Sunday, April 22, 2007

Penélope, a impaciente

Talvez Freud tivesse em mente a figura de Penélope, quando emitiu sua famosa pergunta: O que querem as mulheres?
O que queria Penélope? Deixada em Ítaca, com um filho pequeno, sem a paciência e a criatividade de Odisseu, que tanto a reconfortava, teve que aprender a lidar com o sogro e, sobretudo, a sogra, mulher de personalidade forte e dominadora, temida pelo marido. Com a morte desta, e o afastamento de Laertes, ela assume a primeira posição na ilha e torna-se alvo do desejo de inúmeros pretendentes, homens que a cobiçavam pela posição que ela poderia garantir-lhes.
Sua fidelidade a Odisseu foi antes a fidelidade a si mesma, e a seu filho. Os anos se haviam passado, as lembranças de Odisseu se apagavam e se transformavam, conforme o interesse de quem o evocasse.Ninguém mais tinha a certeza de como o homem se comportaria, pois já ninguém se lembrava exatamente de como ele havia se comportado. Euricléia, a ama, Eubeu, o amigo de infância, eram poucos os que ainda se lembravam do antigo rei com benevolência. Penélope já nem lembrava da paciência de Odisseu em torná-la sua, nem do cheiro de seu corpo quando voltava suado das amenas caçadas aos pequenos animais da ilha. A brisa marinha lhe despertava lembranças de jogos à beira mar, quando, após dirigir as escravas nas tarefas de lavagem da roupa, era surpreendida por um marido vigoroso, estimulado pelo sol e pelos banhos de mar. Mas essa lembranças estavam cada vez mais indistintas, e seu corpo cada vez mais silenciado, pela constatação de que, satisfazê-lo, significaria colocar em perigo o futuro de seu único filho. Durante anos Telêmaco foi sua única fonte de carinho. Era ele que compartilhava seu leito, os braços do menino rodeavam-lhe o pescoço quando ela sucumbia às frustrações, e soluçava baixinho, até dormir. O menino assustado sussurava-lhe: não chore, mamãe. E ela, para tranquilizá-lo, engolia as lágrimas e endurecia o coração.
Aos poucos acostumou-se a mandar. Tomou as rédeas da casa, dos campos. Determinava as tarefas e as partilhas, organizou sua casa e começou a sentir o prazer decorrente da autonomia e do cumprimento do dever. Quando os pretendentes começaram a chegar, deixou-se envolver pelos jogos de sedução e conquista, até compreender que casar-se de novo seria abdicar da liberdade que gozava. Utilizou os mesmos jogos para conservar o poder: encorajando a todos, não encorajava a nenhum. As pressões aumentaram, ela encontrou um estratagema: enredou a todos numa teia, ganhando mais três anos de relativo sossego. Quando seu ardil foi descoberto, o filho já estava quase adulto, já tinha chances de se defender a si mesmo. Mas, para sua surpresa, ele parte e ela descobre que as mães são seres tão facilmente descartáveis quanto as recem-casadas. Olha-se no espelho, e vê-se não mais como era, mas como se havia tornado: uma mulher madura, sem muitas ilusões, independente demais numa sociedade que não permitia nem às suas deusas tamanha autonomia. Seu casamento já não frutificaria mais, seria apenas a confirmação da passagem do poder para um estranho. Mas, se ela demorasse mais, sua capitulação seria vã, pois nem sequer conseguiria atrair o novo marido para negociações na cama. Quando seu filho volta, suas esperanças retornam. Ele havia sobrevivido, tinha experimentado as asas, não sucumbiria facilmente às armadilhas. Casar-se significava conseguir um aliado para o filho. E ela anuncia sua resolução de casar com quem melhor manejasse as armas de Odisseu. Um anúncio que não deixa de ser ambíguo.
Para sua surpresa, o velhote alquebrado que acabava de chegar à ilha é o vencedor do torneio, e se revela o próprio Odisseu. Penélope o encara com os olhos da memória, e o vê belo como um deus. Mas logo o sortilégio se desfaz. O homem que retorna ao lar não é o mesmo que partiu. As lembranças de Odisseu não são as suas, eles compartilham muito pouco. Vinte anos se passaram, e eles nem se conhecem mais. Quando Odisseu anuncia que vai partir, a rainha o encara com indiferença e algum alívio. Quando ele embarca e desfralda a vela, manobrando para sair do porto, ela sente alguma ternura. Podia amar o marido ausente, o homem de suas memórias. O que não podia suportar era o homem de carne e osso, com cicatrizes que ela não ajudara a curar e atitudes amorosas que não tinha aprendido com ela.
Podemos não saber o que deseja Penélope. Mas sabemos que ela não deseja Odisseu.

1 comment:

Unknown said...

Gostei muito da sua visão sobre Penélope. E gosto muito d' A Odisséia, que é um livro a qual retorno quando sinto necessidade.É ótimo ter a ajuda dos deuses sempre, ver a capacidade de mudanças de formas: tudo fica mais fácil. Uma amiga minha, professora de literatura grega e latina, uma vez me alertou para a qualidade d'Odisséia e os vários gêneros literários aí encontrados. Ulisses,como herói épico, tem seus aspectos positivos e negativos, e estes são apresentados como necessários, legitimados ideologicamente.O herói épico não muda, é sempre o mesmo, livre de tensões e contradições, conforme Kohler e Kothe mostraram.Eudora Welty tem um conto lindo, "Circe", em que ela nos mostra uma outra figura feminina muito surpreendente. Vale a pena dar uma olhada. Segue o trecho final, traduzido por mim: "[...] Levantei-me. Estava com náuseas por causa da criança. O chão se esvaneceu frente aos meus olhos, obscurecido com o doce mirtilo, com o carvalho frondoso que teria me dado também um barco, se eu não fosse presa à minha ilha, como Cassiopéia o deve ser à madeira e às estrelas de sua cadeira. Nós éramos uma margem de fogo, um anel no mar. O navio dele era o vislumbre de um momento numa onda. O pequeno filho, eu sabia, iria segui-lo — segui-lo e matá-lo. Esta era a história. Para quem basta a história? Para os viajantes errantes que a contarão — é aí onde devem encontrar sua estranha felicidade.
Fiquei no meu rochedo e desejei a dor. Ela não viria. Embora eu pudesse gritar à lua crescente, e ela, tão perto, pudesse aumentar ou diminuir, havia ainda a dor que não conseguia me ouvir — a dor que não sabe ser redonda ou rasa ou extremamente brilhante ou que continua a correr no seu caminho, no qual uma maldição poderia atingi-la. Não tem um curso nos céus; é como o mistério, e sabe onde pode se esconder. Ao final, a dor nem mesmo respira. Eu não consigo encontrar a empoeirada boca da dor. Tenho certeza agora que a dor é um fantasma — somente um fantasma no Hades, para onde o ingrato Odisseu está se dirigindo — que o espera (CS, 537)".Como se observa, no final do conto Welty acrescenta mais outras linhas ao quadro homérico, ao prenunciar — através da fala de Circe — um final que as variantes do mito apontaram. Ao invés do final feliz, a tensão é instaurada quando é anunciada a morte do herói, adjetivado por Circe como ingrato, ao recusar o seu amor.
Grande abraço, T.T.