Não queria perder a
oportunidade de escrever numa data tão engraçadinha como esta. Não sei quando
teremos uma outra repetição tão perfeita. Talvez por isso os Maias tenham resolvido acabar com o mundo após essa data. Chegamos ao equilíbrio e… catapum! Tudo desmorona e é preciso reconstruir, como aquelas torres do brinquedo "pequeno engenheiro". Ontem, num delicioso almoço que compartilhei com um amigo de longa data e uma nova amiga, mas que me encanta igualmente, me perguntaram qual a minha mais antiga lembrança. E eu não tinha uma lembrança antiga! Me esforcei bastante e lembrei de quando descobri que sabia ler e fui contar toda contente para minha avó. Ela não acreditou, achou que eu tinha decorado o livro. Agora, no entanto, me lembro da paixão que tinha por esses brinquedos de construção. Equilibrava os retângulos de madeira, os triângulos vermelhos, se fazendo passar por telhados, gostava especialmente dos cones, que faziam minhas torres se parecerem muito com as torres de um castelo. E também gostava dos blocos em arco, me comprazia em construir prédios com pilotis, ao gosto da época. Depois… catapum! Tudo desmoronava, como a perfeita data que, ao passar, nos deixa saudosos de perfeição.
A profecia, tantas vezes desmentida, é de que o mundo vai acabar. Para mim me é indiferente. Mas aproveito a dica para fazer meus votos de final de ano.
Se for para alguma coisa acabar, que sejam a intolerância, a desigualdade, o crime, a violência, o desprezo, a opressão, a miséria, a impaciência, a solidão, a tristeza, a dor… Acabem! Obliterem-se! Desapareçam!
E conservemos os bons amigos, a convivência, a tolerância, o respeito, a delicadeza. E que a Literatura volte a ser uma fonte de prazer e emoção. Que as artes sejam encantamento. Que os abraços sejam calorosos e os beijos, sinceros. Que os amigos se reunam com frequência, que os amores sejam cálidos, que os problemas sejam resolvidos. E que o equilíbrio de hoje, de 20/12/2012, mantenha suas proporções humanas, oferecendo enigmas não muito complicados, valores fáceis de assimilar, sorrisos de esperanças de que nosso planeta possa ultrapassar o 21/12/2012, e o 22 e o 23 e que, depois do dia 31/12/2012 a gente acorde num belo 1º de janeiro de 2013, ano que, para os supersticiosos, vai ser de sorte, muita sorte!
E, para vocês, meus queridos leitores, aqui vai meu conto de Natal de 2012, com carinho e muitos agradecimentos por acompanharem minha jornada.
Conto de Natal – 2012.
Milagre de Natal
Lúcia Bettencourt
Uma lista. Era
para ser fácil. “Neste Natal eu desejo”, escrito com letra caprichada,
maiúsculas bem desenhadas, depois dois pontos. Mudar a linha. Podia até pular
uma linha para começar a escrever, as mesmas coisas de todos os anos, tipo “saúde”, “paz”, “prosperidade”. Não,
essa palavra estava fora de moda, ninguém mais a dizia e talvez ninguém mais
entendesse o seu significado.
Melhor colocar na lista essas outras coisas como “dinheiro no bolso”,
“amor”, “harmonia”… Taí uma boa palavra, harmonia… Coisa meio musical, e também
angelical, isso combinava bem com a época. Mas ele não conseguia, sentia-se
ridículo, sem conseguir segurar direito o lápis com a mão que já não reconhecia
como sua. Seu rosto também já não
era reconhecível. Além de novas rugas, dos óculos que tiveram de ser substituídos,
pois os antigos, levinhos, quebraram-se no acidente, sua boca congelava-se num
ângulo estranho, desdenhoso, e o olho direito quase se fechava, a pálpebra
emperrada como uma porta empenada.
Uma ironia. Era
isso que ela pensava, olhando para o pai cujo rosto sempre lhe fora um pouco
estranho. Logo ele, que fizera das palavras seu ganha-pão, agora não conseguia
mais usar o lápis. As palavras, para ele, tornaram-se irreconhecíveis. A página em branco em cima da mesa, o
braço inútil, ou quase. O lápis preso num ângulo estranho entre os dedos
grossos da mão alheada. Ela olhava para o pai com um misto de preocupação e de
curiosidade, mas não sentia amor. Eles eram distantes, incapazes de mostrar
afeto. Sua relação com o pai havia começado tarde, muito tarde, quando ela, ingressando
na faculdade de Filosofia, despertara nele uma certa curiosidade e algum
orgulho. A filha abandonada no berço, visitada apenas no Natal e no
aniversário, era um ser formado à sua semelhança, inteligente, culto,
esforçado. Mas nunca um gesto de afeto. O beijo protocolar, do qual ambos,
desconfortáveis, procuravam escapar. Jamais um abraço. O interesse que passou a
existir era intelectual: telefonemas para saber coisas da aula, se as
notas estavam
boas, qual seu filósofo predileto: Nietzsche ou Kierkegaard? E o oferecimento dos livros de sua
enorme biblioteca. Ecce homo, pensou.
Vencido, derrotado, impotente. O rosto estranho de um homem estranho, incapaz
de falar, de escrever…
Uma lástima. Ele
agora seria um peso, e seria ela
quem teria de carregá-lo! Isso por amor à sua única filha, pois, se não
assumisse os cuidados, a menina seria sacrificada. Olhava para o velho em que
ele havia se transformado, com um misto de pena e de ódio. Ele tinha sido, por
mais de quarenta anos, irônico, cruel, indiferente. Tinha sido mesquinho e
ausente. Nunca tinha oferecido uma palavra de consolo nem de amparo. Mas dividira sempre seu salário de
jornalista e pagara as contas da menina religiosamente em dia. Nenhum presente,
é bem verdade. Com exceção da boneca que ele deu no aniversário de 16 anos, e
dos livros que, mais tarde, passaram a chegar com insistência, dados ou
emprestados, na ânsia de fazer da filha uma projeção de seu intelecto brilhante.
Se ela ainda acreditasse em Deus, talvez se conformasse, mas suas crenças
haviam sido meticulosamente destruídas pelos comentários cáusticos que ele
fazia, pelos raciocínios sempre corretos mas impiedosos e maus. Ele nunca
tivera piedade dela, nunca sentira um pingo de remorso por deixá-la sozinha nas
noites de febre e de tosses. Nem estendera a mão para ajudá-la a levar a filha,
já quase de sua própria altura, ao pronto socorro, com a perna sangrando depois
da queda feia de bicicleta. Incapaz, indiferente, ausente… E ali estava ele, um velho, um peso morto,
para que ela cuidasse, pois não havia mais ninguém, a não ser a filha, mas isso
ela não permitiria.
Um boneco!
Margarida reconhecia o avô naquele boneco gigantesco, maior que sua mãe,
chegando numa cadeira de rodas para a festa de Natal na casa da vovó. Um boneco de
carne e osso! Era feio como o avô, mas ela estava contente, pois era assim
mesmo que tinha sonhado aquele presente de Natal. Grande, com cabelos para
pentear, roupas para vestir. Podia dar comidinha e água, e, com um pouco de
esforço, levá-lo para passear naquela cadeira grande e prateada, com rodas de
bicicleta. E podia enfeitá-lo com as guirlandas de Natal, e colocar os bonecos
sentados no seu colo. Podia até castigá-lo, virando-o para a parede quando ele
não se comportasse como ela queria. Aquele era o melhor Natal de sua vida,
sussurrou no ouvido da mãe, que não compreendeu bem a alegria da menina. Mas que depois reparou na atividade em
volta do doente, e acabou entrando na brincadeira. Está na hora da papinha…
Venha, vamos ajudar o avô a fazer seu exercício de fisioterapia… Até a avó, a
princípio um pouco brusca, entrou no jogo, e as três mulheres, como anjos,
fizeram daquele menino Jesus crescido e velho demais, o centro de suas
atenções. Na hora do exercício, colocaram a folha em branco em cima da bandeja
que lhe servia de mesa, e puseram o lápis entre os dedos da mão quase
imobilizada. Faz uma lista de Natal!, a menina comandou. Mas não prestou
atenção no milagre que estava ocorrendo ali, na sala, sem estrelas nem
cânticos. Um milagre prosaico de vida e inocência.
No comments:
Post a Comment