Estou me dividindo entre ídolos apolíneos e dionisíacos desde que julguei ter entendido os conceitos. Ora sou totalmente fascinada pelo lado apolíneo de Cabral e de Drummond, ora me deixo embarcar na embriaguês condoreira de Castro Alves. Seja eu apaixonada por Vieira ou por Machado, fique eu sob o domínio de Oswald ou de João do Rio, acontece que sou sempre inconstante e gulosa, ansiando pela ordem na desordem ou pela paixão na lucidez.
Esta semana foi interessante, já que consegui, acidentalmente, reunir as duas "pontas da vida". Segunda feira, munida de um livro de Rimbaud, embarquei para São Paulo, para assistir ao show do Paul McCartney. Confesso: foi meu primeiro show. Nunca tinha ido assistir a nada do gênero, nunca fui ao Maracanã para ver Rolling Stones, nem ao Circo Voador para assistir Cazuza. Sou tímida. Tenho uma leve sensação de pânico em locais onde se concentram muitas pessoas. Mas era Paul McCartney, ele tinha sido um dos Beatles, e eu de repente me descobri menina e inconsequente. Lá fui eu. Na enorme e incompreensível cidade, que se recusa a desvelar sua geografia a uma carioca que se orienta pelo mar, lá estava eu, com frio, debaixo de chuva, esperando um táxi que me levasse para o Morumbi. Consertei o frio, comprando um casaco. Afinal, meu hotel era na Oscar Freire. Mas a chuva e a falta de táxis pareciam mais difíceis de resolver. Contei com a sorte, e graças a ela consegui táxi e uma hedionda capinha de chuva, daquela vendidas em sinal. Depois, já no estádio, sentada em minha cadeirinha azul, vi a chuva cessar, o estádio se encher de gente e de vendedores ambulantes que me ofereceram todos os tipos de churros. Churros? É, churros, recheados de chocolate e de doce de leite, envoltos em açúcar e canela, churros gorduchos e melados cuja visão me provocava engulhos. Cestas e mais cestas desciam as escadarias repletas e voltavam vazias, testemunhando a preferência paulista pela iguaria. Até o show começar, porém, eu me perguntava se haveria paulistas ali naquela plateia. No avião que fui para SP as camisas estampavam o rosto de Paul, sozinho ou acompanhado por seus ex parceiros. Estariam eles comendo churros?
Quando o show começou, percebi que Paul deve ser o único roqueiro apolíneo que conheço. Impecável, arrumadinho, simpático e inteligente, ele comandou o show com eficiência matemática. Cantou o que quis, como quis, fez as homenagens que julgou devidas, tirou o paletó e lá ficou ele com sua camisa branca, suas calças seguras por um suspensório, sua peculiar maneira de marcar o ritmo com as pernas juntas. Regeu a platéia em improvisos, revelou uma forma física invejável para sua idade. Aguentou uns quinze minutos de palco sozinho, com um violão e sua voz. Pirotecnia? Teve aqueles manjados fogos de artifício quando ele cantou Live and let die. Digo que são manjados porque até em kick-off de empresa eles são utilizados. Mas fazem efeito, sobretudo numa noite paulista.
A plateia me convenceu de que era mesmo paulista. Ao meu lado, ninguém dançou, ninguém deu gritos histéricos e os que cantaram, estavam um pouco mais afastados. Resultado: encabulada, eu também não dancei, não perdi a voz gritando nem mesmo cantando. Cantarolei baixinho, sorri muito para minha vizinha, Vera, que me perguntou se eu tinha assistido o outro show que ele tinha feito no Pacaembu. Eu nem sabia desse show, confessei. Ela me consolou, dizendo que eu era muito novinha para saber. Tive que concordar. Como vocês já sabem, eu estava ali com onze anos de idade apenas.
Não tenho termos de comparação, uma vez que esse era meu primeiro show de rock. Mas nada do que eu esperava aconteceu. Nenhum excesso. Nenhuma confusão. Tudo absolutamente ordenado e era o próprio deus Apolo que cantava com suas muitas liras no palco. Nunca vi tanta guitarra junta. Era a tradicional, que parece um violino de cabo comprido. Era uma com florzinha. Era outra de duas cores, era violão, era triangular… perdi as contas. Teve piano. Teve teclado psicodélico. E imagens, muitas imagens projetadas no telão, para que alguém pudesse ver alguma coisa dele. E para que todos pudessem relembrar os instantes de loucura do passado. A distância deixava todos (e tudo) minúsculos.
Mas adorei o show. Pode parecer que não, devido à minha perplexidade com essa ordenação toda. No entanto, adorei.
Só que, não esqueçam: fui para SP com um livro de Rimbaud. E existe poeta mais dionisíaco que Rimbaud? Apregoando o desregramento total de todos os sentidos, desafiando tudo e todos, o adolescente Rimbaud me fascina, principalmente por seu contraste com o Rimbaud posterior, o comerciante taciturno, o doente terminal sofrendo dores atrozes, mergulhando mais uma vez na paz da morfina. Altos e baixos. De um lado o "príncipe feliz", de outro "o mais infeliz dos poetas". Sangro com Arthur, o jovem cujo talento só foi reconhecido tarde demais. Sofro com o envelhecido Rimbaud, amargo e seco, cuja vida se extinguiu em meio a tantos sofrimentos. E escuto a voz forte e educada de Paul McCartney, me maravilho com sua musicalidade, com sua disciplina, e me pergunto: a quem pertence o mundo, afinal? Apolo ou Dioniso? Devemos embarcar com um ou alçar voo nas asas do outro?
Mas, será que precisamos escolher?
1 comment:
Olá Lúcia, meu nome é Juliana Galdino, sou atriz, moro em São Paulo, estive a pouco tempo no Rio com Comunicação a uma Academia, preciso falar com vc sobre um conto seu que li e me interessa montar no teatro... Deixo meu e mail pessoal, poderia me escrever só pra deixar o seu? club.noir@hotmail.com
Um abraço
Juliana
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