividades próprias de cada um dos orixás? Um caça, outro pesca, outro sega as colheitas...Isso são coisas que li, há muito tempo, quando visitei Salvador pela primeira vez. Agora que estou aqui escrevendo, estou pensando nos livros do Mia Couto. Em especial, no chamado O último vôo do flamingo.A Obá, toda vestida de cor de rosa, que estremecia como uma ave assustada, me faz evocar esse flamingo. A moça era linda, uma jovem negra de rosto redondo e olhos amendoados, que se mantinham fechados. Ela parecia uma Mia Farrow, esguia, delicada, traços finos, tão profundamente negra que seu corpo parecia absorver a luz que chegava até ela.
Lembro da entrevista em que o Mia Couto falou que manteve, no escritório, enquanto escrevia o livro em questão, uma pena de flamingo que havia encontrado. E espero manter em minha lembrança essa dança e essas imagens até que um dia elas passem a pertencer a alguma história que eu conte. Seja o tom de pele dessa moça, seja o gemido contínuo que a francesa deixava escapar em seu transe, seja o gosto estranho da água que foi compartilhada e a gentileza extremada das pessoas que nos indicaram por onde passar, sei que, em algum conto meu, mais cedo ou mais tarde, esses detalhes vão compor algum personagem, alguma cena. Talvez quando entender melhor o que presenciei, eu seja capaz de contar essa história. Até lá, guardo aqui no blog esses detalhes, aguardando o vôo, que guiará o sol... ou o sonho.
1 comment:
Querida, deve ter sido uma festa linda. Que experiência...
Qdo. li o post anterior, entendi que você está para fazer aniversário. Você é também de Aquário? Nonô faz no dia 25.01, eu faço 31.01, paizinho dela e o Huysmanns (veja só, o do A Rebours, dia 5.02).
Beijos da Eugenia.
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