Naquela manhã cinzenta o mundo não lhe parecia muito interessante. Sem sol, sem vento, sem chuva, o mundo estava como que embalado para mudança, todo algodões e papel de seda, aguardando o transporte.
É assim que ele começa. A mulher senta-se em frente a um computador numa manhã como essa e começa a devanear, pensando sobre o que é a vida, e, ao final, percebendo que a sua vida era aquela que se escrevia. Se algum dia alguém analisar minha obra, acho que vai classificá-lo como literatura "mulherzinha", que é a maneira meio pejorativa, meio afetuosa que algumas pessoas aqui se referem ao que pode ser chamado de literatura feminista. O quanto eu já lutei apaixonadamente pelo respeito à literatura feminista! Até desistir de assistir aulas de H. B., quando estava estudando lá em Yale, desisti, como protesto ao fato de ele ter dito, na sala de aula, que o feminismo não era grande coisa. Isso foi numa outra vida, e já não lembro exatamente das palavras que foram ditas. Só lembro mesmo do meu sentimento de indignação quanto ao que foi dito. Levantei-me e fui embora da sala de aula, como se ele estivesse perdendo alguma coisa com a minha partida. Pretensiosíssima....Ele falou alguma coisa a cerca de mudar o mundo -- literatura capaz de mudar o mundo... Então para terminar com uma homenagem a uma escritora que queria ser recebida sem preconceitos, Cecília Meireles, aqui vai de brinde o Romance LIII ou das Palavras Aéreas
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
e estais na tinta que as molha,
e estais nas mãos dos juizes,
e sois o ferro que arrocha,
e sois barco para o exílio,
e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
- Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
5 comments:
Querida, o "tar" do HB é quem eu estou pensando? O Harold Bloom? Sou fã de carteirinha dele, apesar de sabê-lo misógino (adoro Huysmans que também era)e de toda a história da escola do ressentimento.
Você está bem longe do "chick lit"; literatura de mulherzinha é comercial, uma forma, e você está bem longe dela. Sai capeta!
Um amigo disse que eu só escrevo sobre mulheres. Como desafio, saiu um texto, contando a história de um homem, mas o título é Agnes.
C´est la vie, a gente conta sempre a mesma história, variando nos detalhes. Não acho isso pobre, poderia morrer de ouvir as variações de Goldberg (de preferencia tocadas pelo "tarado" do Glen Gould), ou ver o Sol entrando na vida ao som das variações de Mozart sobre "Ah, je vous dirais maman". Desencana, você é uma baita autora. Bacci
Eugenia.
Como sou um cara meio "atrasado" em literatura, fico com Anais Nin - aqueles contos eróticos (me lembro agora de um entitulado "Helena") eram geniais. Se a isso se considera "literatura mulherzinha", eu gosto muito. Esse negócio de gênero mais ou menos isso e aquilo é uma besteira. Há um pintor que adoro, Raoul Dufy, tb criticado por pintar cenas alegres de corridas de cavalos, praias e concertos em plena IIª Guerra Mundial. Bem, a guerra acabou e os quadros delicados dele permanecem como um instante de beleza e civilidade em meio a toda aquela barbaridade de trens carregados de pessoas meio mortas.
Acho que escrever uma coisa "delicadinha" é uma tremenda tarefa, veja lá a Katherine Mansfield (outra mulherzinha que eu adoro e que foi, pobrezinha, infectada de sifilis pelo animal que ela amava). E lembro ter lido que a Anais Nin só usava saias, para ser mais facilmente possuída :-)Essas mulherzinhas que fazem literatura...
Queridíssima,
li hoje cedo um texto hilário, que só mulher pode escrever. Deixo o link aqui:http://www.escrevinhadora.com.br/site/historia.html
O título: "A mulher de Carapicuiba". É de outra amiga escritora, Doris Fleury.
Li o comentário escrito antes do meu. A-DO-RO Raoul Dufy. Queria morar em um daqueles quadros, cheios de luz, cores e elegância.
Mas é preciso ser "dark" para ser intelectual. Todo mundo me olha de cara feia quando eu digo que não gosto de Francis Bacon (um mundo que cai aos pedaços, desfeito e apodrecido).Ele até pode ser assim, mas não a representação que faço dele.
Beijos,Eugenia.
Bem, eu adoro Francis Bacon. Não acho nada "dark" o trabalho dele. Mas gostar ou não da obra de um artista é indiferente. No meu blog escrevi/editei um texto sobre Bacon, depois que fiz um trabalho com referências ao dele. O nome do texto é "Francis Bacon is the guy"
http://fractalmix.blogspot.com/2006_12_01_archive.html
nunca mais tinha vindo aqui, que saudade!
abração.
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