Sunday, April 05, 2009

Mais um domingo de sol no Rio…

É impossível não amar esta cidade num dia como o de hoje. A temperatura amena e os tons do céu e do mar parecem um convite à alegria e ao bom humor. Sorrio, portanto, com o carinho da Cris: obrigada, amiga! Tomara que dê certo. É verdade que ali na enorme lista dos inscritos tem muita gente boa. Flavinho alça sua "cabeça baixa", entre os romances, e eu, por um lapso, esqueci de colocá-lo no post passado. Ele é amigo querido, claro que estou torcendo por ele, também. Mas não vou mencionar todos os amigos, nem falar mais nesse assunto. Volto ao meu bom humor domingueiro, mesmo com o estresse da véspera da partida, e o atraso dos trabalhos. Mas lembro do filme que assisti ontem: Simplesmente feliz. Concluo que o bom humor constante de algumas pessoas pode ser muito irritante para outras. Que saco! O mundo se acabando e a fulana ou o fulano rindo como uma imbecil, ou um drogado. 
Me lembro de uma consulta médica que muito me ofendeu – o médico, um mal-humorado crônico, achou que eu era burra como uma porta, só porque eu sorria, tentando ser simpática. E transformou a consulta numa sessão de tortura, tentando desaparafusar o sorriso do meu rosto. Eu, por teimosia, insistia no sorriso, mas por dentro tinha vontade de dar-lhe um tabefe. E assim ficamos, por toda aquela longa meia-hora, medindo forças, até que ele me dispensou e eu saí dali aliviada, para nunca mais voltar! Mas fiquei indignada, por ter de pagar por isso! O que vale é que a minha memória é seletiva: lembro do caso, mas não há maneira de me lembrar do médico. Vai ver que isso nem aconteceu comigo, mas alguém me contou a história da qual me apropriei, por me colocar no lugar da pessoa. Tenho memórias que são desse tipo – produzidas pelos outros.  Há coisas que me contam a meu respeito e que eu acredito que tenham se passado, mas das quais não tenho a menor recordação própria. Só que, de tanto a pessoa insistir, assumo aquilo como uma memória possível, e passo a guardar a versão da pessoa sobre o meu passado. Este episódio difere ligeiramente. Talvez eu tenha elegido essa versão de alguém como própria – afinal, combina comigo, sou uma sorridente contumaz, e ouvinte atenta. Nas conferências, sinto, muitas vezes, que sirvo de ponto de referência para o falante. Olho atenta, sorrio, concordo, balançando a cabeça. Se discordo, aperto os lábios, numa mímica de dúvida ( ia dizer num esgar de dúvida, mas achei a palavra muito pedante). E tenho grande amor por boas histórias. Me lembro que a editora, por ocasião de meu primeiro livro, me pediu uma "biografia" para colocar na orelha do livro. Aquilo me deixou absolutamente perplexa: quem poderia estar interessado na vida que levo? Não tinha nada para contar: nasci, fui para o colégio, aprendi a ler e escrever, casei, tive filhos, enviuvei… Escrevi, então, uma biografia possível e disse que era neurocirurgiã, amante do Salman Rushdie, o que tinha me obrigado a levar uma vida clandestina. Por isso mesmo, por ocasião do ferimento que havia abatido Osama Bin Laden, eu tinha sido levada – por pessoas não identificadas – para as cavernas do Afeganistão, onde tinha efetuado uma operação de emergência salvando a vida do terrorista mais procurado do mundo. Conseguira escapar do sequestro atravessando o deserto sem bússola, fazendo um pacto semelhante ao do Paulo Coelho, mas havia errado a fórmula cabalística e ao invés de invocar o senhor do Mal, tinha invocado um ex-malandro da Lapa que, forçado a trabalhar graças à minha invocação, havia me castigado transportando-me para uma vida sem novas emoções. Isso, ou algo no gênero.  Eles preferiram a versão tradicional: carioca, formada em Letras, pesquisando as diferenças da colocação do pronome demonstrativo entre os romances cubanos e brasileiros etc, etc.  É de morrer de tédio, não?
E o que é que eu faço, então, com o meu bom humor e o meu sorriso?
Enfio em mais alguma outra "vida possível" e conto que sou o leite que o Chico derramou, por não conseguir prestar atenção na minha fervura… Vou sonhando, vou viajando, numa busca incessante de motivos que justifiquem o sorriso que me crucifica o rosto. Vou vivendo.
E aí termino dizendo para o Guido: tenha um pouco mais de paciência com os escritores em geral, e com o Chico e o Proust em particular. Principalmente com o Proust, cuja obra, difamada como coisa de uma "bichinha fútil, fazendo crônica social" é um dos melhores estudos da alma humana que já tive a oportunidade de ler. E peço um pouco de respeito para quem, a fim de escrever, desistiu de viver. Pois mesmo essa minha vidinha sem graça, sem emoções, sem atividades, como é a única que tenho, me é cara. É muito difícil abdicar de sair para passear, de ir ao teatro, de ir viajar, de encontrar com os amigos, para se dedicar, exclusivamente, a escrever. E mesmo quando a gente diz que quer morrer, que só pensa em morrer, talvez o que a gente esteja mesmo querendo é se observar "completo", pois só o fim permite que se compreenda o que passou. Proust ficou uns treze anos recluso escrevendo, e reescrevendo, obsessivamente, sua obra. Viveu por escrito.

3 comments:

Guido Cavalcante said...

Lucia, me parece que você entendeu ao contrário: eu adoro Proust, por isso não me interesso por obras que tenham qualquer referencia ao seu trabalho. Depois de alguns meses, terminei o Austerlitz, do Sebald. E novamente um cara do NYT comenta as 'referências' a La Recherche. Ficou vulgar achar qualquer coisa por ai semelhante ao que Proust escreveu. Meu coment foi esse. Agora, acho mesmo que nada extraordinario foi escrito depois de Kafka e de Henry Miller. Sabe como é, aquela tesão na palavra. Aquela falta total de principíos durante o ato de escrever, aquele paroxismo intelectual e existencial, capaz de formular um novo mundo. Não vai falta de respeito meu nisso. Da mesma maneira reflito sobre a arte: fui ver os trabalhos do José Damasceno na Laura Alvin e sai com a impressão nítida de que tudo aquilo já foi feito muito melhor em... em 1918. É isso ai, Lucia, não é falta de respeito, que afinal artista não se importa com isso, com o tal respeito, coisa da arte da burguesia, do poema bem-comportado, com livro de formação, citado na universidade, feito de bons modos pra encaminhar na vida. Pois eu quero a arte do descaminho, de Artaud, de Rimbaud, de Raymond Radiguet, Modigliani, Utrillo, Francis Bacon, é por ai é que eu vou. P. ex. no seu Bibliofilia, gostei muito da descrição da boca do cara dormindo. Aquele nojo que vc expressa devia ter contaminado o resto da narrativa, tipo 'hora da xepa', fruta amassada, legume podre... Bacana vc ter voltado ao comentário, trouxe dinamismo pra coisa toda. Take care.

Guido Cavalcante said...

Bem, eu não sabia que Proust tinha sido difamado como 'bicha', sabe lá o que isso importa. Mas eu sei que o cara foi até o fim da vida escrevendo. Até ai nada demais, a arte tem exemplos interminaveis desse tipo de coisa: Dostoievsky escrevendo desesperado pra pagar as dívidas de jogo, van Gogh ansiando por reconhecimento, o Aleijadinho amarrando os cinzéis nos punhos corroídos, Carolina Maria de Jesus roendo um osso encontrado no lixo. Enfim, parece que há coisas mais dificeis do que "abdicar de sair para passear, de ir ao teatro, de ir viajar, de encontrar com os amigos, para se dedicar, exclusivamente, a escrever", embora a dor de um não se meça pelo padecimento do outro. Mas nada disso importa, diante da suprema alegria de uma linha de palavras que fulgura na página datilografada, ou do traço impensável deduzindo um novo espaço, do volume inapropriado para a gravidade terrestre ou da melodia que se torna audível. O resto é apenas a crônica dos acontecimentos diarios e sem a menor importância, não é mesmo?

david.leinad said...

o senhor Guido precisa de um espaço para expressar seu intelectulismo. sobra e transborda conhecimento. pena é saber que ele o faça numa caixa comentários. fora isso me dirijo a ti moça: que legal suas palavras. vão, certamente, fazer com que eu volte aqui mais vezes.
abraço.