Já Violência e paixão, do Visconti, é um daqueles filmes que nos atropelam e nos deixam estonteados na beira da estrada, sem sabermos bem o que nos nocauteou. Visconti tem uma característica encantadora: seu detalhismo. A gente pode reassistir seus filmes vezes sem conta, e decidir: hoje vou prestar atenção na trilha sonora, ou no vestuário, ou nos cenários, ou nos diálogos, ou na iluminação, ou… Seja lá o aspecto que escolhermos, vamos ter muito para digerir, e pensar, e nos encantar. Meu favorito de todos os tempos é O Leopardo, onde tudo é perfeito. Me contaram que, dentro das gavetas das cômodas do palácio, Visconti tinha guardado roupas de época que sua produção penou para encontrar. Eram não apenas vestidos e fraques e uniformes verdadeiros, mas roupa de cama, bordada e brasonada, rendas, toalhas de mesa, roupas de baixo, tudo como se o palácio estivesse habitado. Um dos produtores, exasperado com as buscas, desabafou: Para que isso? Afinal, quem vai saber o que está dentro das gavetas? Elas não vão ser abertas! E o Visconti, impávido: Eu saberei!
Ele sabia e nós é que lucramos. A gente quase que pode sentir o fedor do corpo em decomposição, perturbando a reza daqueles nobres em sua hora de angústia. É preciso que tudo mude para continuar a mesma coisa (essa é minha paráfrase), a frase com que Salinas instrui Tancredi é de um cinismo e de uma sabedoria inesgotável. A gente quase que pode escrever um tratado a partir daí.
Este Violência e paixão tem uma outra proposta. Tem um encantamento e uma doçura que tornam a violência ainda mais contundente. Tem essa coisa indefinível que não consigo nunca exprimir bem o bastante, que é o olhar meio alheado do intelectual, que olha de fora mas deseja o que vê, e não percebe que faz parte daquilo tudo. Ele se julga alheio e não percebe que é uma das partes fundamentais do jogo do poder. Acha que sua mente e seu julgamento estético, ou sua racionalização e imparcialidade o protegem. Ledo engano! Ele está envolvido até o âmago, e é cúmplice de tudo. Mesmo quando se retira.
Ao contrário do Il gattopardo, os cenários não são naturalistas: Cada vez que a janela se abre a paisagem mostrada é exagerada, os detalhes barrocos se transformam em monstruosidades góticas e diminuem as dimensões humanas – joguetes. A cópia restaurada, segundo o anúncio do jornal, "resgata a música da iluminação" - frase de efeito meio boba, em minha modesta opinião, mas que serviu para que eu tentasse observar algo sobre a mesma. Confesso que não tenho sensibilidade para tanto. Olho mais o andamento lento da câmera, que contempla amorosamente rostos e corpos, mas passeia rápida e fugazmente sobre os livros e obras de arte colecionadas pelo protagonista. Percebo a proximidade com que ela passeia dentro dos aposentos do professor, e sua distância teatral no belíssimo apartamento moderno e claríssimo da duquesa. Escuto as explosões, repetidas e realçadas, e perco os acordes das músicas clássicas, perturbadas pelas canções modernas. Invejo roupas, tão lindas, meu Deus! Me admiro com os olhares, límpidos ou amorosos, ou absolutamente terríveis. Sinto o gosto do sangue derramado…
Não sou crítica de cinema, mas adoro assistir coisas boas. Esse é um dos filmes mais lindos de Visconti. Tão lindo que não consegui assistir outro durante todo o fim de semana prolongado. Sinceramente, não dá para rever Minuit depois desse. Ontem à noite, dei uma olhada num do telecine, A missão. Belo. Mas parei de me interessar ainda no início. Ainda preciso de tempo para voltar a ver outros filmes…
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