Friday, July 09, 2010

Em defesa dos contistas

Outro dia, um amigo se queixou de que sua Editora, respeitável e competente casa que há décadas defende sua posição de destaque entre suas irmãs, recusou seu último livro com o pretexto de que “conto não vende”. E pediram-lhe que escrevesse um romance, a ele, que sempre foi contista apreciado.

Algumas pessoas, respeitadas intelectualmente, têm a idéia errônea de que o “conto” é um gênero menor, uma espécie de treino para o romance. Isso talvez se deva ao fato de que o conto é a forma “natural” de transmissão das histórias, desde tempos imemoriais. É essa a forma que nutre nossa sede “literária” desde a infância (a nossa e a da humanidade). Os contos da carochinha, como se chamavam antigamente, os contos de fada, os contos morais, que educaram os príncipes do passado, e os contos que se aperfeiçoaram no século XIX com Maupassant e Tchekov, com o extraordinário Machado de Assis, com Poe, Hoffman e que chegaram ao século XX com a força de praticantes excepcionais como Clarice, Borges e Cortázar, e ainda O. Henry, Virginia Woolf , Kafka e outros tantos que valeria a pena mencionar. Se Clarice e Julio Cortazar, por exemplo, também escreveram romances, O. Henry e Borges, um dos escritores mais respeitados no mundo, fizeram sua fama com seus contos.

O romance é o gênero literário mais tardio, que floresceu no século XIX e que hoje tenta se reinventar. Existem mesmo casos curiosos de romances como Vidas Secas ou Memórias póstumas de Brás Cubas, considerados como romances desmontáveis, uma vez que seus episódios possuem autonomia e podem ser lidos separadamente.

A vida moderna, com suas numerosas solicitações tecnológicas é cada vez mais avara com o tempo. A leitura, atividade que, tradicionalmente, exigia concentração e vagar, se tornou uma prática diferente, nervosa, entrecortada. Os jornais e revistas já se aperceberam destas modificações e todos estão se modificando, diminuindo a extensão de seus artigos, copiando modelos surgidos na internet de notícias cada vez mais concisas, que informem instantaneamente. Muitas vezes, ao falar com amigos, eles se queixam de que tiveram de abandonar um romance por que, a cada vez que interrompiam a leitura, perdiam-se na história, e era preciso voltar atrás, tornando a tarefa interminável. Outros comentam que “agora só conseguem ler contos”. Uma jovem me disse: “Os contos têm a duração de meu trajeto no metrô”. Outra pessoa me confidenciou que já não consegue mais focar sua atenção numa narrativa longa, e que tudo o que consegue ler são contos.

Escrevendo isso, penso que até no cinema os contos estão em voga. Não falo em curtas, que se popularizam, mas em filmes de grande sucesso que são coletâneas de “contos visuais”, como Paris e Nova Iorque, eu te amo, ou o premiado Crash, onde vários contos, distantes no tempo e no espaço, se entrelaçam numa parábola da globalização.

Talvez seja hora de as editoras repensarem seus valores e de acordarem para a nova realidade. Os contos, forma natural de narrar, permeiam nossas vidas e todas as eras. Não saem de moda. Já o romance vai retornando à forma da novela: os capítulos cada vez mais curtos, episódicos e fechados, encadeando-se com outro episódio anunciado para, à feição de Sherazade, conseguir manter-se vivo. Ou, verdadeiro modelo de armar, construído com fragmentos de história que fazem de sua leitura uma espécie de jogo da memória.

A alegação de que “conto não vende” começa por pecar ao pretender jogar a obra no mercado. Produto vendável, fabricado para a “demanda”, o livro em que as editoras investem suas verbas de marketing são aqueles que não discutem a realidade, e sim reforçam uma ideologia que acabará por nos levar a uma nova forma de pensar. Seres visuais, forçados a viver sempre no presente, volátil, esse ser humano que em breve nos substituirá já não comprará mais romances, nem mesmo contos. Os livros desaparecerão, já que todos nós seremos apenas personagens desta ficção da qual o “Mercado”, todo poderoso, se alimenta.

Se as próprias casas destinadas à disseminação dos livros, argumentam que “conto não vende”, em breve terão que admitir que “romance não vende” e que caminhamos para um inferno sem livros.

7 comments:

Sergio Leo said...

É Lucia. Se as editoras dedicassem aos contos a carga de propaganda que dedicam aso romances, gostaria de ver se "conto não vende" nmesmo...

Ana Cristina Melo said...

Lucia, querida,

seu post foi preciso. Acrescento que o problema do mercado editorial e da própria mídia é o preconceito. Quando se derem conta que não existe preconceito na literatura, nem de sexo, nem de idade, muito menos de gênero, viveremos enfim uma era de leitores.

Não vende, pois o público não conhece, os Bus Door divulgam romances estrangeiros, as bancas de destaque das livrarias estão repletas de não-nacionais.

É uma consequência. Divulgue que o público vai conhecer, vai amar e vai comprar.

Essa semana eu fiquei muito triste com a morte de um escritor de literatura infantojuvenil, o Sérgio Klein, que vinha despertando o prazer da leitura em milhares de crianças. Ao comentar dele com pessoas fora do meio literário, descobri que não o conheciam. Isso é o que a mídia faz.

Enquanto eles não mudam o pensamento, vamos nós, como formigas laboriosas, fazendo a nossa parte.

Beijo grande, minha amiga.

Valéria Martins said...

Pois é, querida Lucia... Eu ouço isso direto dos editores. Não sei o que dizer. Beijos

Unknown said...

Querida, realmente muitos contistas já ouviram que deveriam voltar a procurar um editor depois de terem escrito um romance. Sabemos que a história não é bem assim: contos e romances requerem habilidades distintas, se bem que há escritores que tenham feito isso de forma brilhante e cito Eudora Welty. Lembro o que Nadine Gordimer, ganhadora do Nobel disse: Certainly the short story has always been more flexible and open to experiment than the novel. Short-story writers always have been subject at the same time to both a stricter technical discipline and a wider freedom than the novelist. Short-story writers have known—and solved by nature of their choice of form—what novelists seem to have discovered in despair only now: the strongest convention of the novel, prolonged coherence of tone, to which even the most experimental of novels must conform unless it is to fall apart, is false to the nature of whatever can be grasped of human reality. How shall I put it? Each of us has a thousand lives and a novel gives a character only one. For the sake of the form. The novelist may juggle about with chronology and throw narrative overboard; all the time his characters have the reader by the hand, there is a consistency of relationship throughout the experience that cannot and does not convey the quality of human life, where contact is more like the flash of fireflies, in and out, now here, now there, in darkness. Short-story writers see by the light of the flash; theirs is the art of the only thing one can be sure of—the present moment. Ideally, they have learned to do without explanation of what went before, and what happens beyond this point. How the characters will appear, think, behave, comprehend, tomorrow or at any other time in their lives, is irrelevant. A discrete moment of truth is aimed at—not the moment of truth, because the short story doesn’t deal in cumulatives.
Enfim é isso: continuemos a tentar capturar esse momento. Um belo dia, T.T.

Unknown said...

Em tempo: essa fala de Nadine Gordimer sobre o fazer do contista ficou conhecida como o "flash of fireflies", o flash dos vagalumes na escuridão, esse momento tão breve, intenso e revelador.

ítalo puccini said...

lúcia, olá.
sou leitor seu, de seus dois livros. trabalho com grupos de leitura de contos e sempre levo contos seus. são, para mim, perfeitos! "o inseto" é o que mais me marca!

adorei conhecer seu blog e ver um escrito tão bom quanto este com relação à leitura nos dias de hoje, e a presença do conto nisso.

voltarei.

um abraço grande,
ítalo.

Aninha Kita said...

Olá, Lucia!
Tenho seus dois livros publicados, e foi a partir de "Linha de sombra" que cheguei neste blog. Parabéns pelos contos, envolventes.
Também tenho um blog e escrevo muito ultimamente. Quero um dia ser escritora publicada também e adoro contos, escrevê-los e lê-los. Talvez por isso esta postagem chamou tanto minha atenção.
Tomara que o futuro não seja o fim dos livros, mas a valorização dos adoráveis livros de contos. Eu faço minha parte, tanto os comprando, quanto escrevendo possíveis.

Vou acompanhar o blog e desejo-lhe sucesso!
Abraços,
Ana Kita.