Promessa é dívida, diziam antigamente, nos tempos de minha avó, quando a ética era coisa que se respeitava. Eu fui criada por ela, talvez por isso seja uma sujeitinha anacrônica -- o que não é um xingamento, viu?
Aqui venho cumprir o prometido, escrever sobre o ballet Proust ou les intermittences du coeur.
Roland Petit dividiu o espetáculo em dois atos. No primeiro, Algumas imagens dos paraísos proustianos, como está intitulado, temos sete "quadros". Descrevo um por um:
Primeiro quadro: Uma matinée na casa de Mme. Verdurin, a burguesa em busca de ascenção social, que copia os modelos dos aristocratas, já em declínio, mas ainda com muito prestígio social. Os figurinos de época, um piano de cauda, um cantor que entooa uma canção de Reynaldo Hahn, e um sósia de Proust que permanece imóvel, numa conversadeira, nos mergulham diretamente nas reminiscências do romance e da vida de Proust.
Rapidamente passamos para um novo quadro, desta vez a interpretação do que seria a "pequena frase" de Vinteuil. Para quem desconhece o romance, Vinteuil é um compositor imaginário, que morre desconhecido, mas deixa uma obra pequena e linda, que perpassa todas as páginas do romance, como fundo musical dos amores vividos pelos personagens. Esta pequena frase, que é o "hino nacional" dos amores de Swann e Odette, é descrita como um diálogo entre o violino e o piano, um fugindo do outro, e depois se encontrando, como uma brincadeira pueril de esconde-esconde num jardim. Roland Petit usou a sonata para violino e piano, de Cesar Franck, já que esta é, confessadamente, uma das fontes de inspiração para o que Proust imaginou como a obra de Vinteuil, e aproveitou as descrições proustianas da pequena frase para a elaboração da coreografia. Um resultado delicado e de muito efeito plástico. O bailarino é o violino e a bailarina representa os sons do piano.
Quadro terceiro: Les aubépines ou les mots fées.
A flor da infância de Proust é a da aubépine, arbusto cujos ramos espinhosos confeccionaram a coroa de Cristo, e que floresce na época da Páscoa. Suas flores lhe despertam o desejo de escrever, e em meio a elas ele descobre seu primeiro amor, Gilberte. O cenário é composto por um pano rendado, dando a sensação de um maciço florido, e as aubépines são representadas por bailarinas vestidas de branco, carregando sombrinhas de renda. No meio delas, desponta Gilberte, ainda um símbolo da pureza.
Quarto quadro:"Faire catleya" ou As metáforas da paixão:
Outra flor poderosa do imaginário proustiano, a orquídea - a catleya - com seu formato sensual e exótico, se transforma num símbolo de Odette, a mulher prostituída que acaba se casando com um dos mais cobiçados partidos da alta-sociedade da época. Swann, delicado e cavalheiresco, faz-lhe a corte como se ela fosse uma mulher de gabarito e a primeira vez que a possui é depois que, na carruagem, um solavanco inesperado desarranja as catleyas que Odette prendeu no decote. Ao reajustá-las, os dedos de Swann tocam na carne de Odette o que acende o desejo entre ambos, que acabam na cama. A partir daí, fazer amor, para o casal, passa a ter o nome de "fazer catleya". Odette, porém, é uma mulher livre, que tem outros amantes, o que tortura os ciúmes de Swann. Finalmente, ele consegue conjurá-los, casando-se com ela. A beleza do quadro está em como R.P. conseguiu, em poucos momentos, contar toda uma história entre os dois, e ainda oferecer tantas informações sobre Odette. Ela aparece numa roupa elegantíssima, em preto e branco, com uma única e enorme orquídea vermelha presa ao decote. Swann está vestido com uma casaca cinza, do mais fino gosto. Odette se revela com trejeitos estilizadamente orientais, moda da qual era adepta, e demonstra que em nenhum momento se deixará prender a apenas um homem, num ballet elegante ao som de um trecho do concerto para harpa e orquestra de Camille Saint-Saëns.
Estou me estendendo demais. Volto em outros posts, para dar mais detalhes.
2 comments:
Olá Lúcia, muito bom seu blog. Acabei de criar um, e seu nome inaugura meu primeiro post. Dá uma passada lá, verahelena.blogspot.com.
Abraços,
Vera Helena Rossi
Muito visual a sua descrição! Gostei muito! Grande abraço, Tereza.
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